sábado, 1 de outubro de 2011

Resenha | Inacreditáveis Casos Sobrenaturais

Um amigo definiu de forma bem interessante o que são aventuras em estilo purista e o que é o modelo pulp em Rastro de Cthulhu.

No primeiro seu personagem vê algo, fica aterrorizado e chocado diante de um horror que faz sua mente se perder nas raias da insanidade. O estilo pulp é bem parecido: o personagem vê algo, fica aterrorizado e até pode enlouquecer, mas terá em suas mãos um rifle para fuzilar a criatura que causou essa reação.

Inacreditáveis Casos Sobrenaturais, o próximo lançamento da editora Retropunk para o jogo Rastro de Cthulhu pende para o estilo pulp, com cenários cheios de exloração, aventura, ação, mas sem esquecer do bom e velho horror cósmico.

Escrito por Robin D. Laws (autor de Fear Itself, também no sistema GUMSHOE), Inacreditáveis Casos Sobrenaturais (daqui em diante I.C.S.) é um livro de cenários prontos com 82 páginas (incluíndo os handouts). Ele contém quatro aventuras e uma série de NPCs que podem ser reaproveitados, regras opcionais e ideias para campanhas ou sequências. Além disso, o livro apresenta quatro novas criaturas do Mythos de Cthulhu e seis personagens prontos para catapultar mestre e jogadores direto para a ação sem escalas. Basta ler, reunir o pessoal, distribuir os personagens e começar o jogo. Tudo fácil e rápido.

Visualmente o I.C.S. segue o padrão gráfico do livro básico. Texto claro e direto ao ponto, dividido em três colunas, com tópicos bem distribuídos. Ao longo do livro estão desenhos em preto e branco do talentoso artista francês Jérôme Huguenin se referindo à cenas e acontecimentos de cada cenário. Eu apenas lamento que as ilustrações tenham sido um tanto econômicas pois a arte de Huguenin é de tirar o fôlego, mas por conta do número relativamente pequeno de páginas a ideia é aproveitar cada esapaço com texto. A capa, ilustrada pelo mesmo artista é uma clara homenagem às revistas pulp dos anos 30 e poderia tranquilamento figurar em uma edição da Weird Tales. Nela um homem mascarado, trajando sobretudo e chapéu luta com um arrombador com um pé de cabra. No fundo uma figura cthulhiana observa.

Como acontece com praticamente todos os cenários de uma ambientação lovecraftiana, falar demais estragaria o divertimento. Por isso optei por comentar apenas por alto cada cenário, poupando os jogadores e o Guardião de revelações que poderiam ser fatais para o clima e surpresas dos cenários.

I.C.S. possui quatro cenários separados, sem uma conexão. O guardião terá de fazer alguma ginástica para juntar os mesmos personagens em todos os cenários uma vez que eles se passam em lugares e situações distintas.

The Devourers in the Mist (Os Devoradores nas Brumas)

The Devourers in the Mist se passa em um local remoto no Pacífico Sul. Um horrível naufrágio lança os investigadores em uma ilha que a princípio parece deserta, mas que obviamente é habitada por algo que se esconde nas sombras. Enquanto lutam pela sobrevivência tentando caçar, encontrar água potável e proteção contra os elementos, os investigadores tem a oportunidade de resolver o misterioso desaparecimento de uma figura histórica.

A aventura é bem interessante por tirar personagens basicamente urbanos de seu habitat e lançá-los em uma localidade selvagem e inóspita. Por outro lado, investigadores sem habilidades básicas de sobrevivência estarão em sério risco tendo de enfrentar provações e sacrifícios. É uma estória em que a montagem da ficha será determinante para o sucesso do grupo, e na minha opinião o Guardião deve intervir para que pelo menos alguns dos personagens tenham chance de sobreviver, do contrário espere um TPK. Talvez por isso, The Devourers in the Mist seja mais adequada para um jogo numa convenção com personagens prontos entregues pelo guardião. Também existe a opção de mudar um pouco o foco da aventura e diminuir o grau de sofrimento dos personagens e os desafios impostos pela selva, mas isso vai um pouco contra o que o autor desejava. O roteiro foca no embate entre "homem civilizado" e "natureza selvagem", onde alguém vai acabar saíndo perdendo. Para quem gostou de Lost ou é fã de filmes em que os personagens se veem perdidos em um tipo de inferno selvagem, bem longe de A Lagoa Azul, essa aventura é um prato cheio.

O cenário é bastante curto e mesmo Guardiões de primeira viagem não vão encontrar muita dificuldade em mestrá-lo. O tamanho também é ideal para que ele seja usado em um encontro de RPG com jogadores inexperientes.

Shanghai Bullets (Tiros em Xangai)

O segundo cenário, Shanghai Bullets é em essência uma investigação no estilo noir com detetives durões, mulheres fatais e bandidos perigosos. O roteiro é muito bem construído e leva os investigadores ao coração de uma intriga internacional envolvendo assassinato e violência. O Mytho está presente, mas a ação dele é discreta quase por detrás de uma cortina de fumaça, usando seguidores fanáticos e capangas fiéis.

A estória remete aos romances detetivescos típicos dos pulp fictions dos anos 30, protagonizados por detetives espertalhões, bons de bico e melhores ainda com os punhos (ou com revólvers). Além disso, todos os elementos clássicos de uma investigação estão presentes: a linda mulher misteriosa, clubes noturnos decadentes, ruas escuras enfumaçadas, maus elementos dispostos a tudo e o crime organizado. Uma boa ideia para mestrar essa aventura é alugar alguns filmes do gênero noir e se preparar assistindo na companhia dos jogadores para ter uma ideia de como se comportam as criaturas desse rico universo.

A trama envolve um artefato misterioso cobiçado por várias nações que desejam colocar suas mãos nele custe o que custar. O cenário de fundo é a exótica Berlin do Oriente, a sombria cidade de Shanghai. O texto é bastante detalhado com dezenas de informações pertinentes sobre a cidade (moeda, lugares importantes, idiomas e política local) além de conceder ideias para dar sequência à estória utilizando os mesmos personagens em outras investigações nesse ambiente.

Na minha opinião, esse cenário é o ponto alto do livro pela riqueza de detalhes e complexidade do enredo. Uma estória envolvente que se bem mestrada e com os jogadores entrando no clima tem tudo para ser memorável.

Death Laughs Last (A Morte Ri por Último)

Esse é um cenário mais convencional, com investigadores contratados para solucionar um mistério que se mostra muito mais complicado - e assustador - do que poderia se imaginar. O grupo de investigadores é reunido para descobrir quem matou um milionário filântropo de Nova York. A estória se inicia com o sujeito bizarramente assassinado em sua mansão, empalado em um dardo de metal, e o grupo deve encontrar respostas para esse crime.

Assim como o cenário anterior, esta investigação leva o grupo a mergulhar no submundo de uma grande metrópole, entrando em contato com elementos perigosos do crime organizado e agentes da lei que parecem mudar de lado à cada instante. Em essência é uma típica estória policial, com detetives embrenhando-se em terreno perigoso e bisbilhotando em segredos que envolve gente poderosa. A influência do Mythos novamente não é tão óbvia e só se revela em toda sua presença corrupta no clímax da sessão, o que pode ser um tanto frustrante.

Assim como Shanghai Bullets, o cenário parece ter sido escrito pensando em detetives durões como Sam Spade, o arquétipo do investigador particular com chapéu, sobretudo e revólver 38. Nada contra, o gênero faz um ótimo casamento com o horror do Mythos.

O roteiro permite algumas indas e vindas, com reviravoltas e até justiceiros mascarados a lá Sombra. Para obter todas as evidências o grupo terá de investigar minuciosamente o passado da vítima, entrevistar muitas testemunhas e cavar por pistas que revelarão uma conspiração que a humanidade não está pronta para conhecer.

Eu penso seriamente em adaptar essa estória para os personagens do cenário anterior e transportar a ação para o oriente, mas é claro que isso vai dar algum trabalho. É uma boa aventura, mas como guardião, sinto que alguns ajustes aqui e ali são necessários para que ela funcione bem.

Dimension-Y (Dimensão Y)

Essa aventura guarda similaridades com alguns contos clássicos de autores dedicados ao Mythos como "The Hound of Tindalos" de Frank Belknap Long e o próprio "From Beyond" de Lovecraft. Em Dimensão Y, o grupo de investigadores é reunido por um cientista para a demonstração de uma estranha máquina que ele construiu e que segundo o próprio é capaz de "abrir uma janela para uma outra realidade não-Euclidiana". Aqui sobe a música e se ouve aquele clássico "tâm-tâm-tâm"!

Após a experiência o grupo - e os convidados - começam a experimentar pesadelos cada vez mais vívidos e assustadores que vão lançá-los na investigação. Esse é um cenário a respeito de dois elementos clássicos da ficção lovecraftiana: sonhos negros e a inevitável espiral da insanidade.

À princípio parece ser um cenário estranho ao livro, pois os elementos remetem mais ao estilo purista com personagens acometidos de um horror que eles não são capazes de afastar por conta própria. Afinal, como lutar com sonhos? Diferente dos outros cenários, aqui, a presença do Mythos é clara e manifesta; quando os investigadores olham pela janela para uma outra realidade, algo olha de volta para eles. As criaturas estão à espreita desde o início, fazendo a sanidade dos investigadores erodir a cada noite.

Eu sou fã de estórias envolvendo pesadelos e situações em que dormir se torna um convite à loucura. Nas mãos de um mestre especialmente sádico e de jogadores dispostos a defender seus personagens, Dimensão Y é um cenário particularmente tenso. Como o grupo fará para se manter desperto? Como evitar que o esgotamento físico e mental se tornem taxativos? Como separar sonho e realidade?

O grupo terá de buscar pistas e obter informações necessárias para escapar desse tormento o quanto antes. Talvez falte um ou outro ajuste nesse cenário, mas com as devidas alterações ele soa muito bem. Ao meu ver esse é o cenário mais complicado para mestrar e deve ser deixado por último por Guardiões com pouca familiaridade a fim de que ganhem alguma rodagem antes de mestrá-lo.

Conclusão

O material presente é muito bom. Estou ciente que nem todos os mestres gostam de aventuras prontas e que alguns reclamem de cenários direcionados, mas ao meu ver I.C.S. é uma ótima apresentação para o universo de Rastro e a proposta do jogo. Com certeza vai agradar a jogadores em busca de "algo mais" além de exploração de masmorras. Além disso, a transição de aventuras heróicas para o gênero pulp é menos estranha para jogadores que não estão familiarizados com a ideia de jogar com uma "pessoa comum". Aqui eles terão oportunidade de fazer algo emocionante e heróico, mesmo que isso possa custar suas vidas.

A quantidade de informações contidas no livro também poderão ser usadas pelo Guardião para a construção de sequências e até quem sabe mini-campanhas, ganchos é que não faltam. Portanto a utilidade do livro não se "acaba" quando a última estória for mestrada. Várias regras opcionais são bastante úteis e encontrarão seu caminho em outras aventuras.

Os handouts são bem produzidos, mas eu continuo sentindo falta de mapas no material da Pelgrane. Ao menos a primeira aventura carecia de um mapa da ilha para ser explorado. É sempre válido apresentar aos jogadores um panorama da situação que os situe nos acontecimentos. É claro, não chega a ser algo comprometedor para o livro.

Os personagens prontos são bem definidos dentro da proposta dos cenários, com um background interessante e sem dúvida são uma boa opção para os jogadores que não gostam de construir fichas e "perder tempo" espalhando pontos. Minha única crítica é que esses personagens poderiam ter sido apresentados em fichas já no formato para o jogo, mas novamente compreendo que a proposta era economizar páginas.

A editora Retropunk colocou o produto em pré-venda com previsão inicial de entrega a partir de 26 de setembro, ao custo de R$ 32,90. O livro embora enxuto em quantidade de páginas contém aquilo que o mestre busca em um livro de aventuras sem firulas. Não sei como está a tradução, mas como o tradutor é o Max Moraes, espera-se a mesma qualidade irretocável do livro básico.

O custo benefício é positivo e tenho certeza que qualquer grupo poderá se beneficiar com esse livro.

6 comentários:

  1. Muito boa a resenha, ja comprei o meu, mas a tradução esta um pouco atrasada. Garanto que em breve veremos postados aqui handouts adicionais, como os mapas, hahaha. Que mestre preguiçoso que sou. Abraços

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  2. Comprei o meu já, estou esperando chegar para começar a narrar para meu grupo.

    Queremos handouts.

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  3. Eu particularmente vejo que o livro pode ser transformado em uma mini campanha se narrada de trás pra frente, em sequência, começando com a Dimensão Y e terminando com o Devoradores.

    Já narrei a Dimensão Y para um grupo e estou narrando novamente para outro. É impressionante como grupos diferentes de pessoas podem fazer as coisas tão diferentes umas das outras hehehe

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  4. Eu pretendo usar esse livro com a Estrutura de Cenário Karakoran Passang.

    A primeira aventura servirá para juntar os personagens em torno desse grupo e as outras serão sequência de cenários em que os membros enfrentam as forças do Mythos. Será uima estrutura um pouco diferente do convencional, já que vai envolver personagens que sabem no que estãos e metendo e não investigadores inocentes arrestados para uma circunstância tenebrosa.

    Quero dar um clima meio "O Sombra" nas aventuras, algo totalmente pulp.

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  5. Ah sim, a medida que mestrar coloco aqui os Handouts.

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