quinta-feira, 22 de junho de 2017

Uma Delicada União - O Casamento de Lovecraft e Sonia Greene



Eu sempre tive curiosidade a respeito de quem foi Sonia Haft Greene (cujo nome de solteira era Haferkin), a mulher que casou com H.P. Lovecraft. Ela sustentou Lovecraft financeiramente por dois anos e em uma citação famosa o descreveu com "um amante excelente e adequado", que entretanto, jamais disse que a amava. Infelizmente, não sabemos muito mais do que isso de sua vida.

Pode parecer estranho para os fãs de Lovecraft, mas Greene era uma imigrante judia, nascida na Ucrânia, o tipo de pessoa que Lovecraft culpava pelo declínio da civilização ocidental. Alguém com quem ele jamais poderia se misturar ou aceitar em seu grupo de amigos. A despeito disso, foram bons companheiros ao longo de nove anos.

Como então essa mulher se tornou esposa de alguém difícil como H.P. Lovecraft?

De acordo com o biógrafo de Lovecraft, S.T. Joshi, Greene era uma mulher avançada para a época, uma escritora que publicou vários trabalhos, inclusive um conto de horror intitulado "The Invisible Monster" (O Monstro Invisível, também chamado de "The Horror in Martin's Beach" revisado por Lovecraft). Tratava-se de uma pessoa muito ativa, que chegou a ocupar o cargo de Presidente da Associação Unida dos Jornalistas Amadores.


Antes de conhecer Lovecraft, Sonia casou-se com Samuel Greene, um homem bem mais velho com quem teve uma relação turbulenta. Ele alternava episódios de depressão com períodos de embriaguez nos quais a agredia frequentemente. Quando enfim veio a falecer, supostamente cometendo suicídio, ela não lamentou. De sua união sobreveio uma filha, Florence Carol, que, adulta, se tornou uma bem sucedida jornalista. Mãe e filha segundo consta nunca se entenderam bem - a menina defendia o pai, e após uma séria desavença jamais voltaram a se falar. 


Ao contrário de muitas mulheres de sua época, Greene era independente e com uma postura moderna. 

Ela trabalhou por algum tempo como milliner — uma desenhista de chapéus — em uma luxuosa loja de departamento, emprego que lhe garantia estabilidade financeira e permitia que ela viajasse pelo país. Ela alugava um confortável apartamento na então chique vizinhança de Flatbush, no bairro do Brooklyn. Sua estabilidade financeira também permitia que ela fizesse doações esporádicas para vários escritores amadores em começo de carreira. Um de seus passatempos era viajar para participar de convenções (basicamente reuniões onde se discutia temas a respeito de ficção científica e literatura fantástica). Em uma dessas convenções ela encontrou Lovecraft pela primeira vez e ficou atraída pelas suas idéias e conceitos. Lovecraft comentou com um colega que se sentia extremamente à vontade com ela e que a companhia da Senhorita Greene era inspiradora.

No verão de 1922, Lovecraft a convidou para visitá-lo em Providence e segundo consta foi um guia atencioso que lhe mostrou a cidade. Em contrapartida Sonia convidou Lovecraft para conhecer Nova York, pagando suas despesas de viagem. Lovecraft não gostou muito da cidade, mas aproveitou para conhecer na companhia da srta. Greene alguns locais de interesse.

Os dois casaram em 1924, após um estranho namoro de dois anos onde havia pouco espaço para "sentimentalismo barato". O casal decidiu se mudar para Nova York e viver no apartamento de Sonia que era grande o bastante para comportar os dois. Quando o casal passeava pela cidade Lovecraft constantemente demonstrava irritação com os imigrantes que encontrava pelo caminho. Em algumas ocasiões ele preferia andar no centro da rua apenas para não ter de dividir a calçada com "indivíduos detestáveis". Greene contou a um biógrafo que ela própria lembrava ao marido sua origem, mas isso não parecia dissuadi-lo de seu descontentamento com imigrantes. "Você é diferente minha querida", teria dito em mais de uma ocasião.



Que tipo de sentimento uniu pessoas aparentemente tão diferentes cuja única proximidade parece ser a intelectual?

Nós jamais saberemos, pois ela queimou todas as cartas após o divórcio e sua mudança para Cleveland em 1926. Contudo, nós sabemos que Sonia se apaixonou primeiro pela literatura de Lovecraft e suas idéias expressas através de centenas de cartas. Algumas segundo ela com mais de vinte páginas e uma infinidade de assuntos. O que soa como uma versão steampunk de um romance online entre perfeitos geeks.

Os primeiros meses após o casamento foram de aparente felicidade entre o jovem casal. Eles passavam a maior parte de seu tempo juntos, eram companheiros de discussão e visitavam amigos em comum tirando fotografias nas quais transparecia um clima de evidente intimidade. Quando em casa, gostavam de ler, conversar sobre os acontecimentos cotidianos e repassar os textos que escreviam.

Pouco tempo depois, Greene decidiu abrir seu próprio negócio de milinery que foi um fracasso e no qual ela perdeu boa parte de suas economias. Com despesas acumulando ela teve de aceitar um outro trabalho que a obrigava a viajar constantemente, ausentando-se de casa. Lovecraft não ficava satisfeito com essa ausência, e se ressentia dos longos períodos sozinho, embora os aproveitasse para trabalhar de maneira febril nos seus textos. Eles também tiveram de abrir mão do apartamento em Flatbush e se mudar para a vizinhança de Red Hook, ainda mais saturada de imigrantes. 

No último ano do casamento, Greene passou mais tempo viajando à trabalho do que em casa. Lovecraft dizia que o período de solidão era bom para seu ofício e que não ter uma distração em casa era essencial para sua produção literária. Realmente, nesse período Lovecraft escreveu incessantemente, ainda que não tenha conseguido vender muitos de seus trabalhos para a Weird Tales. Passava dias sozinho no apartamento sem ver ninguém, sem receber ninguém, alguns até achavam que ele sofria de alguma doença, tamanho seu comportamento solitário.

A esposa enviava uma espécie de mesada semanal para pagar o aluguel da casa onde ela dormia apenas uma ou duas noites por semana. Lovecraft não aceitava que o dinheiro das demais despesas fosse pago por ela, ao menos isso era seu dever providenciar. Sem um salário fixo, não é de se estranhar que ele vivesse quase exclusivamente de biscoitos, feijão em lata e sanduíches. Nos finais de semana ele comprava algo para a esposa ou para fingir que a despensa estava cheia. 

Lovecraft comentou em uma carta que esse foi um momento delicado de seu casamento. Mesmo assim ele não contemplava a ideia de abandonar a literatura em favor de um emprego estável, o que Sonia aconselhava que ele fizesse. É possível, que as maiores discussões entre eles envolvesse esse tópico. Percebendo que não conseguiria fazer o marido abdicar de sua paixão pela escrita, ela terminou por desistir de persuadi-lo. 

O casal decidiu se divorciar amigavelmente e de comum acordo. Lovecraft retornou para a casa de suas tias na Nova Inglaterra onde ainda tinha um quarto disponível. Para muitos, ele estava aliviado por deixar para trás o caldeirão cultural de Nova York e lamber as feridas emocionais em sua amada Providence. Há conjecturas de que os dois já não tinham mais nada em comum e que a separação acordada demonstrava que de fato a relação havia ruído fazia muito tempo.

Depois da separação Sonia Greene partiu para o Oeste e tentou a sorte na Califórnia, uma terra de oportunidades para pessoas empreendedoras como ela. Em 1936 ela casou pela terceira vez, embora jamais tenha se separado formalmente de Lovecraft que nunca homologou os papéis do divórcio. Até onde sabemos, os dois não se viram mais, e quando recebeu a notícia da morte de seu ex-marido ela ofereceu dinheiro para ajudar nas despesas do funeral.

Sonia viveu seus últimos anos como viúva em um lar para senhoras, ela faleceu em 1972 aos 89 anos de idade. 

Recentemente surgiram boatos de que Sonia teria participado de círculos ocultistas e de clubes de debate sobre o tema. Alguns afirmavam até que foi Sonia quem sugeriu a criação do Necronomicom com base no Livro Egípcio dos Mortos. Rumores davam conta de que ela teria conhecido o ocultista inglês Alesteir Crowley com quem teria desenvolvido um caso amoroso. Mas esses são boatos infundados.

Já bastante idosa Sonia concedeu entrevistas a respeito de seu ex-marido e ainda demonstrava afeto à sua memória.

6 comentários:

  1. Ainda há muito para saber a respeito de Lovecraft, sua obra, sua vida privada, o seu envolvimento com o Ocultismo que lhe deu substratos para escrever a sua obra fabulosa.
    Entre em contato: marchetti57@gmail.com (16)99963-3646

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  2. Belo texto! Fico chocado com a semelhança entre Lovecraft e Francis Underwood, claro tudo de um contexto pensado por mim unicamente hehe.

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  3. Lovecraft é o cara! Quando puderem escrevam mais sobre a vida dele.

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  4. Belo texto e muito informativo.
    Empolgante vê como eram as mulheres "modernas" daquela época e, mais ainda, saber que HPL foi conjugue de uma delas.
    Que venha mais, por favor.

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  5. Gostei deveras desta matéria. No youtube há um documentário intitulado " Medo do Desconhecido ". Que aborda parte da vida e obra de Lovecraft. Recomendo.

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  6. Como sempre, Mundo Tentacular surpreendendo os leitores. Sou admiradora da obra de Lovecraft há muitos anos e gostei muito dessa abordagem sobre a vida pessoal do autor. Traz elementos interessantes que ajudam a compreender mais aspectos do seu trabalho. Parabéns pelo excelente blog!

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