sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"A Transformação de Eli" - Uma Lenda bizarra envolvendo loucura, maldições, artefatos e porcos.

Bom, Halloween acabou de passar mas essa estória me parece bem adequada para a ocasião.

Em teoria é uma daquelas estórias verdadeiras, ao menos ela tem a reputação de ser verídica. O mais provável é que seja um tipo de lenda urbana restrita ao interior dos estados de Missouri, Arkansas, Kansas e Oklahoma, mais especificamente na região compreendida nas Montanhas Ozark que até o século passado possuía pequenas comunidades de fazendeiros vivendo em áreas bastante isoladas. O fato de ninguém saber ao certo detalhes concretos, o nome do lugar onde os fatos ocorreram ou mesmo o nome dos envolvidos contribui para a probabilidade da estória não passar de folclore. Mesmo assim, é uma estória bizarra.

A dramática narrativa da "Transformação de Eli" começou a circular pelo centro-sudoeste dos Estados Unidos por volta do início da década de 1930 e ainda hoje é bem conhecida. Alguns situam os eventos um pouco antes, em algum ponto entre 1870 a 1900. Há pequenas variações na maneira como a lenda é contada, mas em essência a estória é sempre a mesma.

A estória é mais ou menos a seguinte:

Havia uma pequena comunidade na parte mais profunda da floresta, formada por batistas que viviam na região mais arborizada das Montanhas Ozark. Tudo ocorreu no auge da Grande Depressão quando o pequeno grupo de habitantes lutava para manter o vínculo estebelecido não apenas pelo sangue, mas por um forte sentimento de solidariedade mútua.
Todos sofriam miseravelmente com o caos financeiro que havia dominado o país a partir de 1929. Todos tinham pequenas fazendas a beira da ruína financeira, mas de alguma forma buscavam se manter juntos e confiantes. A crise teria de passar mais cedo ou mais tarde. O que faltava para uma família era suprido pela do vizinho. Embora as coisas fossem complicadas, eles tinham o suficiente para comer e levar uma vida saudável, o que era mais do que a maioria podia dizer naqueles tempos difíceis.

Eli o personagem principal da estória era proprietário de uma fazenda de porcos em um terreno solitário, triste e afastado na margem dessa comunidade. Apesar de viver a muitos quilômetros do centro do povoado, ele sempre fazia o caminho até lá, ao menos duas vezes por semana: domingo de manhã para a missa semanal e no serviço religioso das quartas-feiras. Eli fazia questão de trazer a família, não importando se fizesse chuva ou sol, na saúde ou na doença. Todos viajavam na carroça até o centro comunitário.

Ele nunca se importou com a política local e jamais demonstrou interesse em ocupar qualquer cargo público apesar de sua opinião ser respeitada. Eli tinha uma vida íntegra, cuidava de sua família e esposa, cumpria suas obrigações e sempre que necessário estendia a mão para ajudar os vizinhos menos afortunados. Ele era ajudante paroquial, sua esposa catequista e ambos auxiliavam a Igreja local, pagando do próprio bolso o custo de reparos urgentes que surgiam de tempos em tempos. Seus três filhos tinham idades entre 12 e 16 anos e eram queridos por todos na comunidade. Eli e sua esposa Emma os educaram pessoalmente e tinham orgulho de cada um deles.

Mas poucas semanas antes de completar 50 anos algo aconteceu com o Irmão Eli. Uma espécie de transformação.

Será que a estátua seria algo parecido com isso?
Alguns de seus amigos mais próximos na Igreja disseram que tudo começou quando os porcos de sua fazenda escavaram uma coisa estranha enterrada na lama. 

Eli contou ter sido despertado pela manhã pelo barulho dos porcos. Ele foi até o cercado e removeu os animais para outra coxilha, e em seguida começou a procurar o que havia causado tamanha agitação. Encontrou uma coisa meio enterrada no lodaçal e usou uma pá para completar o trabalho. Logo algo estranho surgiu. Era uma estátua de madeira escura, embora aqueles que examinaram o objeto, tenham contado que a coisa era dura como pedra e tinha a aparência de ter sido fossilizada. A estátua era de uma figura claramente humana do tamanho de uma criança. A cabeça era grande e desproporcional, com olhos largos e sem uma boca, nariz ou orelhas visíveis. Ela tinha braços finos dobrados sobre o abdomen, as mãos eram delicadas com quatro dedos, sem polegares. As pernas também eram muito finas e estavam juntas de tal forma que pareciam formar um único membro. Colocada de pé a estátua ficava perfeitamente equilibrada em uma superfície plana. Uma das coisas mais estranhas é que nas mãos da estátua havia uma espécie de tubo - que claramente era feito de um material diferente do resto da estátua, e que alguns afirmaram ser metálico.

Eli examinou cuidadosamente a estátua, lavou a superfície com água e sabão, esfregou com um pano para tentar ver mais claramente os detalhes. Descobriu então que o tubo tinha uma tampa encaixada que removida revelou um pedaço de pergaminho com um tipo de escrita curvelínea diferente de tudo que ele já havia visto.

O fazendeiro resolveu ir até a cidade e contar aos seus amigos o que havia encontrado. Ele também teve o cuidado de mostrar o estranho papel ao pastor que examinou o fragmento e disse não ter certeza absoluta, mas que poderia se tratar de algum tipo de dialeto hebraico. A essa altura todos na pequena comunidade já falavam da descoberta e muitos perguntaram se podiam dar uma espiada na coisa.

Eli concordou e alguns de seus vizinhos foram até a fazenda de porcos para ver a estátua e sugerir uma possível origem. Dizem que um rapaz muito sensível que foi até a fazenda sofreu uma convulsão ao ver a estátua e que teve de ser levado às pressas para casa a fim de se recuperar - mas essa pode ser uma liberdade com os fatos. Ninguém conseguiu determinar o que representava a estátua, mas a maioria concordava com a teoria de que ela devia ser um tipo de relíquia indígena. Os nativos americanos povoavam as Montanhas Ozark muito antes da chegada dos colonos europeus e poderiam ter deixado algo semelhante para trás.

Alguns sugeriram que Eli procurasse a gazeta local e que anunciasse a descoberta, mas os fazendeiros das Ozarks são famosos pela reclusão. Envolver forasteiros em seus assuntos pessoais não é da natureza deles e Eli não estava interessado chamar a atenção. Além disso, logo a estátua deixou de ser uma novidade e as coisas voltaram ao normal. Eli transportou o achado para um celeiro e o deixou lá, encostado na parede. O pergaminho ele guardou dentro de casa para ser mostrado a curiosos, amigos e ocasionais visitantes.

Cerca de um mês depois da descoberta coisas estranhas começaram a acontecer na fazenda. Eli acordou certa manhã e quando foi alimentar os porcos encontrou metade deles mortos. Não havia sinais ou marcas nas carcaças, mas ao redor dos olhos, narinas e boca ele descobriu sangue seco. Os animais pareciam ter sido vítimas de algum tipo de hemorragia interna. Os sobreviventes também agiam de forma peculiar. Eles avançavam contra o cercado violentamente chegando a se ferir. Imaginando que estivessem em pânico por causa dos outros que haviam morrido, um dos filhos de Eli abriu o portão para mudar os animais de cercado. Assim que abriu o portão, eles derrubaram o rapaz e correram para fora como se estivessem sendo perseguidos por algum predador invisível.

Deus, como eu detesto porcos...
Levou quase dois dias para encontrar os porcos fugitivos e arrastá-los de volta para a fazenda. Alguns foram encontrados mortos com os mesmos sintomas que os que foram encontrados originamente na véspera. Um dos porcos chegou a atacar um dos filhos de Eli durante a recaptura. Não é totalmente estranho que um suíno de grande porte ataque, sobretudo quando acuado, mas Eli comentou na ocasião com um conhecido, que o comportamento do animal foi incomum já que ele investiu contra eles ao invés de simplesmente tentar escapar.

Alarmado e intrigado pelo animal, não restou outra alternativa ao fazendeiro além de abrir fogo com uma espingarda contra o enorme animal e torcer para que o ferimento o derrubasse. Com o tiro, o suíno tombou, mas mesmo gravemente ferido ainda dava sinais de agressividade. Eli contou que teve de recarregar a arma e desferir outros dois tiros à queima roupa para finalmente matar a criatura. Houve boatos de que os porcos na fazenda pudessem ter contraído raiva, mas Eli jurou que todos os animais estavam saudáveis poucos dias antes e que mesmo antes de receber o tiro de misericórdia havia sangue nos olhos e nariz do animal que os atacou. 

Apesar da grande perda, a carcaça de todos os porcos mortos foram incineradas em uma fogueira para impedir que a doença, seja lá qual fosse, se espalhasse. Os que restaram no cercado ainda se comportavam de modo estranho, mas depois de um tempo acabaram se acalmando.
Uma semana depois desse episódio, a mulher de Eli bateu a  porta da sacristia em busca do Pastor no meio da noite. Ela estava muito nervosa e contou que uma discussão entre Eli e um dos filhos havia resultado em uma briga séria. Eli teria ameaçado o rapaz com um machado de cortar lenha. Ninguém havia se ferido, mas

Eli vinha se comportando de modo estranho desde o que havia acontecido com os animais.

Emma contou que ele murmurava para si mesmo e ria baixo, dizia coisas sem sentido e parecia de alguma forma confuso. Certa noite ela despertou e descobriu que estava sozinha no quarto. Percebeu então que havia luz vindo do celeiro e logo em seguida viu o marido saíndo lá de dentro. Quando Emma questionou o que ele estava fazendo, ele fechou o punho e ameaçou lhe agredir. Eli a advertiu para que não fizesse perguntas e que o respeitasse. Depois de alguns minutos ele pareceu perdido e Emma o levou de volta para a cama onde ele teve um sono agitado e atormentado por pesadelos.

Nos dias seguintes Eli parecia sempre agitado, nervoso e prestes a explodir por qualquer motivo. Ele frequentemente se ausentava de casa e ia até o celeiro onde ficava por horas. Emma contou que em certa ocasião ouviu o marido gritar coisas ininteligíveis e que quando bateu na porta para saber se estava tudo bem ele abriu negando veementemente que tivesse gritado. Pela fresta do portão ela percebeu que havia luz de velas no interior do celeiro e um cheiro nauseante.
Emma não demorou a conectar o estranho comportamento do marido com a relíquia que havia sido encontrada. Eli não queria mais ir ao povoado e começou a ficar dia e noite trancado dentro do celeiro. Certo dia, um dos filhos espiou por uma janela e disse ter visto o pai cantando (ou melhor entoando) palavras sem sentido diante da estátua. Aos pés da coisa haviam velas acesas de todos os tamanhos como se a imagem fosse um ídolo religioso. Foi nessa ocasião que ele discutiu violentamente como rapaz chegando a apanhar o machado e ameaçá-lo para que o deixasse em paz.
Essa estátua de Quachil Uttaus aliás ficou bem legal
O pastor foi de pouca ajuda. Disse simplesmente que Emma deveria tentar conversar com o marido que estava sob forte pressão em virtude do que havia acontecido com os animais. Ele garantiu que iria visitar a fazenda no dia seguinte e que levaria consigo dois amigos para conversar e contemporizar a situação. Emma teve a idéia de visitar um primo chamado Thomas e implorou para que ele viesse até a fazenda para ver como estava a situação.
Quando Emma e Thomas voltaram, reuniram os filhos que confirmaram o que estava acontecendo. Na opinião deles o pai estava sob algum tipo de poder maligno ou maldição. Eles não tinham dúvida que a estátua era a causa mais provável para esse comportamento bizarro. Emma e os filhos, amparados por Thomas decidiram tomar uma atitude e aproveitaram um raro momento em que Eli havia se ausentado para entrar no celeiro. Lá dentro encontraram velas dispostas em um círculo ao redor da estátua.
Um dos rapazes apanhou a estátua e a jogou em uma lareira acesa, no exato momento em que Eli surgiu na porta furioso armado com um machado. Ele gritou palavras sem sentido e tentou atacar sua família com intensão homicida. Felizmente Thomas conseguiu desarmá-lo, mas ainda assim o fazendeiro avançou na direção da lareira para tentar salvar a estátua de qualquer forma. No processo sofreu queimaduras nos braços e no rosto espalhando labaredas pelo celeiro. Os outros finalmente conseguiram dominar o fazendeiro e o arrastaram para o lado de fora aos gritos enquanto o prédio pegava fogo. 
Um dos rapazes correu até o vizinho mais próximo e chamou ajuda. Dois dias depois, Eli acordou em um hospital para onde havia sido enviado para receber tratamento. As queimaduras eram graves, mas por sorte ele não sofreu qualquer infecção e poderia se recuperar. Ele não tinha qualquer memória de seu frenesi assassino. De fato a última semana parecia um grande borrão em sua memória. Embora não apresentasse nenhum sintoma de raiva, ele foi tratado com vacina. Não havia nenhum animal restante para ser dissecado para provar que o incidente fora causado por raiva.

Eli se recuperou totalmente nos meses seguintes e jamais teve um episódio semelhante. A família teria decidido abandonar a fazenda onde viveram o horrível pesadelo. Eles supostamente reuniram seus pertences e partiram com destino ao oeste. Nenhuma evidência da estátua foi encontrada no celeiro que foi inteiramente consumido pelas chamas.

A propriedade foi consagrada pelo pastor e abençoada para que qualquer presença maligna fosse de uma vez por todas neutralizada. Mesmo assim, a fazenda teria se incendiado espontaneamente alguns meses depois uma vez que ela estava deserta.

Se a estória tem algum fundo de verdade não se sabe ao certo. Como eu disse, os nomes e a localização permanecem desconhecidos e como ocorre com a maioria das lendas ninguém é capaz de separar fato de realidade. Mesmo assim, a lenda da "Transformação de Eli" continua sendo contada.

Quando li essa estória foi impossível dissociar os acontecimentos narrados de um típico conto de horror envolvendo antigas maldições. Quer dizer, tudo se encaixa de maneira tão incrivelmente bizarra!   

O que seria a estátua petrificada? De onde ela veio e o que representava? Será que através dela era possível contatar algum tipo de entidade maligna que habitava recessos além do tempo e espaço? Será que Eli foi capaz de invocar essa entidade e ela de alguma forma se apoderou dele?

Se a estória é baseada em algo que realmente aconteceu, então o que transformou um generoso fazendeiro em um maníaco homicida semelhante ao personagem de "O Iluminado", de Stephen King.

Ah, essas lendas urbanas...

2 comentários:

  1. Incrível como essas lendas urbanas se originam nos EUA e passam a fazer parte do imaginário coletivo. Essa estória aliás pode ser vista sob vários ângulos: desde a "estátua" ser na verdade restos de um alienígena fossilizado, passando por uma maldição nativa ou algo demoníaco. Até mesmo algo ligado ao Mythos é cabível no contexto.

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  2. A lenda é tão boa que nem foi preciso passar o "Filtro Lovecraftiano" pra poder ficar mais de acordo com a temática do blog.
    Parabéns pelo artigo!

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