terça-feira, 26 de novembro de 2013

Cthulhu 101-a - Analisando a estrutura de um Cenário Lovecraftiano


Dado o interesse despertado pelo artigo que tratava dos aspectos centrais de Chamado de Cthulhu, pensei em aprofundar um pouco as coisas. Para isso, vou escrever um pouco sobre como é um típico cenário usando para isso três exemplos.

A primeira coisa que o pessoal que está tendo o primeiro contato com o jogo deve ter em mente é que Chamado de Cthulhu (daqui em diante CdC) é um jogo investigativo de horror. Em geral, os cenários apresentam um acontecimento inexplicável que atrai os personagens e acaba abrindo as portas para uma revelação envolvendo a verdade sobre os Mythos de Cthulhu

Como mencionado anteriormente, em CdC os jogadores interpretam indivíduos absolutamente comuns que se vêem de um momento para o outro atraídos (ou pior, arrastados) para situações em que entram em contato com um mundo secreto de absoluto terror. Seja a famosa diletante e socialite, o recluso professor dado a teorias peculiares, o audaz piloto condecorado da grande guerra, o curioso médico-pesquisador em busca da lendária fórmula de regeneração universal... todas essas pessoas comuns, notáveis talvez em sua área de especialidade, acabam cruzando o caminho de algo bizarro para o qual eles não estão preparados. 

São poucos os investigadores que adentram esse mundo aterrorizante sabendo dos riscos. Boa parte nem imagina o tamanho da encrenca em que está se metendo quando aceita tomar parte em uma investigação. De fato, muitos mistérios se iniciam de forma bastante convencional, banal até, mas progridem para uma espiral de loucura à medida que se descobre coisas perturbadoras, assustadoras e perigosas.

Em um bom cenário de Cthulhu lá pela metade da investigação, os personagens começarão a encaixar as pistas coletadas que os levará a alguma descoberta espantosa. A maneira como eles irão lidar com essa verdade os colocará frente a frente com situações limítrofes que irão consumir a sua sanidade e colocar em risco sua integridade física.

Há, é claro, casos em que os personagens, imbuídos de um clamor desbravador ou adeptos de questionamentos procuram conscientemente obter conhecimento, fama, poder... Mas mesmo esses indivíduos agem quase às cegas, sem saber exatamente o que está diante deles.

Um cenário de Chamado de Cthulhu pode ser dividido em cinco partes:

- A Premissa do Mistério
- Obtendo as Pistas
- Juntando as peças do Quebra-Cabeça
- A Descoberta
- A Confrontação

A PREMISSA DO MISTÉRIO


Toda estória, via de regra, se inicia com um acontecimento prévio que repercute ao longo do cenário servindo como fio condutor para o narrador e para as ações dos personagens. A Premissa é aquele acontecimento que desperta a curiosidade dos personagens, que une o grupo ao redor de um objetivo comum, que faz com que os investigadores perguntem: "O que aconteceu?", "Como aconteceu?" e "Por que aconteceu?".

Em geral, a premissa é um acontecimento alheio a ação dos investigadores, é algo do qual eles não tomaram parte direta, sobre o qual não dispõem de todas informações e que eles se sentem compelidos a analisar. A Premissa do Mistério muitas vezes sequer faz parte na narrativa, ela ocorre antes de se iniciar o cenário e apenas o narrador do jogo, o Guardião, possui informações a respeito.

Para expor as partes constitutivas de um cenário, vou usar três exemplos de narrativas tipicamente lovecraftianas. As Premissas do Mistério poderiam ser: 

a) O desaparecimento do famoso arqueólogo, Malcolm Grant que sumiu pouco depois de retornar de uma expedição ao Egito, onde ele realizou escavações.

b) A perda de contato com uma equipe de cientistas da Universidade Miskatonic vivendo em uma estação de pesquisa na Antártida.

c) A suposta maldição de Gerald West, vítima dos ataques de uma bruxa ancestral que torna seus sonhos cada vez mais assustadores e lentamente vem arruinando sua saúde física e mental.

Em cada um desses exemplos, o Guardião propõe uma estória de mistério aos jogadores. Um acontecimento incomum e estranho que precisa ser resolvido. Apenas o Guardião sabe de antemão o que aconteceu em cada situação e os eventos que se juntaram e evoluíram para criar o mistério. O Guardião saberia, por exemplo, que:

a) Grant foi sequestrado por cultistas, membros de uma sociedade secreta chamada Discípulos do Faraó Negro, furiosos com a remoção de um artefato retirado de um templo. Como punição, eles pretendem usar o arqueólogo para que o espírito de um sacerdote (morto há milênios) possa ocupá-lo.

b) os cientistas foram mortos em um brutal ataque de seres da Raça Ancestral que estavam enterrados no gelo e que foram despertados quando a equipe dinamitou uma passagem subterrânea.

c) a maldição foi lançada por uma feiticeira chamada Black Nellie, pouco antes dela ser executada durante a Caça às Bruxas em Salem, no século XVII. Seus fiéis serviçais ghouls, que vivem no subsolo da floresta, desejam levar à cabo a vingança contra todos os descendentes da família West.

No início do cenário, os personagens só tem uma visão parcial dos acontecimentos. A premissa tem que ser atraente a ponto de fazer personagens comuns se tornarem investigadores. Ela tem que desafiar, criar dúvida, suscitar uma expectativa e um desejo de desvendar os fatos, entender cada detalhe e preencher as lacunas.

A premissa nesse caso é a proverbial cenoura agitada na ponta da varinha que faz o cavalo puxar a carroça.

O grupo de personagens precisa ser motivado por fatores aleatórios que estabelecem um elo pessoal entre o grupo e o mistério. Sem uma forte razão para impulsionar as ações dos personagens eles provavelmente não iriam se envolver na estória, deixariam que a polícia, as autoridades ou terceiros fizessem o serviço sujo.

Em nossos exemplos, os grupos de investigadores poderiam ser formados por personagens como:

a) Elvira Bryce, patrocinadora da expedição de Grant ao Egito e rica herdeira com um gosto por aventura. Juntam-se a ela Alfred Jansen, estudante em graduação que tem no arqueólogo um mentor, Henry Pierce, bom amigo e companheiro de Grant em outras aventuras e Alexander Bennet, um obscuro autor que deseja encontrar o arqueólogo, pois este é a chave para concluir seu livro a respeito de Deuses Egípcios. 

Nesse exemplo, cada membro do grupo tem uma razão justificável para se unir e investigar o mistério, mas apenas uma relação já seria suficiente; por exemplo: Elvira, quer saber o que aconteceu com Malcolm Grant, o arqueólogo que conduziu uma expedição ao Egito patrocinado por sua fortuna. Para auxiliar nesse objetivo, ela convoca seus amigos Alfred, Henry e Alexander (que poderiam ter qualquer ocupação e sequer conhecer o desaparecido) para ajudá-la nessa empreitada.

Em nosso segundo exemplo, o grupo poderia ser formado por:

b) Uma equipe de salvamento formada às pressas que deve viajar até a Antártida, descobrir o que aconteceu e prestar socorro. A equipe é formada por George Baker, um especialista em resgate polar, o alpinista Thomas Malone que participou de uma expedição na mesma região anos atrás e conhece a área como ninguém, o jornalista aventureiro Peter McGuiness que está em busca de uma estória para o Boston Globe e finalmente, Susan Petigrew que deseja provar seu valor para a comunidade científica, como bióloga.

Uma das maneiras mais confiáveis de formar um grupo de investigadores é fazer com que cada personagem seja responsável por uma área de especialização dentro da equipe. As credenciais do personagem fazem com que ele seja aceito pelos demais uma vez que a investigação carece de alguém com suas habilidades. Grupos montados dessa maneira são excelentes, sobretudo, em cenários one-shot.

Finalmente no terceiro exemplo, o grupo seria formado por: 

c) Amigos de Gerald West que tentariam resolver o mistério e determinar se há realmente uma maldição. Seu sobrinho, o ex-soldado Alvin Archer que retornou deprimido da Guerra após ter servido nas Ardenas se oferece para ajudar. Ele se une a Marge Schroder, uma poetisa que tem interesse pelo ocultismo, o parapsicólogo Leopold Von Shaw um expert em paranormalidade e finalmente, o antiquário Paul Carill que conhece melhor do que ninguém os segredos da Nova Inglaterra.

Família, parentes distantes, colegas de trabalho, parceiros de serviço, veteranos, alguém que lhe deve um favor... todo tipo de pessoa com um mínimo vínculo com as pessoas centrais no mistério podem ser levados a participar da investigação.


Nessa altura, o grupo de investigadores recém formado precisa entrar em contato com o mistério. É como se houvesse uma espécie de convite para que eles assumam seu lugar na estória; a bandeirada de largada para que a investigação tenha início. 

Há muitas maneiras desse contato acontecer, senão vejamos em nossos exemplos de cenários:

a) Grant deveria comparecer a uma palestra organizada por Elvira Bryce no auditório da Sociedade Histórica, mas ele falta ao encontro. O grupo vai até o quarto de hotel onde o arqueólogo estava hospedado, encontra a porta arrombada, sinais de luta e o aposento revirado. Alguém precisa descobrir o paradeiro do arqueólogo, quem o raptou e porque. Assim se inicia o cenário.

b) O reitor da Universidade Miskatonic reúne os investigadores em seu escritório e conta o que sabe a respeito da expedição. Ele relata que os cientistas estavam buscando por fósseis e que o último contato foi feito há uma semana, ocasião em que alguém informou pelo rádio que a expedição estava em sério perigo. Desde então não houve nenhum outro contato. Alguém precisa ir até lá e descobrir o que aconteceu. Assim se inicia o cenário.  

c) Gerald West envia uma carta para seu sobrinho, Alvin pedindo ajuda diante dos acontecimentos. Alvin, um cético por natureza acaba buscando ajuda de especialistas em sobrenatural reunidos pela Srta Schroder. Leopold e Paul que já se conhecem aceitam ajudar, todos combinam fazer uma visita a propriedade da família West na Nova Inglaterra. Uma vez lá West dá as boas vindas ao grupo e conta o que sabe. Assim se inicia o cenário.

Geralmente, quando o grupo entra em contato com o mistério, ele recebe as primeiras informações, coleta as pistas iniciais, obtém dados e indícios suficientes para começar a investigação. É possível que essas informações sejam fornecidas por alguma pessoa afetada pelo mistério, por alguém que tem interesse em resolver o caso ou por uma testemunha preocupada.

Nesse momento o grupo passa para outra parte de um cenário de Chamado de Cthulhu: "Obtendo as pistas" e "Juntando as peças do Quebra Cabeça".

(cont...)

4 comentários:

  1. Gostei muito da proposta da publicação e já aguardo ansiosamente as partes subsequentes! Estou também muito curioso quanto aos cenários que o senhor criará juntamente com a Terra Incognita para a versão nacional do Call of Cthulhu!

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  2. Parabéns pelo post. Esse é um dos mais valiosos tipos de contribuição que este blog fodástico faz para os jogadores de RPG.

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  3. Ótimo post... Parabéns... Esperando pela continuação...

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  4. Muito bom Luciano, texto pertinente para a nova safra de jogos que teremos nesse Brasilzão !!!!

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