segunda-feira, 23 de junho de 2014

O Viajante Árabe - Quem foi o verdadeiro Ibn Fadlan?


O mais importante testemunho a respeito das atividades dos Rus foi feito por Ahmed Ibn Fadlan, uma personalidade sobre a qual pouco se sabe, mas cuja Risala foi traduzida para vários idiomas. Segmentos chave são citados em livros modernos a respeito dos povos nórdicos. Foi a sua narrativa que inspirou o autor Michael Crichton a escrever em 1976 o livro Devoradores de Mortos, a base para o filme "O 13o. Guerreiro". "Ibn Fadlan constitui uma fonte única," diz Noonan. "Ele estava lá, e foi capaz de descrever em detalhes os acontecimentos. Ele descreve como as caravanas viajavam, como elas cruzavam montanhas e rios. Ele fala a respeito da flora e fauna encontrada na jornada. Ele mostra exatamente como o comércio da época era realizado. O relato é completo, vibrante, algo que remete a realidade."
Ibn Fadlan foi um faqih, um especialista em jurisprudência Islâmica, que serviu como secretário geral da delegação do Califa al-Muqtadir em 921 que visitou o Rei dos Búlgaros, e ofereceu conselhos a respeito de negócios. Eles auxiliaram o monarca a construir um forte e um mosteiro, bem como o instruíram nos princípios da religião islâmica. Os Búlgaros na época eram súditos dos turcos Khazar e falavam um dialeto derivado do árabe. Um grupo migrou para o oeste e foi assimilado pelos eslavos que fundaram o que se tornaria a moderna Bulgária, a oeste do Mar Negro; um outro grupo se estabeleceu no norte do Volga, onde continuaram servindo aos Khazars, cujo domínio no Cáucaso se estendia até o Mar Cáspio, marcando a fronteira com o Império Abássida. Buscando uma aproximação com Bagdá, o Rei dos Búlgaros pretendia uma aliança que o livrasse dos Khazars.
Presumivelmente a fim de evitar passar pelas terras dos Khazar, a delegação do Califa optou por circular a Capital da Bulgária, onde acabaria sendo recebida pelo monarca. Ibn Fadlan se tornou amigo do Rei, e o impressionou a tal ponto que este lhe deu o apelido de kunya, que significa "confiável" - um título honorífico de grande importância e distinção.

A delegação árabe viajou mais de 4000 quilômetros desde Bagdá até o Reino da Bulgária. Em sua Risala, Ibn Fadlan descreve os vários povos que encontrou na sua viagem, sendo que dedicou boa parte de sua narrativa exclusivamente aos Rus. "Eu jamais vi um grupo de indivíduos tão perfeito fisicamente, altos como palmeiras, fortes, saudáveis, com cabelos e pele clara," ele escreveu, "Cada homem tem o seu próprio machado, sua espada, e uma faca que mantém ao alcance da mão a todo tempo. São guerreiros ferozes, mas honrados. Os homens tem tatuagens complexas, feitas com tinta verde escura que lhes cobrem os dedos, os braços e até o pescoço."
O artesanato nórdico e o talento desse povo para a joalheria é bem descrito por Ibn Fadlan que fala também da presença de mulheres Rus vestidas com seda, ouro e prata., "Os tesouros mais valiosos para as mulheres são contas de vidro verde, que elas usam ao redor do pescoço. Elas usam essas peças como moeda e trocam pelo nosso dirham de prata. Essas contas de vidro são perfuradas e usadas ao redor do pescoço em longos colares. Elas usam também broches ovalados presos às capas, amarradas aos cabelos longos ou presas à bainha das facas que pendem na cintura". Ibn Fadlan descreve "armaduras de couro reforçado que mesmo as mulheres gostam de usar ara proteção".
Apesar de elogiar os Rus, Ibn Fadlan não os poupou quanto aos seus hábitos higiênicos: "Eles devem ser as mais imundas criaturas que Deus colocou na Terra," observou. Embora tenha reparado que os Rus lavavam mãos, face e cabelos ao menos uma vez ao dia, ele ficou perplexo com a maneira como o faziam: "é uma das coisas mais nauseantes que já testemunhei" escreveu o árabe ao contar que os Rus usavam uma mesma bacia comunal onde todos se lavavam, um costume Germânico disseminado entre os povos nórdicos. Apesar disso, ele afirmava que as roupas eram mantidas limpas e sempre que necessitavam recebiam costura.

O contato com o islã fez com que alguns Rus abraçassem a religião, embora Ibn Fadlan astutamente percebesse que velhos hábitos eram difíceis de serem esquecidos: "Eles gostam muito de carne de porco e de bebidas fermentadas, e é um grande sacrifício para eles se abster desses alimentos."
A maioria dos Rus continuava a observar suas práticas religiosas, que incluíam a oferta de sacrifícios. Ibn Rustah menciona o trabalho dos sacerdotes Rus que viajavam com os comerciantes e que tinham um alto status entre seus compatriotas. O árabe testemunhou um ritual no qual mercadores Rus celebraram a travessia segura pelo Volga em 922. Ibn Fadlan descreveu como eles rezavam para seus deuses misteriosos e ofereciam figuras de entalhadas em madeira que eram lançadas na água. .
Ele também escreveu a respeito de um dramático funeral ocorrido nas margens do Volga, em que um chefe Rus foi cremado com seu barco e tesouros. Sua descrição dessa cerimônia é tão rica que por muito tempo foi considerada a mais fiel já feita - "Tesouros de ouro e prata, belas armas e ornamentos jaziam aos pés do velho chefe que foi colocado deitado no centro do barco de fundo chato. Haviam jarros com bebida forte e carne salgada, bem como seu cão favorito, um boi, um pônei e os corpos de duas garotas que em vida foram suas escravas, ambas voluntárias para acompanhar seu senhor na jornada do pós-vida. O barco foi embebido com alcatrão e quando chegou ao meio do lago foi incendido ardendo furiosamente até afundar levando o líder e sua riqueza para as profundezas". 
Além disso, Ibn Fadlan também comentou que os Rus tinham um fraco para a bebida e para as brincadeiras agressivas ou de conotação sexual. Para um devoto religioso, esse comportamento era chocante, mas o árabe compreendia que aqueles eram costumes tolerados: "Os homens gostam de contar vantagem, piadas e estórias sobre suas proezas amorosas. Nem todas são verdadeiras, mas eles se divertem com isso".
O cronista devotou boa parte de sua narrativa elogiando as habilidades marciais dos Rus. "Estes homens são incrivelmente valentes e a coragem não esmorece em momento algum". Ele comentou que cada um deles carregava um arsenal de armas letais, incluindo lâminas, escudos, armaduras, adagas, machados e martelos. Ele percebeu que as armas eram muito bem feitas e que a lâmina das espadas permanecia afiada por um bom tempo, mesmo com o uso contínuo.

Embora as relações entre os comerciantes Rus e povos árabes tenha sido em geral pacífica, houve algumas situações delicadas que descambaram para violência. Nas proximidades do Mar Cáspio, uma tribo de Rus se voltou contra muçulmanos em pelo menos duas ocasiões durante o século X. Eles saquearam a cidade de Abaskun em 910, e depois em 912 a cidade de Baku, matando e conquistando espólios. Nessa campanha em especial, oficiais árabes teriam sido enviados com tropas para capturar os Rus tratados como bandidos. Al Muhadi, um historiador da época comenta que os Khazar emitiram uma ordem de captura dos "estrangeiros de cabelos e pele clara, acusados entre outras coisas de atacar, roubar e assassinar cidadãos indefesos sob  a proteção Khazari". Desse grupo rebelde, alguns poucos teriam escapado para a Bulgária onde foram capturados e executados pelo Rei aliado dos árabes. Mas estes foram casos isolados.
Ibn Fadlan firmou uma amizade duradora com os Rus e chegou a empreender a longa viagem até o Norte da Europa e a terra dos Nórdicos. A viagem teria ocoriido em 929, com a primeira parte o levando até Córdoba, na Península Ibérica, à época governada pelos árabes. Desse ponto, existiam rotas de comércio consolidadas que levavam mercadores rumo a Escandinávia com relativa facilidade. Contando com amigos e aliados entre os Rus que ele havia conhecido na Ásia, Ibn Fadlan foi recebido com respeito e curiosidade pelos nórdicos em sua visita. Ele se estabeleceu na cidade mercantil de Hedeby, na atual Dinamarca, onde se impressionou com o tamanho da cidade. 

"Hedeby era barulhenta, cheia e suja, com os habitantes pagãos pendurando animais para sacrifício em postes de madeira no meio das ruas, em frente das casas. As pessoas se alimentam de peixe, porque há pesca abundante. Apesar de ser uma cidade grande, as pessoas parecem se conhecer e são normalmente amistosas e curiosas quando encontram alguém diferente deles próprios. Eles constantemente fazem perguntas a respeito de minha terra natal e se mostram intrigados com nossos costumes".   
Como Ibn Fadlan escreveu, as diferenças culturais eram incrivelmente vastas: "Uma terra onde o sol raramente brilha sobre a cabeça de seus habitantes acaba conspirando para uma atmosfera opressiva", escreveu ele quando a saudade de sua terra já se fazia sentir. O cronista resolveu retornar para a Espanha moura seis meses após a sua visita a Dinamarca e quando chegou a Córdoba escreveu várias cartas a respeito dos costumes e tradições de seus anfitriões do norte gelado.


Hoje, mais de um milênio depois, historiadores ainda buscam nas cartas escritas por Ibn Fadlan, informações a respeito do contato travado entre duas culturas muito diferentes que um dia andaram lado a lado. As moedas árabes encontradas pelos arqueólogos na Escandinávia (mais de 10 mil delas!) constituem uma prova inequívoca de que o comércio entre árabes e nórdicos floresceu por algum tempo e que os dois povos se beneficiaram com esse inusitado contato.

Contudo, o maior débito que os escandinavos tem para com os povos muçulmanos repousa em manuscritos que revelam como era a vida de seus antepassados. Neles, vozes silenciadas há séculos podem ser ouvidas e compreendidas por pesquisadores interessados em conhecer o passado dos Rus e as suas inúmeras façanhas. 

2 comentários:

  1. Interessante esse contato dos nordicos com os arabes. Tem histoeiadores que afirmar que os nórdicos tinham contato com indigenas norte americanos.

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  2. Estou terminando de ler este livro (devoradores de mortos) e é espetacular. Fiquei sabendo do filme e mal posso esperar para assisti-lo. Parabéns pela matéria e obrigado por compartilhá-la!

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