domingo, 21 de junho de 2015

Devoradores de Pecados - A tradição de ingerir o mal de terceiros


A lenda parece ter se originado na Escócia no séculos XVI, dali ela se espalhou para outras partes da Europa continental.

Até meados dos séculos XVIII e XIX, famílias tinham o costume de colocar um pedaço de pão sobre o peito de algum de seus parentes prestes a morrer. A tradição era deixar o pão ali por pelo menos duas horas - mais, caso o indivíduo fosse conhecido por algum ato reprobatório famoso.

É então que vinha a parte mais estranha, as famílias contratavam alguém para comer o pão depois que a pessoa morria. Segundo a tradição, o ato devia ser de vontade própria e a pessoa que aceitava consumir o alimento não podia ser enganada ou induzida a fazê-lo sem saber do que se tratava a prática. O costume pressupunha que uma vez colocado sobre o peito de um moribundo, os pecados deste eram absorvidos pelo pão, e, quando uma pessoa aceitava consumi-lo tais pecados lhe eram transmitidos. Uma vez passados adiante, deixavam o pecador limpo para ascender ao paraíso, livre de máculas que poderiam levá-lo ao temido "Fogo do Inferno".

As pessoas que comiam o pão eram chamadas de Sin Eaters, os Devoradores de Pecado.

Mas de onde veio esse costume? Ele ainda é praticado em algum lugar?     

Consumir alimentos em um funeral (ou pouco depois de um) é um costume comum em muitas culturas - famílias oferecem um jantar para parentes que vieram de longe para acompanhar os rituais de despedida. Esse costume é especialmente comum nos países de cultura anglo-saxã, tendo se disseminado pelos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Mas os Devoradores do Pecado são algo inteiramente diferente, por eles terem um papel obscuro dentro de alguns segmentos do cristianismo. Alguns cultos cristãos acreditavam que devorar os pecados, absorvendo assim, de modo simbólico, o mal perpetrado por outra pessoa, era uma ação nobre, quase uma espécie de auto-sacrifício, talvez o maior de todos os sacrifícios, já que essa atitude condenava a alma imortal a um suplício eterno. 

A tradição teria surgido em áreas rurais isoladas, habitadas por cristãos estabelecidos em localidades destituídas de sacerdotes que pudessem ministrar o sacramento da extrema-unção. Diante da hipótese de morrer sem a benção final de um padre, um pedaço de pão simbolizando os pecados era consumido pelos parentes - de preferência o filho mais velho. Em seguida, este devia buscar um sacerdote para remover os pecados que lhe haviam sido transmitidos.

Contudo, essa tradição com o tempo foi sofrendo mudanças e se tornando mais e mais estranha.

No interior da Escócia, algumas comunidades afastadas escolhiam um Devorador de Pecados responsável por purificar a alma de várias pessoas.  Esse "profissional" podia ser um bêbado, um vagabundo ou o louco do vilarejo. Ele era evitado por todos, quase como um doente ou impuro - a comparação mais frequente era com um leproso. O Devorador não podia entrar na vila à luz do dia, não podia beber na taverna e não podia conversar com crianças. Havia a crença de que a saliva de um Devorador de Pecados era venenosa e que seu mau olhado podia matar. Eles eram forçados a viver nos limites da cidade, em cabanas afastadas, sobrevivendo de esmolas e doações concedidas mais para mantê-los longe do que por bondade. 

Não obstante, quando alguma pessoa importante estava à beira da morte, o Devorador era convocado para cumprir o seu papel. Ele viajava até a cidade, escoltado à noite até a casa do moribundo. A população fechava as janelas e desfiava seus rosários enquanto ele estava nos arredores. Velas eram acesas e todos evitavam abrir a boca.

Uma vez perante o desenganado, o Devorador dava início a um curioso ritual de purificação. Alguns sectos afirmam que eles tomavam um banho de ervas ou que ingeriam alguma bebida forte como preparativo. Em seguida, exigia um pedaço de pão, uma taça de vinho, cerveja ou alguma fruta fresca. Esta era posicionada sobre o peito ou na testa da pessoa que se desejava purificar. Por vezes, este tinha de dar uma mordida no alimento ou um gole para representar que estava passando seus pecados para o alimento. Cabia então ao Devorador ingerir o restante fazendo uma oração entre um bocado e outro que descia pela sua garganta. Os pecados deviam ser ingeridos, pois jamais se desfaziam e se fossem deixados no alimento contaminariam a todos sem distinção.

Como recompensa pela realização do ritual, o Devorador ganhava algum presente; em geral uma esmola ou algo que pudesse lhe ser útil em seu exílio. Em alguns casos, o Devorador tinha de se contentar com a refeição gratuita que recebia... para alguns, quanto mais graves os pecados do morto, maior deveria ser a refeição oferecida. Por isso, verdadeiras ceias eram oferecidas aos Devoradores, quando o morto gozava de certa notoriedade em vida. Outro aspecto curioso é que após consumir a refeição, o Devorador deveria voltar para sua morada acompanhado de algum parente do morto para que ele se certificasse que o Devorador não vomitasse a refeição pecaminosa, o que fazia as desgraças retornarem.

A prática parece ter ficado confinada na Europa, e não há menções de necro-canibalismo nas descrições existentes. O necro-canibalismo ou endocanibalismo, populares na África e America do Sul, eram práticas que buscam aliviar os pecados de um morto. Contudo, nestas modalidades uma parte do cadáver é cozida e consumida pelas famílias como forma de purificação e para assimilar a perda do morto ilustre. 

Os Devoradores de Pecados se tornaram populares em alguns lugares, atendendo as necessidades de pessoas que morriam de causas naturais. Foi uma prática corriqueira na Escócia, na Inglaterra, Irlanda e França, tendo sido praticada também nos Países Baixos e Alemanha.   

Desde o seu surgimento, Devoradores de Pecados eram mal vistos pela Igreja Católica. Eles não possuíam uma afiliação na hierarquia da Igreja e na maioria das vezes, não tinham qualquer instrução teológica. A prática entrava em choque direto com os ensinamentos da cristandade, pois pecados podiam ser perdoados apenas mediante três estágios: o arrependimento, a confissão e a penitência, todos com a intercessão de um sacerdote. Um Conselho de Bispos no século XVII se pronunciou a respeito dos Devoradores de Pecados, declarando que a prática ou a crença nela constituía por si só, um pecado e que ela não limpava a alma. 

A prática de devorar pecados parece para os dias atuais estranha e até mesmo macabra, mas é possível que ela tenha origem na tradição judaica de usar uma cabra como manifestação física dos pecados do povo judeu. Na época do Yom Kippur, uma cabra é solta em uma área afastada para representar que os pecados das pessoas foram mandados para longe.

[NOTA: Eu encontrei apenas uma referência a essa prática, mas não tenho certeza se ela realmente existe dessa maneira, se é esse o sentido ou propósito. Não quero ser desrespeitoso com leitores, por isso, se está errado me digam, e eu farei a devida correção.]

Os Devoradores de Pecados desapareceram gradualmente ao longo do século XIX, e no século XX. Apenas as comunidades mais isoladas ainda faziam uso desse costume. Contudo, imigrantes que se fixaram nas Montanhas dos Apalaches, na América do Norte, praticaram a tradição até recentemente.

4 comentários:

  1. Boa matéria, a primeira vez que ouvi falar sobre o assunto foi no filme "Devorador de Pecados" com o falecido Heath Ledger.

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  2. Um dos personagens da serie "Sleepy Hollow" é um devorador de pecados. Se me lembro bem, os protagonistas precisavam "invadir" o Purgatório, mas para não ficarem presos lá não podiam ter pecados, ou jamais sairiam. Então eles chamam esse Devorador, que se limita a tocar nas mãos deles e fazer um ritual simples, nada tão macabro quanto os citados na matéria.

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  3. ñ sei se tado do mesmo tema mas a white wolf tem um jogo q se chama geist the sin eaters

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  4. O filme é interessante, mas fraquinho, com um Ledger ainda pré-coringa. O jogo da Onyx Path (acho que comprou a White Wolf) é interessante: é uma nova versão do Whraith, the Oblivion, só que agora mais jogável. Personagens interessantes tanto quanto os novos vampiros do Réquiem.

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