quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Horrores do Abismo - Criaturas dos Mythos de Cthulhu habitando as profundezas marinhas

E já que estamos falando esse mês inteiro de Abismos e Mares profundos que tal encarar algumas criaturas e entidades dos Mythos que habitam os recessos submarinos.

Essa é uma reedição de um artigo postado originalmente em 2010, com um adendo de mais três criaturas.  

*     *     *

O Universo imaginado por H.P. Lovecraft é rico em seres medonhos que habitam os mares revoltos e escuros.

Quando falamos das criaturas dos Mythos que vivem no mar, imediatamente nos vem a mente os Deep Ones, Dagon e o próprio Cthulhu.

Mas há outros horrores menos conhecidos criados pelo círculo de escritores que expandiu as criações de Lovecraft e apresentaram toda uma hoste de monstros habitando as profundezas abissais.

Aqui estão alguns deles.

Habitante das Profundezas (Raça Independente Serviçal)
Baseado no conto "The Horror from the Bridge" por Ransey Campbell


"A coisa era abominável, com mais de dois metros de altura se equilibradando em nadadeiras ventrais que permitiam a ela ficar de pé. Seu corpo sinuoso e coberto de escamas gotejava uma espécie de óleo de odor nauseante. Tinha vários tentáculos que serpenteavam no ar chicoteando e agarrando à esmo. Sua cabeça era estreita dotada de guelras e protuberâncias ósseas que formavam uma espécie de coroa no topo. Seus olhos eram grandes e a boca rasgada de lado a lado tinha enormes dentes, finos e pontiagudos".

Habitantes das Profundezas são uma raça de criaturas anfíbias que servem aos Grandes Antigos, particularmente aqueles associados a água: Cthulhu, Dagon, Hydra, Ythogtha e Zoth-Ommog. Essa raça possivelmente foi criada pela magia ou ciência dos Abissais e em algumas ocasiões são vistos na companhia da raça de homens peixe, vivendo nas suas cidades submarinas ou pequenos vilarejos costeiros com populações de híbridos.

Eles habitam formações rochosas, fossas e cavernas subaquáticas no fundo do oceano. Em seu habitat conseguem suportar a esmagadora pressão das profundezas. Na superfície eles não ficam tão à vontade, mas são capazes de sobreviver por várias horas.

Magias e rituais antigos permitem que essas criaturas sejam invocadas para espalhar o caos e a destruição. Comunidades pesqueiras formadas por híbridos de Deep Ones por vezes conhecem o método de invocação dessas criaturas. Elas são chamadas para enfrentar inimigos e trazer-lhes a destruição.

A carne dos habitantes das profundezas é imune a maioria dos ferimentos físicos, mas quando um deles é morto, o corpo se decompõe rapidamente deixando apenas um fedor nauseante de peixe.... o único sinal de sua existência.

Crias do Abismo Verde (Raça Independente)
Baseado no conto "The Spawn of the Green Abyss" por C. Hall Thompson



"Lembrava uma enorme lesma ou um caracol com uma carapaça grossa e coreácea de cor limosa cobrindo sua forma repulsiva. A concha era resistente e dura, protegendo a parte interna bem mais frágil. Do corpo pálido e inchado brotavam pequenos tentáculos que podiam se estender quando necessário para agarrar e manipular. A criatura os usava para capturar suas presas e carregá-las para a pequena boca circular semelhante a um tubo recoberta de pequenos e afiados dentes".

Essas criaturas habitam os mares de um outro mundo conhecido apenas como Abismo Verde formada por intermináveis oceanos de cor esmeralda e céus cinzentos cobertos de tempestades elétricas. Eles conhecem magias que lhes permitem abrir portais e viajar até os mares da Terra.

Eles vivem em uma sociedade sub-aquática altamente evoluída e inteligente, são servos devotados de Zoth-Syra, a mãe de toda a raça.

Os habitantes do Abismo Verde são carnívoros que atravessam enormes distâncias utilizando portais para se alimentar em nossos mares. São predadores vorazes que atacam cardumes inteiros sem distinguir outros predadores como tubarões e baleias. Eles preferem se manter em águas profundas, mas ocasionalmente podem ser atraídos à superfície em busca de alimento. Embora seres humanos não sejam uma presa comum, embarcações podem ter o azar de cruzar com uma dessas criaturas.

Crias do Abismo Verde são capazes de produzir estranhos sons, semelhantes ao canto de baleias que ocasionam um efeito hipnótico. Indivíduos sob a influencia dessas criaturas tendem a obedecer suas ordens. É possível que estórias sobre navios fantasma em perfeito estado com tripulações desaparecidas em alto mar, tenham ligação com o ataque dessas criaturas.

Em raras ocasiões embarcações e tripulações inteiras podem ser deslocadas através dos portais dimensionais que ligam a Terra ao Abismo Verde. Indivíduos nessa situação raramente conseguem retornar ao seu ponto de origem.

Hydra (Grande Antigo)
Baseado no conto "Hydra" por Henry Kuttner



"Parecia meramente um interminável Mar de Sargasso de uma coloração verde doentia. Mas de forma repentina a massa inteira se moveu como uma coisa viva, crescendo e se erguendo das águas como se fosse um mítico leviatã. A coisa não tinha apenas um par de olhos, tinha centenas que surgiam e desapareciam reabsorvidos pelo corpo. Não tinha apenas uma boca, mas centenas que se abriam e murmuravam antes de sumir".

Esta Hydra não deve ser confundida com a enorme matriarca dos Abissais que tem o mesmo nome.

Ela é composta de quilômetros de matéria que à primeira vista parece ter origem vegetal, semelhante ao sargasso. Na realidade essa matéria é uma espécie de protoplasma flutuante que forma a massa corporal da entidade. Se necessário, Hydra é capaz de moldar esse protoplasma em outras formas conforme sua necessidade.

Hydra habita uma dimensão alienígena fora do tempo e espaço convencional, mas em determinadas épocas (possivelmente reguladas pelas estrelas) surge fisicamente nos mares da Terra.

Felizmente sua permanência é breve, contudo qualquer embarcação corre grave risco se atravessar a área ocupada pela criatura. Hydra é uma criatura parasítica que absorve a mente de espécies inteligentes, ela é capaz de captar emanações psíquicas. Suas vítimas são então atraídas para fora das embarcações, despertando sobre uma massa de sargaço que se estende a perder de vista e flutua. A Hydra absorve lentamente a memória de suas vítimas até finalmente decapitá-las uma vez que a cabeça é a única parte que interessa à criatura.

Normalmente Hydra só pode ser contatada através de transe profundo ou projeção astral. Um complexo ritual de meditação intitulado "Ritual que separa alma e corpo" permite que um viajante astral inadvertidamente visite a bizarra dimensão desta entidade. Explorar a dimensão de Hydra é uma experiência perigosa e assustadora, o lugar é frio e úmido, imerso em um denso nevoeiro. Quando o nevoeiro cessa, o viajante descobre que está caminhando sobre uma interminável massa de sargasso, que na verdade é o corpo de Hydra. O corpo astral não pode ser ferido, contudo isso abre as portas para que a criatura venha até o viajante e o transporte para sua dimensão quando bem entender.

Ao longo das eras, feiticeiros tentaram fazer acordos com a criatura, mas ela não parece ter o mínimo interesse em cultos ou na adoração de seres inferiores.

Ubb (Criatura Única)
Baseado no conto "Out of Ages" por Lin Carter



"Sua forma se estendia por metros e se perdia no turbilhão submarino a medida que ele nadava velozmente. Seu corpo era musculoso e com grossas escamas cinzentas. O pai de todos os vermes... o imortal Ubb".



Ubb é chamado de o Pai dos Vermes e tem relação direta com a raça dos Yuggs, criaturas marinhas que habitam mares profundos a pelo menos 4000 metros. É possível que Ubb seja uma espécie de progenitor da espécie ou ancião com milhares de anos de idade.

De qualquer forma ele é maior que todos os outros de sua espécie, e age como um servo de Zoth-Ommog, entidade venerada pelos Yuggs. Segundo o mito, o Grande Antigo dorme em sua tumba ancestral próxima a Ilha de Ponape no Pacífico tendo Ubb como seu fiel guardião.

Venerado por tribos ferozes e degeneradas na Polinésia, Ubb tem a forma de uma colossal moréia ou de um verme com mais de 100 metros de comprimento.

Raramente ele é visto na superfície, mas quando é invocado pelos seus cultistas surge à noite para receber sacrifícios depositados em canoas ou na areia das praias. Ponape é o centro do culto praticado por selvagens aborígenes que adoram Ubb pela sua força e fúria. Segundo o mito compartilhado por estas tribos, Ubb vive em uma grande caverna submarina conectada ao túmulo de Zoth-Ommog nas profundezas.

Zoth-Syra (Entidade Única)
Baseado no conto "The Spawn of the Green Abyss" por C. Hall Thompson



"Uma horrenda aberração, maior que todos os outros a ponto de fazê-los parecer meros anões. Zoth Syra é a Mãe de todas as bestas nascidas no Abismo Verde progenitora de uma infinidade de crias famintas".

Zoth-Syra é a mãe de todas as crias do Abismo Verde, uma entidade venerada e respeitada por toda sua espécie que habita os vastos mares do mundo conhecido como Abismo Verde. Segundo alguns teóricos dos Mythos Ancestrais, o Abismo Verde é na verdade um planeta na órbita da Estrela de Xoth, na Constelação de Touro. É possível também que a estrela mais proxima seja Ymar, contudo a localização exata do mundo verde é matéria de debate. O Abismo Verde é um mundo de mares cor esmeralda e de céus plúmbicos cobertos de densas nuvens carregadas de energia elétrica propensas a furiosas tempestades.

Zoth-Syra é tratada como a Deusa única deste mundo, uma entidade colossal que vive sob as águas em profundidades insondáveis. A grandiosa monstruosidade sempre está acompanhada de suas crias que satisfazem prontamente seus menores desejos. Sua função principal é perpetuar a espécie gerando novas crias e para cumprir essa missão ela é fecundada e alimentada pelos seus acólitos continuamente.

O canto de Zoth-Syra é tão alto que pode ser ouvido à quilômetros no Abismo Verde. Assim como suas crias ela exerce um efeito hipnótico na mente de todos que ouvem a cacofonia por ela produzida.

Zoth-Syra é quem ensina às suas crias as magias que permitem abrir portais dimensionais para outros mundos entre os quais a Terra. Ao contrário de suas Crias, a Entidade jamais cruzou um portal para a Terra, mas se um dia tal coisa acontecer sem dúvida trará graves consequências para a vida no planeta. É possível que Zoth-Syra tenha um parentesco com as entidades de Xoth, entre as quais Cthulhu, Zoth-Ommog e Ghatanathoa.

Monstro de Martin's Beach (Raça Menor Independente)
Baseado no conto "The Horror at Martin's Beach" por Sonia Greene e H.P. Lovecraft



"A criatura tinha estranhas deformidades anatômicas como rudimentares membros inferiores e barbatanas semelhantes a pés terminando em seis dedos separados. Ela media cerca de 50 pés da barbatana traseira até a ponta da cabeça. A boca era larga como a de uma baleia capaz de engolir um homem adulto. Ela possuía um único olho central".

Em 1922, a tripulação do barco de pesca Alma, comandado pelo Capitão James Orne avistou em alto mar na costa da Nova Inglaterra uma criatura que julgaram ser uma baleia. Após uma árdua luta, a tripulação teve sucesso em abatê-la. Em seguida a carcaça foi rebocada até Martin's Beach onde diante de estupefatos curiosos descobriram se tratar de um animal desconhecido, semelhante a um cetáceo mas com bizarras irregularidades. Biólogos marinhos foram chamados para inspecionar o animal e estes relataram se tratar de um filhote.

Posteriormente a carcaça foi preservada e apresentada como curiosidade pelo próprio Capitão Orne que cobrava ingresso para aqueles que desejavam vê-la. Após uma temporada pelo interior, o Capitão retornou a Martin's Beach para um festival local. Na ocasião vários banhistas foram atacados por um misterioso animal em mar aberto. Um grupo de resgate chefiado pelo próprio Capitão Orne tentou descobrir o que vinha acontecendo, mas todos acabaram se afogando em uma acidente no mínimo estranho visto que todos eram experientes homens do mar.

Segundo testemunhas um enorme animal semelhante àquele capturado pelo Alma teria sido visto na área e foi o causador da tragédia. Desde então não houve outros avistamentos do Monstro de Martin's Beach, contudo é possível que a criatura e outras de sua espécie ainda habitem a costa da Nova Inglaterra.

Phisious (Raça Menor Independente)
Baseado no conto "The Deep Threat" de William Summer.


"Media pouco mais de um metro e nadava de forma delicada ao largo da escotilha como se estivesse estudando o veículo e examinando a forma. As barbatanas curtas se agitavam como asas, embora fossem pequenas demais para sustentar uma criatura com o corpo tão maciço. Tinha uma forma ovalada, com uma cabeça enorme em destaque, de onde se sobressaia uma boca vertical cheia de dentes curtos e afiados. Ela abria e fechava e os olhos de um azul pálido pareciam incrivelmente inteligentes para um peixe... se é que aquela coisa era realmente um peixe". 

Phisious são uma raça de predadores de alta profundidade que habitam as trincheiras oceânicas e abismos insondáveis. Não há um consenso a respeito de sua origem ou natureza, é possível que a raça seja alienígena, uma vez que são totalmente estranhos a natureza das criaturas marinhas encontradas em nosso planeta.

A espécie foi observada apenas uma vez por cientistas trabalhando à bordo da estação experimental Deep Six, estabelecida no Pacífico Sul. O objetivo da missão era estudar os efeitos da longa permanência e exposição humana ao ambiente submarino. O contato com os Phisious se deu acidentalmente quando um submarino encontrou um grupo dessas estranhas criaturas em um ambiente com pressão de 60 mil libras por metro quadrado. Demonstrando uma enorme agressividade, as criaturas atacaram e avariaram o veículo que conseguiu retornar a base seriamente danificado. Posteriormente, uma segunda missão que buscava obter um espécime para estudo também foi atacada resultando na perda de um submarino e de três tripulantes. Depois desse trágico incidente, a estação foi atacada por vários destes seres. A comunicação com a superfície foi cortada e um barco de resgate supostamente destruído pela ação dos Phisious. Ao fim do ataque a estação foi arrasada por uma explosão, acarretando em imenso prejuízo humano e financeiro. 

Câmeras de vigilância recuperadas dos destroços anos depois revelaram a natureza do ataque e confirmaram que a estação não foi destruída em um acidente como muitos acreditavam. Analistas que tiveram acesso às filmagens concluíram que as ações dos Phisious sugerem um enorme grau de organização e tática de bando, o que sugere se tratar de criaturas muito inteligentes.

Não houve contatos posteriores com essas criaturas, mas autoridades de estudo submarino desde então buscam compreender a natureza dos Phisious afim de se precaver de outros incidentes. A questão é tratada com enorme seriedade uma vez que qualquer contato pode ter graves consequências.

Khamir Suma-Khuri (Grande Antigo)
Baseado no Conto "From the Abyss" de Rudolph P. Blatt

"A medonha estátua de basalto negro traduzia todo aquele horror primitivo que os habitantes das Andaman haviam aprendido a acreditar e temer. Era chocante e surreal, uma peça única talhada numa forma nociva à noção de sanidade, amoral para qualquer percepção de civilidade. Representava um monstro serpentóide, talvez um verme imenso repulsivo, com uma imensa cabeça negra coroada por uma crista de chifres e dotada de olhos globulares. Ao redor dessa abominação os Vinayaka dançavam e evoluíam em sagrada e doentia adoração, era afinal seu Deus profano. O Deus do Inferno Submerso que devorava as almas afogadas".   


Pouco se sabe a respeito dessa entidade medonha, além dele ser um dos mais obscuros Grandes Antigos que habitam nosso planeta.

Khamir Suma-Khuri habita as profundezas do Oceano Indico, mais especificamente na Baía de Bengala que separa a India e o Sri Lanka. Esse horror era cultuado exclusivamente por uma tribo de humanos degenerados - possivelmente com sangue dos Tcho-Tcho, na sinistra Ilha de Andaman. Os shamans conheciam rituais de invocação que permitiam despertar brevemente Khamir Suma-Khuri e fazer com que ele viesse à superfície para receber sacrifícios e os louvores de adoradores.

A primeira menção a esse horror marinho data  de 1824 quando várias embarcações mercantis fazendo a rota entre o porto de Chenai na India e Port Blair nas Ilhas Andaman desapareceram sem deixar vestígios. O único sobrevivente de uma dessas embarcações foi resgatado delirante por um mercante português e deu um testemunho dramático a respeito de um monstro colossal que destruiu o barco em que ele viajava que havia partido de Port Blair com destino ao subcontinente indiano.

O sobrevivente relatou que pouco antes de deixar seu porto de origem um feiticeiro da proscrita tribo Vinayak havia realizado um tipo de ritual no qual apontava repetidas vezes para o navio e gritava palavras em um idioma gutural. Apesar dos britânicos baseados na Índia terem desconsiderado o relato sobre o alegado monstro marinho e maldições de feiticeiros como sendo, tão somente, delírios de um homem que passou por situações extremas, as autoridades nas Andaman levaram à sério o relato. Um grupo de militares que ocupava a ilha e controlava a Colônia Penal de Ross viajou até a face oste da ilha onde encontrou a Tribo Vinayak que venerava uma enorme estátua representando uma divindade primitiva identificado como Khamir Suma-Khuri (que traduzido do dialeto Shompen significa "O Deus do Inferno Submerso"). A expedição massacrou a tribo e destruiu o ídolo de pedra, pondo fim aos desaparecimentos de embarcações na rota.

Em 1943, durante a Ocupação Japonesa das Ilhas, duas embarcações com a bandeira imperial também desapareceram misteriosamente. Na ocasião houve rumores de que feiticeiros da mesma tribo tiveram êxito em despertar o Deus das profundezas para atacar os invasores responsáveis por violentas perseguições durante sua permanência na ilha. O comandante da Marinha Imperial, Almirante Nagata ordenou a execução dos últimos remanescentes da tribo que ainda viviam na Ilha. Supostamente isso terminou com os incidentes.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Náufragos na Ilha do Demônio - Uma incrível história de sobrevivência



Os mares sempre foram uma inspiração para estórias fantásticas a respeito de terras místicas perdidas entre as ondas e o horizonte distante. Parece haver algo de incrivelmente fascinante na exploração de terras longínquas e misteriosas, algo nos compele a buscar esses recantos na vastidão dos sete mares à procura de ilhas escondidas, onde florescem civilizações exóticas, povos desconhecidos e riquezas sem fim. Talvez nessas ilhas estejam ocultos antigos segredos, tesouros inestimáveis, maravilhas sem paralelo ou ainda perigos indescritíveis, mas seja o que for, elas continuam nos atraindo.

Mas o que acontece quando uma pessoa encontra um desses lugares lendários? O que acontece quando um navegador se perde em uma paisagem que jamais foi tocada por pés humanos? Encontra praias, florestas e recantos jamais trilhados pelo homem. Que tipo de maravilhas ele irá testemunhar e que horrores serão revelados? Para encontrar as respostas para essas questões, basta buscar a estória de uma jovem nobre francesa chamada Marguerite de La Rocque de Roberval, que experimentou uma série de acontecimentos em sua vida que culminaram com ela sendo lançada em uma ilha lendária, e segundo muitos, amaldiçoada, habitada por demônios e monstros aterrorizantes.

Essa é uma narrativa verdadeira sobre uma aventura notável numa ilha deserta e a prova definitiva da resistência do homem diante das adversidades.  

A Ilha do Demônio sempre foi um lugar legendário cuja existência era sussurrada por marinheiros. Segundo as superstições, era um lugar aterrorizante, onde a fronteira entre o reino do sobrenatural e o real se mostrava mais tênue e onde horrores inenarráveis se escondiam. Ninguém sabia sua localização exata, mas segundo as estórias, um dos maiores temores dos homens do mar era navegar à esmo e aportar em suas enseadas ermas e praias de pedras escuras. Aqueles que lá chegavam, raramente viviam para contar o que encontraram. A Ilha do Demônio ficaria no Golfo de Saint Lawrence, próximo da Costa de Newfoundland, no atual Canadá. As primeiras menções à sua existência factual vem de uma carta náutica francesa que a identificou com o nome de Ile des Démons.

O nome nem um pouco simpático surgiu com a primeira expedição a desembarcar em sua costa em 1508 e que fez detalhadas descrições do lugar. Os exploradores franceses custaram a encontrar um lugar seguro onde aportar. Ao achar uma enseada mais rasa, julgaram que ali seria um lugar adequado, e baixaram um bote, mas a medida que o grupo remava, espantou-se com o recorte escarpado de uma montanha negra que lembrava em aparência a forma corcunda e chifruda de um demônio gótico. Concluíram que aquele lugar devia ser assombrado, pois o mero acaso ou a natureza seriam incapazes de talhar o relevo irregular com formato tão sinistro. Além disso, ouviram de longe murmúrios do que julgaram ser almas penadas e fantasmas.

A praia estava coberta por uma neblina densa de aspecto cinzento que parecia rolar e se acumular além da arrebentação. Ao se aproximar o bote da expedição se chocou com rochas negras e pontiagudas ocultas sob a água turva. A avaria era séria e o barco necessitava de reparos imediatos. A praia se abriu diante deles, revelando um solo pedregoso e estéril, mais adiante havia uma floresta de árvores fechadas e sombrias. Os homens agarraram seus crucifixos e pediram imediatamente proteção, pois os ruídos que vinham daquela mata densa pertenciam a criaturas que eles desconheciam. Apesar do medo primitivo que os dominava, os marinheiros precisavam adentrar a floresta para obter suprimentos e madeira para consertar o bote. Além disso, seu comandante não permitiria que eles simplesmente dessem meia volta - aquela, afinal de contas, era uma Expedição de Descobrimento e eles estavam ali para explorar as ilhas daquela nova possessão reclamada pela França.

Segundo o diário do comandante Gaston Dupré Duvichy, os homens ficaram na Ilha por apenas cinco horas, tempo suficiente para avançar inseguros para seu interior, desafiando vários perigos. Relataram ter encontrado alcateias de lobos de tamanho anormal, disseram que a variação de temperatura na ilha era desconcertante, com lugares muito mais frios do que outros e contaram que o som dos murmúrios não parou em um único momento desde sua chegada. Para piorar, a ravina escura com formato diabólico parecia provocá-los, como se os desafiasse a se aproximar de seu destino. Os marinheiros concluíram que avançar pela mata era uma loucura: com certeza, demônios viviam lá dentro, na companhia de animais hostis e todo tipo de horror conhecido e temido pelo homem. Aterrorizados e próximos de se amotinar, os homens imploraram para retornar ao barco.

Duvichy no entanto, ordenou montar um acampamento enquanto um grupo de cinco homens seguisse em frente para buscar uma fonte de água potável. O tempo passou e ninguém retornava. De repente, um grito de gelar o sangue irrompeu da floresta. Dois marinheiros e o comandante avançaram com as armas em riste à procura dos companheiros desaparecidos. Não os encontraram! Ao invés disso, relataram ter achado uma clareira onde havia sinais inequívocos de uma luta selvagem e manchas de sangue. Os corpos haviam sido arrastados para uma parte ainda mais escura da floresta. Enquanto decidiam como proceder, um enorme vulto negro se esgueirou pela vegetação e agarrou um dos marinheiros que desapareceu gritando. Retornaram ao acampamento e decidiram se manter na praia com as parcas provisões coletadas, fazer o reparos e partir o quanto antes.

Ao chegar ao barco, os sobreviventes contaram tudo o que haviam visto e o cartógrafo responsável pelo mapa batizou a Ilha com o nome que julgou adequado: Ilha do Demônio.    


Depois disso, a fama da Ilha apenas cresceu. Não apenas por conta dos relatos coloridos dos marinheiros que pisaram em seu solo maldito, mas por que Duvichy era um homem admirado pela sua coragem e sobriedade. Sem dúvida ele não iria exagerar ou inventar tal experiência.

Foram necessários trinta e dois anos para que uma nova expedição fosse formada com o intuito de explorar a baia onde ficava a Ilha do Demônio. O Comandante era Jean-François de La Rocque de Roberval, um dos mais experientes navegadores e exploradores da época. Na Primavera de 1542, a expedição composta de três embarcações seguiu para o Novo Mundo. Roberval havia sido apontado como Intendente Geral na Nova França pelo Rei Francis I. O objetivo da missão era explorar e estabelecer uma colônia na região de Quebec, no atual Canadá. A concorrência de outros reinos era grande e a França precisava estabelecer um porto seguro no outro extremo do Atlântico para suas naus. Do contrário, ela seria prejudicada na disputa pelas novas terras recém descobertas.

Acompanhando Roberval na árdua viagem estava sua tripulação de confiança, cerca de duzentos colonos, alguns cavalos, animais domésticos e sua sobrinha, uma jovem de descendência nobre chamada Marguerite de La Rocque de Roberval. O comandante era o guardião legal da jovem. A natureza da relação entre os dois é matéria de discussão até os dias atuais, com alguns historiadores afirmando que Marguerite seria na verdade filha ilegítima do capitão, sua irmã mais nova ou mesmo sua amante.

A vida de Marguerite é um verdadeiro enigma, sobretudo o motivo pelo qual ela se sujeitaria a uma viagem tão perigosa e com perspectivas remotas de sucesso. Em primeiro lugar, Marguerite era bela e jovem, na idade de buscar um pretendente e desposar. Além disso, era rica. Seus pais haviam falecido em um trágico acidente, deixando para a filha, única herdeira de sua fortuna, vastas propriedades no sul da França, na região de Périgord e Languedoc. A resposta para a questão, por que uma moça educada e nascida em berço de ouro arriscaria sua vida em uma Expedição Naval, talvez jamais seja obtida, mas muitos apostam que ela se sentia compelida a essa jornada. Talvez ela fosse consumida por um espírito de aventura, ou quem sabe, estivesse tentando escapar de alguma situação delicada em seu lar. É possível ainda que Roberval a obrigasse a acompanhá-lo, muito embora os textos da época afirmassem a personalidade da jovem era nada menos que obstinada.

Seja qual for sua motivação, lá estava ela, à bordo da nau capitânia, dividindo um compartimento apertado, sujo e impessoal com simples colonos, sendo jogada de um lado para o outro pelo mar inclemente. Sem dúvida deve ter sido um tremendo choque de realidade para uma jovem de família nobre, que havia crescido em meio ao luxo, sendo paparicada e mimada desde a infância. Mas a despeito de sua criação, logo ficou claro para todos que Marguerite se saía bem executando tarefas mundanas. Além disso, circulavam rumores que ela havia se deixado seduzir por um tripulante chamado Etienne Gosselin com quem iniciou um tórrido romance. Existem poucas informações sobre a história de Gosselin, com teorias de que ele seria um cavaleiro ou soldado, ou mesmo um simples carpinteiro ou marujo à bordo. 

A despeito de sua identidade, Gosselin teve importante papel nos trágicos acontecimentos que iriam incidir sobre Marguerite e mudar drasticamente o curso de sua vida. O romance segundo o consenso geral não era nenhum segredo, e logo ele chegou ao conhecimento do comandante e guardião da moça. A despeito de se ignorar qual a exata relação de Roberval com sua protegida, sua reação foi no mínimo exasperada. Furioso com as fofocas ele ordenou que a moça fosse mandada para uma outra nau, enquanto que Goselin foi amarrado no mastro e chibateado com um chicote - o sinistro gato de nove caldas, pelo contramestre. Marguerite amaldiçoou seu guardião pela punição que quase custou a vida de seu amado, mas a vingança do capitão seria ainda mais cruel. Enquanto passava pela costa da lendária Ilha do Demônio, Roberval ordenou que o casal fosse abandonado em um bote furado. A punição de exílio era severa até mesmo para a época, quanto mais em um lugar considerado maldito. Talvez a decisão tenha sido tomada obedecendo algum rígido código moral ou valores religiosos, mas é possível ainda que a motivação do capitão tenha sido o ganho pessoal: na qualidade de guardião, as terras da jovem passariam ao seu nome na iminência de sua morte.


Lançados ao mar, Marguerite foi seguida pela sua camareira pessoal, Damienne, que decidiu acompanhá-la em seu terrível exílio. Desconhecendo a natureza do lugar onde foram abandonados, os náufragos remaram para a costa coberta de névoas antes do bote afundar. Aportaram na praia rochosa praticamente inexplorada. Graças a benevolência de um tripulante, eles tinham algumas facas, restos de corda, água e suprimentos reunidos em um saco lançado ao mar e recuperado pela jovem.

A despeito do horror de ver o barco de afastando, Marguerite e Damienne trataram de cuidar de Etienne que estava muito ferido e improvisaram um acampamento. O trio supostamente conseguiu encontrar refúgio numa caverna perto da arrebentação. As duas mulheres sentiram necessidade de explorar a ilha, embora se sentissem acuadas pelos estranhos sons que emanavam da floresta adiante. Ficaram apavoradas com a presença de animais exóticos e ferozes, mas a despeito de seu terror compreenderam que se ficassem para sempre na caverna acabariam sucumbindo a fome e sede. Por sorte, localizaram uma fonte de água doce e alguns arbustos com frutas comestíveis. 

Havia é claro o temor dos predadores locais, ursos, lobos e outras feras desconhecidas que espreitavam ameaçadoramente. As primeiras noites foram um verdadeiro pesadelo. Uma névoa cinzenta de aspecto sobrenatural descia sobre a praia dificultando a visão. Em meio a esse nevoeiro diabólico, formas mefíticas apareciam e desapareciam conjurando a imagem de fantasmas. Havia ainda o brilho de olhos avermelhados que surgiam na escuridão e de vultos gigantescos que espreitavam farejando o ar em busca de suas presas. Em mais de uma noite, os passos de alguma medonha criatura foram ouvidos pelos três confinados na caverna e na manhã seguinte as pegadas de horríveis bestas eram encontradas ao redor. Risadas, gritos e uivos eram também frequentes. Quando esses sons grotescos, produzidos sem dúvida por demônios e assombrações, se tornavam insuportáveis, Marguerite e Damienne recorriam a oração para se proteger. Rezavam a noite inteira, pedindo ajuda a todos os santos, implorando para que amanhecesse o quanto antes e as forças das trevas recuassem. 

Eventualmente, Etienne conseguiu se recuperar de seus ferimentos e ganhar forças para acompanhar as duas mulheres nas explorações. Os dias passaram e o grupo de náufragos encontrou os restos de um acampamento abandonado na ilha - supostamente da Expedição Duvichy ou de algum bando de contrabandistas desconhecidos. De lá recuperaram alguns objetos úteis para sobrevivência e uma arma de fogo ainda em bom estado.


Os três conseguiram sobreviver na caverna por vários meses, mas um dia, Damienne saiu sozinha para buscar água e não retornou. As buscas pela pobre mulher não resultaram em qualquer sinal de sua passagem. Ela simplesmente foi engolida pela floresta e desapareceu sem deixar vestígios. Algum tempo depois, foi a vez de Gosselin sumir enquanto tentava pescar na praia. Marguerite ficou então sozinha na Ilha do Demônio. Com seus suprimentos diminuindo, em condições terríveis com o inverno chegando, atormentada por lobos e ursos e a presença de outros predadores, além do terror imposto por fantasmas e demônios invisíveis, parecia questão de tempo até ela também desaparecer.  

Mas não foi isso o que aconteceu. Contra todas as adversidades, Marguerite sobreviveu. Talvez fosse a força de vontade que a impulsionava, o desejo de escapar da ilha isolada ou simplesmente a vontade de triunfar diante de todos os obstáculos... algo lhe dava ânimo e coragem para continuar, talvez o mesmo ímpeto que a compeliu a embarcar em um navio em primeiro lugar e se arriscar em um continente desconhecido.

É dito que Marguerite abandonou a caverna para buscar um lugar mais seguro e que ela encontrou tal lugar em uma outra caverna natural, justamente aos pés da horrenda ravina negra em forma de demônio. Lá ela se estabeleceu, extraindo água de uma fonte natural, se alimentando de raízes e caçando pequenos roedores abundantes naquela área. Marguerite aprendeu a superar o medo de tal forma que já não se aterrorizava com os supostos fantasmas e demônios, vagava pelo lugar, mesmo à noite, usando pedras para abater pássaros e deles se alimentando mesmo crus. Em sua luta diária pela sobrevivência, Marguerite teria afugentado um bando de lobos famintos que assolaram seu acampamento e espantado uma presença assombrosa - talvez um urso, brandindo uma espada aos gritos. Até confeccionou uma manta com o pelo de um lobo abatido com um disparo de mosquete.

Por dois anos e meio ela sobreviveu dessa maneira. No inverno, por duas vezes, chegou perto de definhar com a inanição, mas ainda conseguiu encontrar fibra em seu ser para resistir. No fim ela conseguiu triunfar sobre tudo o que a Ilha do Demônio lançou sobre ela. Quando ela enfim foi encontrada por acaso por um barco de pescadores bascos, Marguerite deveria se parecer com um dos demônios que as pessoas acreditavam habitar aquela ilha remota. Semi-nua, suja, extremamente magra, com os cabelos desgrenhados e olhos selvagens, endurecida pelas muitas privações e perigos, ela não tinha mais nada da sofisticada herdeira francesa. Ela lembrava muito mais um animal selvagem do que uma mulher. Os pescadores a resgataram e levaram até uma pequena colônia francesa onde ela foi reconhecida por dois habitantes que estavam na Expedição liderada pelo Intendente Geral da Nova França. Demorou alguns anos mas Marguerite conseguiu ser aceita à bordo de um navio que retornava para a França com uma inacreditável estória para contar.


Foi outra Marguerite, dessa vez a Rainha Marguerite de Navarre que ajudou a moça a se reerguer. Ao tomar conhecimento do ocorrido, ela ordenou que a jovem, que estava à bordo de uma embarcação na Espanha, fosse levada à sua presença para que contasse sua estória na corte. Como recompensa Marguerite recebeu uma boa soma de dinheiro e uma passagem para seguir para a França. Sua aventura relatada em detalhes foi recontada em um livro com o título, Heptaméron, publicado em 1558. As desventuras de Marguerite de La Rocque, se tornaram um romance bastante popular nos séculos seguintes em toda Europa. Seu nome passou a ser associado a façanhas de sobrevivência, força de vontade e resistência diante de adversidades.

Quando ela enfim retornou à França, Marguerite recebeu vários convites de nobres para visitar suas terras e relatar os incomuns acontecimentos de sua vida. Ela se tornou uma espécie de celebridade até se cansar daquilo e decidir partir para uma escola em Nontron, onde havia estudado quando jovem. Lá ela viveu até o final de sua vida, assumindo o papel primeiro de professora e depois de diretora da instituição. Ela jamais conseguiu reaver as terras de sua família, pois não conseguiu provar de maneira incontestável sua identidade.

E quanto ao cruel Jean-François de La Rocque de Roberval, o homem que abandonou a jovem Marguerite para morrer na Ilha do Demônio? Tudo o que se sabe a respeito dele, é que Roberval de fato retornou à França e reclamou a posse das terras que pertenciam a família de sua protegida. Aos 60 anos ele se tornara um senhor de terras e vivia em Languedoc. Do Novo Mundo havia trazido apenas más lembranças e uma doença que o atormentava enormemente. Sua tentativa de estabelecer uma colônia em Quebec havia falhado miseravelmente e ele não tinha mais a influência de que um dia dispunha. Quando soube do retorno de Marguerite, negou veementemente as acusações feitas contra ele e afirmou que a mulher não era sua sobrinha, mas uma impostora. Em uma visita a Paris, seu nome foi reconhecido e ele acabou perseguido pelas ruas da cidade, encurralado e espancado por uma turba furiosa. Ele não morreu imediatamente, mas jamais se recuperou de seus ferimentos, vindo a falecer anos mais tarde.

Mas até que ponto essa estória pode ser levada à sério?

A narrativa sobre a jovem menina de origem nobre que se aventura no fim do mundo, encontra o amor, é abandonada para morrer em uma ilha assombrada, sobrevive superando todos os obstáculos impostos e retorna anos depois, levanta várias dúvidas. Por exemplo, o que teria acontecido com ela no período em que ela foi resgatada da ilha e seu retorno à França? Muitos historiadores concordam que de fato Marguerite pertencia a uma família rica da baixa nobreza francesa e que ela viajou para o Novo Mundo na companhia de seu tio, o Intendente da Nova França. É um fato documentado que ela foi dada como desaparecida e que não chegou a Colônia de Quebec fundada por Roberval em 1542. Entretanto, até que ponto podemos levar em consideração as descrições da própria Marguerite para os acontecimentos na Ilha do Demônio? Lutar com lobos e matar animais selvagens parece um tanto exagerado para uma jovem de 18 anos levada a beira da inanição. Suas narrativas sobre a Ilha do Demônio incluíam fantásticas estórias sobre monstros medonhos, fantasmas e criaturas sobrenaturais obviamente resultado de sua imaginação. E se ela criou esses detalhes, provavelmente poderia inventar muitos outros para incrementar sua estória.

Alguns acreditam que os "fantasmas" e "demônios" da Ilha poderiam ser na verdade nativos que habitavam a costa e que evitavam a ilha por ela ser inóspito e cheia de perigos. De tempos em tempos, algum nativo podia até visitar a Ilha onde Marguerite estava confinada, encontrando uma mulher selvagem lá e se assustando com sua presença inesperada.


Outro mistério que desafia a estória de Marguerite de La Rocque de Roberval é a exata localização da ilha em que ela teria sido abandonada. A Île des Démons desapareceu dos mapas na segunda metade do século XVII quando o trabalho de cartógrafos se tornou mais confiável. Muitos afirmam que ela não passa de uma invenção, uma "ilha fantasma" que jamais existiu. Ainda assim, Marguerite foi exilada em algum lugar, portanto há muitas especulações de onde poderia se localizar essa ilha misteriosa. Uma teoria popular é que a lendária Ilha do Demônio seria de fato a ilha conhecida como Hospital Island, também chamada de Harrington Island, que fica no litoral de Quebec. Histórias contadas pelos nativos de geração em geração dão conta de que uma mulher selvagem habitou a ilha no passado e que até mesmo a sua caverna seria conhecida. Há estórias orais sobre fantasmas de um homem e uma mulher de pele branca (Gosselin e Damienne talvez) que vagavam pela floresta. 

Outra teoria é proposta pelo historiador marítimo e navegador veterano Donald Johnson que afirma ser Fichot Island a verdadeira ilha onde Marguerite foi abandonada. Próxima do Estreito de Belle Isle, localizado ao norte da ponta de Newfoundland. Johnson pesquisou por muitos anos a localização e encontrou alguns detalhes que chamam a atenção, entre os quais a grande quantidade de cavernas naturais na costa, as praias rochosas e a ravina escarpada em formato demoníaco. Ele encontrou uma explicação até para os medonhos murmúrios ouvidos pelos exploradores que chegaram ao lugar no século XVI: os sons seriam produzidos por pássaros marinhos chamados gannets que fazem seus ninhos do outro lado da enseada. Além disso, no passado, a Ilha seria habitada por lobos e ursos, corroborando as estórias que falam da presença de predadores naturais. Apenas para se ter uma ideia do grau de perigo dessa ilha, o cenário foi usado pelo especialista em sobrevivência Bear Grills em um episódio de seu programa.

Na sensacional estória de Marguerite de La Rocque de Roberval encontramos a mistura de elementos cativantes que parecem enraizados profundamente na psique humana: o lugar misterioso cheio de perigos e ameaças e o triunfo diante das adversidades para domar o ambiente selvagem. 

O que acontece quando chegamos a um lugar místico e desconhecido? Como lidamos com um ambiente cheio de ameaças e perigos? Como é possível domar a natureza mais exuberante e vencer o desafio da sobrevivência em condições quase inviáveis para o estabelecimento humano? E o que resta de civilização depois de tal experiência transcendental? 

Uma pessoa que muito provavelmente sabia a resposta para essas perguntas era Marguerite de La Rocque de Roberval, que encontrou a sua Ilha Perdida além do horizonte, e perseverou contra a fúria de todos os demônios reais e imaginários.

domingo, 20 de dezembro de 2015

Medo nas Profundezas - O Submarino Assombrado da Grande Guerra


Durante os dramáticos anos da Grande Guerra (1914-1918), uma aterradora máquina de destruição foi lançada nos mares: o submarino. Nunca antes uma arma de guerra havia sido utilizada de maneira tão eficiente e letal. Os alemães, em especial, empregaram os submarinos de modo igualmente espetacular e mortífero. Silenciosos e furtivos, eles apareciam do nada, sob as águas escuras para destruir seus alvos e fazer vítimas com enorme precisão. Os submarinos alemães, conhecidos como U-boots ou U-boats, uma simplificação de Unterseeboot ou literalmente "barco submerso" eram o terror dos mares, sobretudo dos comboios cargueiros e mercantis que levavam suprimentos e munições para as tropas. Estima-se que milhões de toneladas de carga tenham se perdido até o fim da guerra. 

Embora essas bestas de ferro tenham aterrorizado o inimigo, forças misteriosas parecem ter agido à bordo de ao menos um U-Boat durante o conflito, plantando a semente do pavor também no coração da tripulação. Os acontecimentos nessa embarcação foram amplamente documentados e alçaram essa bizarra estória ao panteão das lendas e mistérios marítimos. 

O submarino UB-65 era uma embarcação Tipo UB III construído e comissariado para o uso da Marinha Imperial Alemã em 1916. Era uma incrível máquina de destruição que cumpria seu propósito: semear confusão, terror e caos entre os inimigos. Em seu primeiro ano de serviço, ele já havia conquistado uma sinistra reputação, tendo afundado vários navios, convertendo-se rapidamente no pesadelo dos comboios que cruzavam o Mar do Norte.

Reza a lenda que a construção do submarino foi marcada por vários acidentes esquisitos e mortes inexplicáveis. Em um incidente enquanto o casco era montado, um enorme guindaste que segurava uma placa se rompeu e uma corrente de ferro se soltou atingindo os operários. Dois homens foram literalmente cortados no meio pela corrente e outros cinco esmagados pela placa. Dos cinco trabalhadores, três morreram imediatamente, mas dois ficaram parcialmente  sob a pesada placa e agonizaram por horas enquanto seus colegas tentavam desesperadamente erguer a chapa de ferro. O acidente foi considerado uma fatalidade, mas os inspetores de segurança ficaram aturdidos ao constatar que a corrente em perfeito estado, simplesmente se partiu.

Em outro acontecimento espantoso, três engenheiros estavam conduzindo um teste com baterias, quando uma delas superaqueceu e começou a expelir uma fumaça tóxica. A substância rapidamente preencheu o compartimento e incapacitou os homens. Seus corpos só foram removidos no dia seguinte por uma equipe de resgate vestindo máscaras contra gás. Uma vez mais, não houve uma explicação razoável para o acidente fatal.



Esses bizarros acontecimentos que pareciam sinalizar com todo tipo de mau presságio não terminariam com o término da construção do submarino. Durante um teste para avaliar o funcionamento do motor, o UB-65 encarou uma terrível tempestade que surgiu de repente e varreu um dos tripulantes para fora do barco em uma enorme onda. O corpo do marinheiro jamais foi recuperado. A morte de um marinheiro durante um teste já era considerado um péssimo sinal, mas o desaparecimento de seu corpo lançava um espectro de apreensão em todos à bordo.

Pouco depois disso, em outro teste, um compartimento foi inundado e por pouco o submarino não afundou para sempre. Dois técnicos ficaram até o último momento tentando salvar a embarcação e embora tenham conseguido escoar a água acabaram morrendo asfixiados por um vazamento de gás carbônico.   

A essa altura, a fama do UB-65 já havia se espalhado entre os marinheiros. Alguns o consideravam maldito, circulava o rumor de que o ferro e muitas peças usadas em sua construção haviam sido reaproveitadas de outras embarcações, inclusive navios inimigos capturados e desmontados no início da guerra. Outros afirmavam que os fantasmas dos homens que haviam morrido na construção estavam para sempre presos na barriga daquela besta de ferro. 

A reputação malévola do UB-65 fez com que o Almirantado Alemão expedisse uma comunicação oficial afirmando que o submarino havia sido construído conforme todas as exigências e requisitos técnicos. Mas os marinheiros continuavam sussurrando estórias sobre o submarino maldito, ao ponto das autoridades navais suspenderem cinco marujos por espalhar essas estórias. Em 1917, a despeito de todos os problemas, o UB-65 foi despachado em sua viagem inaugural. Se havia realmente alguma força sinistra infestando o submarino, ela não tardou a dar sinal de alerta. A medida que os torpedos eram colocados nos tubos para sua primeira missão, um deles detonou acidentalmente matando um segundo oficial, o Tenente Joachin Richter. A despeito da tragédia, os alemães necessitavam urgentemente de mais U-boats para cortar as linhas de abastecimento dos britânicos com o continente, por isso ordenaram reparos imediatos e o lançamento do submarino. 


A essa altura o UB-65 que já era considerado um submarino maldito, passou a ser também tratado como assombrado. O primeiro fantasma visto pela tripulação apareceu três semanas após sua partida do porto de Danzig com destino ao Canal Britânico. A missão era atacar um comboio de doze navios britânicos que haviam partido de Dover com destino a Calais. Durante o turno de guarda, um dos vigias que estava no posto reparou na presença de um homem e deu sinal de alerta. Aquilo era totalmente estranho já que as escotilhas estavam fechadas e não havia como alguém sair e caminhar pelo tombadilho. Apesar do comandante ter interpretado o alerta como uma confusão da parte do vigia, outros marinheiros afirmaram ter ouvido o som de passos no tombadilho no mesmo momento em que o alerta foi emitido. Nos dias seguintes ao incidente, dois outros marinheiros afirmaram ter visto o homem misterioso à bordo. Quando um dos homens descreveu a aparência do sujeito, os marinheiros mais velhos ficaram chocados, a aparência dele se encaixava na do falecido Tenente Richter. 

Pouco depois disso, um marinheiro correu para contar aos seus colegas que havia visto o Tenente Richter casualmente andando pelo deck. O capitão mandou colocar o marinheiro à ferros, mas outras visões se seguiram com alarmante frequência. Em um dos avistamentos, o corpo do Tenente parecia simplesmente flutuar acima do deck até desaparecer no ar. O Tenente parecia surgir aleatoriamente: por vezes ele era visto andando pelo estreito corredor, outras na sala de máquinas fazendo leituras dos aparelhos e em outra na sala de torpedos, onde foi visto chorando e lamentando pelo seu destino. Em uma de suas aparições mais aterrorizantes, ele teria avisado um marujo que todos à bordo estavam condenados e que o UB-65 seria mandado para as profundezas antes do fim da guerra. Nessa aparição, o tenente surgia com os ferimentos que causaram sua morte: sangue escorrendo de horríveis feridas, as roupas rasgadas e um braço arrancado. O fantasma de Richter ganhou a companhia de um engenheiro de rádio que morreu em um acidente algumas semanas mais tarde. Os dois foram vistos conversando em pelo menos duas ocasiões pelos aterrorizados tripulantes.

O capitão fez o possível para desencorajar essas estórias, impondo pesadas punições para os marinheiros que ousassem falar a respeito de fantasmas, mas nem assim os rumores pararam de circular. Mas o ponto de vista do próprio comandante foi desafiado quando ele viu com os seus próprios olhos um fantasma. Durante uma forte tempestade, o submarino recebeu ordens de ir à superfície para verificar a situação climática. Quando um tripulante olhou pelo periscópio, ficou chocado e começou a gritar. O capitão prontamente observou o exterior e estarrecido constatou que havia realmente uma pessoa do lado de fora. A figura, descrita pelo próprio capitão como um homem de aparência muito semelhante ao Tenente Richter, vestia um uniforme em farrapos e observava o horizonte cinzento, desafiando a oscilação da embarcação e os ventos fortes. A visão foi tão surpreendente que o comandante foi incapaz de manter a compostura. Ele ordenou que a escotilha fosse aberta e que três homens fossem averiguar o que estava acontecendo, pois certamente havia alguém do lado de fora. Ao abrir a escotilha, nada encontraram.


Todas essas estórias ajudaram a construir a notoriedade do UB-65 entre os marinheiros da Marinha Imperial. Não obstante, a tripulação do submarino possuía um notável desempenho de serviço. O UB-65 era um dos submarinos com maior margem de sucesso em missões e um número invejável de embarcações torpedeadas: seis navios mercantes afundados e mais seis avariados. Ainda assim, muitos marinheiros se recusavam a servir à bordo dele, e os que eram obrigados a fazê-lo, logo pediam transferência. O moral da tripulação estava sempre baixo e todos se queixavam de exaustão, dores de cabeça e insônia. Pesadelos também eram frequentes: sonhavam com vultos andando pelos corredores, ouviam sussurros e lamentos incorpóreos e alucinavam com aparições. No Natal de 1917, três marinheiros e um oficial simplesmente desertaram e não retornaram para cumprir suas funções à bordo. O melhor amigo do Tenente Richter, um colega de bordo se enforcou durante uma folga. 

O alto comando chegou a enviar um pastor luterano para abençoar o submarino e assim dispersar qualquer espírito que estivesse habitando a nave. Durante a cerimônia, o pastor teria desmaiado e se mostrou incapaz de concluir o serviço religioso. Depois disso, um observador da Marinha foi enviado secretamente para investigar o que estava acontecendo no UB-65. Após realizar cuidadosas entrevistas com os tripulantes, ele formulou um longo inquérito no qual deixava claro que os tripulantes de fato acreditavam que o submarino era amaldiçoado. O inquérito foi lacrado e permaneceu fechado por mais de 50 anos; nele pode ser vista a seguinte conclusão: 

"Não estou afirmando que o UB-65 é realmente assombrado pois não há como averiguar tal coisa. Contudo, o que posso certificar é que os tripulantes da referida embarcação acreditam ser ela assombrada. Minha recomendação é que os tripulantes sejam transferidos para outras naves e uma nova equipe seja formada, sob o comando de outro capitão e oficiais graduados"

Surpreendentemente, o alto comando acatou o conselho do observador e escolheu a dedo uma nova tripulação e um novo capitão. Para driblar os rumores a respeito do submarino ser assombrado, o UB-65 recebeu uma nova designação e passou a se chamar UB-77. O Capitão Dieter Shreder se tornou o novo comandante do barco e impôs ordens rigorosas de disciplina. Durante um período de três meses, o UB-77 realizou suas missões sem nenhum incidente estranho. Infelizmente, seja lá que força estava espreitando no submarino, não havia desaparecido, estava apenas dormente.


Em maio de 1918, o UB-77 recebeu a tarefa de patrulhar uma linha de abastecimento entre o Estreito da Inglaterra e a Costa da Espanha. Durante sua missão, um oficial afirmou ter visto um vulto andando pela sala de torpedos, mas quando foi buscar ajuda a misteriosa figura havia desaparecido. Outro tripulante disse ter encontrado um homem desconhecido na sala de engenharia e este disse se chamar Richter. O tripulante foi atacado e sofreu ferimentos condizentes com mordidas. A experiência supostamente deixou o engenheiro insano, e para conter seus gritos os demais tripulantes tiveram de amarrá-lo em um armário. Certa noite, o engenheiro enlouquecido conseguiu se libertar das amarras que o prendiam e abriu uma escotilha caindo no mar. Seu corpo nunca foi recuperado.

A estória do submarino maldito chegaria a uma conclusão tão bizarra quanto as lendas que o acompanhavam até então. Em 10 de julho de 1918, na Costa de Corwall na Irlanda, um submarino norte-americano cruzou o caminho do UB-77 quando ele estava na superfície. Aquela era uma posição muito arriscada para o submarino, já que na superfície sua capacidade de manobra era tremendamente reduzida. O comandante americano observou a nave alemã pelo periscópio e percebeu que ela estava avariada e provavelmente não era capaz de submergir. Na escotilha havia um único tripulante acenando com uma bandeira branca. Ele gritava algo, mas os americanos não foram capazes de entender suas palavras. Acreditando que eles estavam se rendendo, o Capitão americano ordenou que o submarino fosse à superfície e uma equipe se preparasse para a abordagem em um bote. 

Foi então que o UB-77 explodiu de maneira espetacular sem nenhum motivo aparente. O submarino americano não efetuou nenhum disparo e não havia nenhuma outra embarcação nas proximidades. A explosão foi tão potente que causou pequenas avarias no submarino americano. Supostamente a detonação foi causada por mal-funcionamento em um torpedo ou talvez por determinação do Capitão Schrader que preferiu destruir a embarcação ao invés de deixá-la cair em mãos inimigas. Toda a tripulação do UB-77, no total, 33 homens, se perdeu na explosão. Esse é um dado interessante: eles "se perderam", uma vez que nenhum cadáver foi recuperado dos destroços fumegantes.

Anos mais tarde, bem depois do fim da Grande Guerra, o capitão americano ficou sabendo da estranha estória do submarino destruído diante dos seus olhos. Na ocasião, ele buscou saber mais detalhes e reconheceu uma fotografia do homem que acenava com a bandeira pouco antes da explosão. A fotografia era do falecido Tenente Richter. 


Por muito tempo, os destroços do UB-77 permaneceram perdidos e o mistério sobre sua explosão e naufrágio continuaram como um enigma de guerra. Finalmente, em 2004, arqueólogos submarinos encontraram sua localização exata e realizaram um trabalho de resgate dos destroços. Uma análise dos restos, realizada por engenheiros de submarino, não encontrou sinais de que a explosão tivesse sido resultado da detonação de um torpedo ou de qualquer outra arma de bordo. As escotilhas de disparo entretanto estavam abertas, o que pode indicar que os tripulantes tentaram evacuar a embarcação antes dela explodir. |Outra possibilidade é que o motor ou as baterias tenham super-aquecido e explodido, mas nesse caso, haveriam maiores danos na sala de máquinas. Sem uma explicação para o que ocasionou a explosão, o inquérito da Marinha Alemã, finalizado 86 anos após a destruição do UB-77 foi concluído com as insatisfatórias palavras: "causa acidental".

O que realmente teria acontecido com o UB-77? Seriam as estórias sobre incidentes fantasmagóricos verdadeiras ou apenas o resultado do stress da tripulação? Em que circunstâncias o submarino foi destruído e o que causou a explosão? Mais importante, se havia realmente uma força sobrenatural habitando a embarcação, o que teria acontecido com ela após a destruição? Ela teria sido eliminada ou a descoberta dos destroços causaria seu retorno?   

A Grande Guerra ficou conhecida como "A guerra para terminar com todas as guerras" e todos os que se envolveram nela passaram por horríveis momentos... mas talvez, os tripulantes da fatídica viagem do UB-65 tenham enfrentado algo ainda pior. 

Algo que provavelmente, jamais seremos capazes de compreender... 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Mares Misteriosos - Sobre Enguias Gigantescas e Serpentes Marinhas


Em 1930, a Expedição Marítima de Investigação, um enorme projeto, ainda mais considerando a época em que teve início, viajou o mundo em busca de descobertas científicas nos mares. Liderada pelo Professor Johannes Schmidt, a expedição se iniciou na Costa da Inglaterra e rodou o mundo atravessando o Atlântico de Norte a Sul, adentrando o Indico e depois seguindo pelo Pacífico até terminar na Costa Oeste dos Estados Unidos, na cidade de San Francisco. A bordo do Dana, a embarcação que funcionava como nau capitânia, a Expedição de Schmidt foi um dos mais ambiciosos projetos de exploração e pesquisa de seu tempo.

Durante os cinco anos em que esteve no mar, a equipe à bordo do Dana registrou incríveis descobertas e conduziu extensivas pesquisas que resultaram em um enorme progresso no que se sabia a respeito do mar e seus muitos mistérios. Apesar do seu pioneirismo, a Expedição Marítima de Investigação concluiu que ainda havia muito que precisava ser compreendido sobre os oceanos. Humildemente Schmidt escreveu em suas memórias: "É provável que jamais venhamos a compreender todos os mistérios ocultos nos mares desse planeta que em nossa tola concepção chamamos de Terra. Se nós compreendêssemos a importância dos mares, teríamos chamado essa esfera azul de Oceano".  

Uma das estórias mais fantásticas apuradas pela Expedição Schmidt ocorreu em 1931, quando ela passava pelo litoral da África do Sul. Durante sua passagem pelo Cabo da Boa Esperança, o ponto mais meridional do Continente africano, o Dana lançou redes para captura de espécimes em alta profundidade. Esse era um procedimento comum que visava estabelecer uma noção de quais animais habitavam aqueles abismos insondáveis. Foi daquela maneira que o Dana já havia descoberto pelo menos 16 espécies até então desconhecidas da vida marinha. A rede podia descer a enormes profundidades, operada por guindastes automatizados, uma das inovações utilizadas pela Expedição.

Quando a rede foi içada até a superfície, ela havia capturado algo notável, até então desconhecido e que permanece até os dias atuais como o único exemplar da lendária Super Enguia. Em virtude da profundida extrema, o animal estava morto ao ser levado para o navio, mas a despeito disso, deixou todos que o analisaram, absolutamente chocados.


 A criatura tinha todas as características de uma enguia no estágio de larva, o que não era em absoluto estranho, contudo suas dimensões eram incríveis. Em geral, larvas de enguia atingem o comprimento máximo de 2 a 4 polegadas, podendo chegar no estágio adulto, com um metro e vinte de comprimento. A larva resgatada pelo Dana tinha nada menos do que 184 centímetros (6 pés)! 

Quando extrapolamos a taxa de crescimento das enguias, calcula-se que uma larva de enguia medindo 6 pés de comprimento, teoricamente, ao chegar ao estágio adulto atingiria algo entre 80 e 100 pés de comprimento (de 24 e 33 metros). Em água doce, as enguias da Europa e da América do Norte, tem uma taxa de crescimento ainda maior, experimentando um aumento de 500 vezes ao longo de seu desenvolvimento de larva para adulto. Em uma estimativa absurda, o adulto dessa espécie poderia atingir colossais 920 metros.

A suposta comparação entre a Super Enguia e outros animais marinhos.
De acordo com um artigo do Evening Post, publicado em 24 de fevereiro de 1934, o espécime encontrado na África do Sul foi preservado e enviado para o Laboratório de Vida Marinha em Copenhaguen, na Dinamarca para a realização de estudos por especialistas em Biologia Marinha.

Os resultados das pesquisas foram surpreendentes: a maioria dos especialistas concordaram que apesar de suas dimensões exageradas, o espécime tinha todas as características de uma enguia em estágio larval semelhante a espécie categorizada como leptocephalus. Concordavam ainda que o animal por se tratar de uma larva, deveria experimentar um crescimento a medida que avançasse para a idade adulta. Que tamanho ele seria capaz de atingir, contudo, era uma questão aberta a questionamento e certo grau de interpretação por parte dos especialistas.

Todos, no entanto, concordavam em um ponto, aquela larva tinha o potencial para se converter em um animal de proporções extraordinárias. Em vista disso, ela foi chamada de Super Enguia.


Nas décadas seguintes, diferentes expedições tentaram obter um segundo espécime de Super Enguia na região do Cabo da Boa Esperança. Nenhuma delas foi bem sucedida!

Apenas em 1959, uma descoberta similar foi feita, dessa vez na Nova Zelândia. Uma Expedição australiana retirou das profundezas um espécime de leptocephalus que media incríveis três pés de comprimento. Uma análise cuidadosa atestou que novamente se tratava de uma larva. O animal recebeu o nome científico de Leptocephalus giganteus, e uma análise comparativa com o espécime sul africano concluiu que se tratava da mesma espécie. 

Uma vez que mais nenhum espécime de Leptocephalus giganteus foi obtido, e compreensivamente existem informações escassas sobre a espécie. Entretanto, a julgar pela taxa de cresciemnto de animais similares, tudo leva a crer que as profundezas são o lar de enguias realmente monstruosas.

Essas larvas de Super Enguias se encaixam perfeitamente na teoria postulada pelo criptozoólogo Bernard Heuvelmans de que animais de grande porte, semelhantes a enguias, seriam a causa dos avistamentos das serpentes marinhas das lendas.


Serpentes Marinhas estão presentes nas narrativas supersticiosas de marinheiros em todo o mundo. No Mediterrâneo e no Oriente Médio, elas aparecem tanto na mitologia, quanto em testemunhos de observadores, como o filósofo grego Aristóteles, que descreve tal animal em seu tratado Historia Animallium. Na Ilíada, um par de serpentes marinhas matam Laocon e seus filhos quando eles se dirigem para Tróia. A Bíblia, no livro do Gênesis, se refere ao Leviatan ou Rahab (palavra que deriva do hebraico Tanakh - "sinuoso") como uma "imensa criatura marinha com corpo de uma serpente gigantesca". O Livro de Amos menciona uma serpente gigante que habita os mares e engole os homens que tentam escapar do castigo divino se lançando ao mar.

Na Mitologia nórdica, Jörmungadr era uma serpente marinha tão grande e longa que podia circundar o mundo inteiro, Midgard. Isso lhe valia o nome "Midgarösormr", a lendária Serpente de Midgard. No folclore da Escandinávia não faltam lendas sobre marinheiros que se deparam com enormes serpentes marinhas que rompem a superfície para destruir embarcações e se alimentar dos marinheiros. 

Em 1028, Santo Olaf, o primeiro Santo da Noruega teria matado uma serpente marinha na costa de Valldal que lhe valeu o título de Santo Matador de Monstros. O mito se confunde com a lenda sueca de Olaus Magnus um santo eclesiástico que escreveu a Carta Marina, um tratado no qual descrevia inúmeros monstros que habitavam os mares, incluindo imensas serpentes marinhas - "crias demoníacas que escapavam dos recessos infernais e habitavam os mares profundos para desespero e horror dos homens".

A idade de ouro das Serpentes Marinhas, entretanto, foi o século XIX, quando os avistamentos de tais seres se multiplicavam, sem dúvida em virtude do grande número de embarcações singrando os mares de todo o mundo, carregando milhares de passageiros. Comparativamente as estórias sobre serpentes marinhas encontravam paralelo nos avistamentos de discos voadores no século XX. Existem inúmeros casos de Serpentes Marinhas que teriam sido avistadas, sendo que alguns casos ganharam enorme repercussão mundo afora.



Um incidente especialmente famoso ocorreu em 1848 quando oficiais e marinheiros do HMS Daedalus que viajavam no Sul do Atlântico avistaram uma criatura medindo pelo menos 18 metros de comprimento, com corpo em forma de serpente e dotada de uma espécie de crina feita de algas semelhante a de cavalos em terra. A descrição foi feita pelo Capitão Peter McQuehe um respeitado comandante britânico que muitos atestaram, jamais inventaria tal estória se de fato não tivesse ocorrido. A descrição causou alvoroço nos jornais de Londres, e Sir Richard Owen, famoso biólogo inglês proclamou que a criatura seria uma enguia gigante. Hoje, muitos consideram a decsriçao como um possível avistamento de uma lula gigante, se é que de fato ele aconteceu.

Outra serpente marinha famosa teria sido avistada na costa da Irlanda em 1850, próxima a cidade portuária de Kilkee. O animal supostamente foi visto repetidas vezes ao longo das décadas seguintes, sendo que, o mais extraordinário avistamento ocorreu em 1871, quando "um imenso e aterrorizante monstro marinho" investiu contra uma embarcação que passou a pouco menos de 20 metros da criatura. Pessoas no porto de Kilkee também teriam testemunhado a horrenda aparição e temido pela vida das pessoas no barco. O incidente, fartamente documentado por jornais em toda a Europa teria servido de inspiração para Jules Verne escrever o capítulo de Vinte mil Leguas Submarinas em que o Náutilos, o submarino do intrépido Capitão Nemo, abalroa uma série de embarcações em sua Guerra declarada contra a superfície. 

Finalmente, notícias a respeito de uma notável serpente marinha se tornaram frequentes na costa do estado da Paraíba, no ano de 1905. A tripulação do Valhalla, um barco de pesquisas que levava naturalistas para uma viagem de volta ao mundo, avistou uma imensa criatura com corpo alongado, equipado por uma barbatana dorsal e cabeça em um formato que sugeria poder se tratar de um grande mamífero marinho. A notícia causou sensação nos jornais locais e nos meses seguintes, muitas tripulações anunciaram ter encontrado o mesmo animal enquanto navegavam pela mesma área. Em 1907, o naturalista Meade-Waldo, atraído pelas estórias afirmou ter visto o mesmo animal durante uma expedição em que ele categorizou a criatura como sendo uma espécie de Enguia Gigante ou tartaruga colossal.


Os avistamentos de Serpentes Marinhas diminuíram de maneira sensível na segunda metade do século XX até se tornarem esparsos e cada vez mais raros das décadas seguintes. Isso, no entanto, não significa que eles desapareceram completamente. Relatos surgem de tempos em tempos incendiando a imaginação daqueles que viajam pelos mares e se perguntam o que pode existir nas profundezas.

*     *     *

Enquanto pesquisava sobre Enguias Gigantes e Serpentes Marinhas, foi impossível não pensar em uma pequena e pouco conhecida estória escrita por H.P. Lovecraft em parceria com Sonia Greene - sua esposa. O título desse pequeno conto é "The Horror of Martins Beach".


Considerado como um de seus contos menos atraentes, a ideia central para "Martins Beach" foi concebida não por Lovecraft mas pela própria Sonia que segundo suas memórias "sentia que escrevendo um conto em parceria com o marido, poderia compartilhar com ele de algo em comum, algo que fosse interessante para ambos". Me parece sinceramente que essa colaboração tinha como propósito aproximar os dois, já que, na época, o matrimônio estava abalado, uma vez que o casal discordava em muitas coisas e não tinha muito em comum...

Embora o conto seja bem simples, eu sempre achei a concepção da criatura muito atraente: um legítimo "monstro marinho" como os que povoavam os jornais e artigos sensacionalistas da época. Lovecraft devia detestar todas essas notícias, Sonia, no entanto, parecia ser atraída por elas. É possível que os dois tenham debatido o teor da estória, é possível que Lovecraft tenha cedido e aberto algumas concessões para auxiliar a esposa no trabalho de escrita. Podemos apenas supor como teria sido essa parceria. Uma vez que ela é praticamente a única colaboração estabelecida entre os dois, podemos supor que, ou o trabalho não foi muito agradável ou Sonia concluiu que uma tentativa era o suficiente para atestar que escrever contos de literatura fantástica não era a sua praia.

Seja como for, "O Horror de Martins Beach" tem lá os seus méritos. Para quem não conhece a trama, aqui vaia  sinopse extraída da wikipedia

"Marinheiros matam uma criatura marinha gigantesca, com mais de 50 pés, em uma verdadeira batalha em alto mar. O monstro, um ser desconhecido pela ciência, possui estranhas irregularidades anatômicas como um único e enorme olho, braços rudimentares e curiosas nadadeiras semelhantes a pés. Após uma inspeção realizada por biólogos marinhos, descobre-se que se trata de um mero filhote. O capitão que matou o monstro revindica sua carcaça e manda empalhá-la para que assim possa expor os restos nas pequenas cidades portuárias da Nova Inglaterra. Meses depois, um grupo de banhistas é atacado nos arredores de Martins Beach, próximo do local onde a criatura foi abatida. Em seguida, um barco de pesca não retorna após sair para o mar e o Capitão se voluntaria para liderar uma equipe de resgate. Os bons samaritanos acabam sendo vítimas de uma criatura gigantesca que os atrai com um canto hipnótico para o alto mar. A criatura, supostamente a mãe vingativa, veio em busca daqueles que mataram seu filhote".

Enquanto lia sobre a larva da Super Enguia encontrada em 1934, foi impossível afastar a suspeita que Lovecraft e Sonia tivessem se inspirado nessa notícia para escrever seu conto. Infelizmente, "The Horror at Martins Beach" é anterior, datado de 1922. Ao que parece, a ideia de criar um monstro marinho que era um mero filhote (ou uma larva) de algo muito maior e terrível foi apenas uma coincidência em relação a descoberta da super enguia mais de uma década depois.

Para quem não leu esse conto, domina o idioma inglês e tem curiosidade de conhecer essa pequena estória, aqui está um audio book com a narração: