quarta-feira, 28 de outubro de 2015

ZUMBIS - A verdade sobre o Mito dos Mortos Vivos Haitianos (Parte 2)


(conclusão)

Nos anos seguintes a publicação do seu trabalho pioneiro, o estudo de Davis foi atacado por céticos e questionado quanto a sua validade científica por especialistas que criticavam sua metodologia e duvidavam de seu valor acadêmico. Alguns químicos apontaram que, embora a tetradoxina estivesse presente nas "poeiras de zumbi", a medida presente era inferior a necessária para causar um estado condizente com a "zumbificação" em indivíduos adultos. Foi sugerido também que para a tetradoxina funcionar de maneira eficiente, a dosagem teria de ser definida de acordo com cada indivíduo, e que uma concentração genérica dificilmente resultaria no efeito desejado. Uma dose muito grande poderia matar, enquanto que uma inferior não surtiria qualquer resultado. Céticos duvidavam também que feiticeiros bokor fossem capazes de sintetizar tetradoxina sem dispor de um laboratório e equipamento moderno. Finalmente, haviam suspeitas sobre a estória de Narcisse, com alguns achando a narrativa exagerada ou mesmo uma completa invenção. A ausência de elementos probatórios (além do testemunho da vítima) tornava difícil comprovar a maioria dos detalhes... a localização da plantação onde ele teria trabalhado e a identidade do bokor responsávelpela transformação, por exemplo, jamais foram determinados.

Davis defendia seu trabalho, ele acreditava que os bokor, ainda que não tivessem uma formação acadêmica, possuíam um conhecimento em bioquímica impressionante. Além disso, eles tinham acesso às suas vítimas o que lhes permitia calcular a dosagem necessária para o indivíduo que pretendiam transformar. O antropólogo também afirmava que o ritual dificilmente poderia ser considerado uma "ciência exata"e que os próprios bokor reconheciam que nem sempre o ritual era um sucesso. Um cálculo errado poderia matar ou deixar a vítima em um estado vegetativo. O próprio Davis afirmou em seu trabalho que ingeriu uma pequena dose da "poeira zumbi" para atestar seu funcionamento, mas que a dosagem não teve efeitos evidentes.

O peixe baiacu do qual deriva a tetradoxina
Após se defender de várias acusações, Davis decidiu assumir uma postura aberta, aceitando as críticas sem contra-atacar seus detratores. Segundo ele, a tetradoxina poderia constituir apenas um dos elementos presentes na "poeira zumbi", sendo ela potencializada por outros elementos presentes na fórmula. A presença da pele de diferentes anfíbios, e do veneno reativo nela, poderia agir como um catalizador da tetradoxina. Davis também criticou a maneira como foi realizada a análise de algumas de suas amostras, segundo ele, certos laboratórios descartaram elementos presentes nos ingredientes quando fizeram a decomposição química. Além disso, os feiticeiros podem ter ocultado algum detalhe da criação da poeira, escondendo alguns detalhes ou ingrediente considerado secreto.

Finalmente ele salientou que a tetradoxina era apenas uma parte dos ingredientes que resultavam na "poeira zumbi". Ela servia apenas para fazer a vítima "parecer morta", não especificamente para criar o zumbi. Seria a exposição ao coquetel de drogas que desencadearia o processo, não apenas a presença de um item isolado. O processo necessitaria de primeiro fazer a vítima parecer morta, através da tetradoxina, segundo, fazer a vítima enlouquecer por intermédio de drogas psicotrópicas, como a Datura stramonium e finalmente manter a vítima no estado de zumbificação, com a aplicação regular de doses.

Em seu segundo livro, "Passage of Darkness: The Ethnobiology of the Haitian Zombie"(Passagem para a Escuridão - A Etnobiologia do Zumbi Haitiano"), Davis continuou sua busca pelos componentes químicos que poderiam causar a zumbificação.  Ele empreendeu viagens para o Japão onde estudou a utilização da tetradoxina extraída do Fu-Gu (o peixe baiacu), uma iguaria preparada apenas por alguns cozinheiros especializados. No livro, Davis analisa os efeitos da toxina em indivíduos que comeram o Fu-Gu e sofreram o envenenamento pela tetradoxina ficando em um estado de transe por dias, e até sendo declarados mortos.

Zumbis trabalhando em uma plantação no Haiti
Embora o debate prossiga sem uma conclusão a respeito da validade do trabalho de Davis, houve outro estudo mais recente sobre o tema zumbis verdadeiros. O renomado jornal médico britânico The Lancett publicou um impressionante artigo em outubro de 1997, examinando três casos clínicos do que poderia ser compreendido como zumbificação, todos os três ocorridos no Haiti entre 1996 e 1997.

No artigo, o primeiro caso envolvia uma pessoa identificada apenas como FI, que teria morrido de febre aos 30 anos de idade. Ela foi enterrada pela sua família e ressurgiu misteriosamente três anos mais tarde vagando pelos arredores de seu vilarejo. Membros de sua família reconheceram FI, assim como seu marido e o padre da paróquia local. Não havia dúvidas a respeito de sua identidade. Após ser encontrada, FI apresentava um estado de catatonia delirante, no qual era incapaz de falar e se expressar. Após sua sepultura ser aberta, descobriu-se que ela estava vazia. Os parentes imediatamente suspeitaram que a mulher havia sido transformada em um zumbi e acusaram o marido de ter vendido o cadáver para um bokor realizar o ritual. A família não sabia o que fazer com a mulher em estado perpétuo de transe, incapaz de se alimentar ou de cuidar de suas necessidades, ela acabou sendo admitida em um manicômio de Port au Prince.

FI foi examinada por médicos do hospício que concluíram que ela parecia jovem e mais magra do que em fotografias anteriores. A mulher andava de modo estranho, lenta e sem coordenação, tropeçando nos próprios pés, os braços estendidos retos para baixo. Um exame de sua musculatura mostrou que ela havia perdido parte de seus movimentos. Quando questionada, a mulher se recusou a falar e murmurou de maneira incompreensível. Ela não cooperava com os médicos ou psiquiatras e resistia a todas as tentativas de reabilitação. Médicos realizaram um exame completo em seu sistema nervoso central, mas não encontraram nada fora do normal e certamente nada capaz de explicar seu comportamento bizarro. No final, FI foi oficialmente diagnosticada como esquizofrênica catatônica.

O segundo caso, envolvia um homem de 26 anos chamado WD, que era o filho de um policial trabalhando para o Regime Duvalier. WD ficou doente com uma doença misteriosa e repentina aos 18 anos e "morreu" três anos depois. Testemunhas alegavam que ele teria retornado dos mortos 19 meses após seu enterro, vagando pelos arredores da cidade onde nasceu, sendo visto por pessoas que imediatamente o reconheceram, eventualmente seu pai o encontrou e levou para casa. Os vizinhos afirmavam que ele era um zumbi e exigiram que ele fosse levado dali. O pai acusou o próprio irmão (tio de WD) de ter zumbificado o rapaz e ordenou que ele fosse preso. O acusado foi recolhido a prisão e chegou a ser julgado pelo crime, seu destino se perdeu em meio a ausência de documentos oficiais. WD foi conduzido pelo pai para uma cidade do interior do Haiti, onde ficou escondido. Supostamente ele passava seus dias acorrentado pelo calcanhar a um pesado toco de madeira, para não fugir ou vagar sem destino.


Quando WD foi examinado pelos médicos, eles perceberam que o rapaz era muito magro, disperso e parecia uito jovem. As pessoas disseram que ele passava a maior parte do tempo parado em uma posição esquisita com as pernas voltadas para a esquerda e os braços para a direita. Ele raramente falava e apenas uma palavra de cada vez, como se estivesse dormindo acordado. Ele evitava contato visual e olhava para o chão com uma expressão apática. Cicatrizes nos pulsos e tornozelos evidenciavam que o rapaz era constantemente mantido preso a correntes e fios elétricos. Nas costas, WD tinha uma bizarra ferida circular e profunda que vertia pus e parecia ter cicatrizado repetidas vezes. Seu pai dizia que havia sido por aquela ferida que o veneno que o transformou em zumbi havia sido administrado.

O sistema nervoso parecia normal após um exame, e não havia sinal de retardamento mental ou catatonia, mas parecia óbvio haver algum tipo de redução da função cognitiva uma vez que WD tinha dificuldade em reconhecer pessoas ou objetos. As pessoas que cuidavam dele disseram que WD também era frequentemente acometido por um surto agressivo. O diagnóstico final foi que ele sofria de alguma doença cerebral e de epilepsia consistente com um período de anoxia. Uma análise de DNA anos depois concluiu que WD não era filho biológico do policial, e que provavelmente o caso não passava de identidade confundida.

O terceiro caso analisado foi o foco do artigo; ele se referia a MM, uma mulher de 31 anos. Aos 18 anos, a jovem teria sido raptada de sua casa e vendida a um feiticeiro que a transformou em um zumbi após um ritual. Ela reapareceu 13 anos mais tarde em um mercado de sua cidade natal. Confusa e apática, as pessoas apontavam e gritavam que MM era um zumbi. Seus familiares a encontraram vagando por uma plantação e imediatamente a reconheceram. MM contou que o bokor que a havia transformado em zumbi, a matou em um ritual e que depois ela foi obrigada a trabalhar numa fazenda como escrava. Ela escapou depois que o bokor morreu em um acidente e então vagou pelas florestas sem destino.


O caso de MM foi considerado atípico para ser tratado como uma zumbificação, já que ela reteve a maior parte de suas habilidades cognitivas, embora ainda fosse descrita pelos seus parentes como menos inteligente do que antes do incidente. Ela também demonstrava alguns problemas ao enfrentar situações sociais, como uma tendência a rir em momentos inapropriados e um déficit de atenção. Fisicamente, a mulher não apresentava anormalidades perceptíveis a não ser uma cicatriz arredondada sem causa aparente no esterno, semelhante a encontrada em WD. A essa altura, MM havia sido apenas diagnosticada como tendo inaptidão para o aprendizado, possivelmente causada por consumo excessivo de álcool da mãe durante a gestação.

A estória se tornou mais estranha, quando MM foi levada até a vila onde ela alegava ter sido mantido prisioneira. No mercado da vila, ela foi reconhecida por uma mulher afirmando que MM era uma moradora local considerada retardada que havia desaparecido há nove meses. A família dessa menina também a reconheceu e insistiu que MM era sua filha desaparecida. Os alegados irmão e filha dela na vila tinham uma semelhança física impressionante com ela, tanto na aparência quanto nos maneirismos. MM admitiu que a menina era sua filha, mas insistia que ela era resultado da união com outro zumbi que também havia sido escravizado. No fim das contas, os pesquisadores consideraram o caso como uma simples confusão de identidade.

A conclusão foi que MM sofria de esquizofrenia ou outra doença mental, agravada por abusos e um possível ferimento na cabeça. Ela simplesmente assimilou os conceitos do folclore e superstições locais a sua estória.

Um Zumbi e seu bikor
De forma interessante, o relatório admite que a incidência de indivíduos profanando tumbas e cemitérios no Haiti chega a ser epidêmica. O mercado de partes de cadáveres e de ingredientes macabros para potencializar rituais de vodu não para de crescer no país. O trabalho menciona o uso de tetradoxina e outras substâncias químicas extraídas de plantas e animais. Reconhece ainda a possibilidade de alguns bokor dominarem métodos de extração de substâncias capazes de alterar a percepção como o Datura stramonium capaz de paralisar e reviver as vítimas como escravos passivos, para alguns zumbis. O relatório conclui da seguinte forma:

"Não é possível excluir que o uso de toxinas neuromusculares, administradas topicamente por um conhecedor de suas propriedades possa induzir catalepsia e propensão a obedecer ordens. Dessa maneira, é possível, que o uso de substâncias especialmente criadas resulte naquilo que o folclore do Haiti chama de zumbificação".

Ingredientes Vodu à venda
Mas enfim: Zumbis existem ou não? O povo do Haiti certamente acredita que sim. Lá, as pessoas estão condicionadas a acreditar que eles são muito mais do que estórias criadas para assustar. As lendas sobre zumbis persistem no Haiti até os dias de hoje, com avistamentos dessas criaturas sendo algo comum tanto nas áreas rurais do interior, quanto nas cidades mais populosas da ilha. A incidência de queixas a respeito de pessoas transformadas em zumbis chega a mil por ano. "Zumbificação", aliás, é um crime previsto no  Código Penal Haitiano, sob o Artigo 246, no qual é considerada prática delituosa "qualquer assassinato com o propósito de trazer de volta dos mortos a vítima e escravizá-la".

Parece razoável acreditar, após analisar os trabalhos e pesquisas, que existe uma base científica para as estórias de zumbis no Haiti. Mas na prática, nem todos os pesquisadores estão inclinados a aceitar a noção de que indivíduos possam ser mentalmente escravizados após a morte, mesmo que os indícios corroborem essa possibilidade. Por hora, essas misteriosas criaturas permanecem espreitando os limites dos vilarejos haitianos e também nossa imaginação. Sejam eles escravos dominados pelo poder de drogas ou cadáveres reanimados pela mais negra magia, o enigma dos zumbis do Haiti continua.

Talvez um dia possamos responder essas perguntas, mas por enquanto o que nos resta é observar e temer o desconhecido.

4 comentários:

  1. ATENÇÃO - Pegadinha no exame da Ordem dos Advogados do Haiti: Artigo 246 do Código Penal Haitiano, crime continuado ou permanente?
    Brincadeira! CONGRATULAÇÕES PELA CONCLUSÃO DA MATÉRIA, KING! MUITO BOA! É material de primeira que os roteiristas do gênero deveriam utilizar. O filmes de morto-vivo já estão mais batidos que o found footage e mockumentary. Exceção a duas produções que assisti recentemente: Contracted do diretor e roteirista Eric England e Thanatomorphose, primeiro longa-metragem do diretor e roteirista Éric Falardeau. Fica uma última dica: ACELGA: Bata no liquidificador ½ xícara de folhas de acelga picadas com ½ xícara de água e vá tomando pequenas doses desse remédio a cada oito horas. Combate a ânsia de vómito.

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  2. Tanatologia. Um colega médico se especializou nisso... Eu folheei um livro e realmente fiquei perturbado a ponto de não querer olhar tudo. Um filme sobre o assunto? Haja acelga!

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  3. Posts bem legais sobre zumbis!
    Uns detalhes: em português, a tradução é tetrodotoxina; comunidades pesqueiras no Brasil também costumam comer o baiacu vezemquando, retirando as gônadas e o fígado com cuidado, que são os locais de maior concentração da toxina (embora tenha na pele também).

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  4. Excelente!
    Eu me recordo de uma passagem de "The Dunwich Horror", onde Wilbur Whateley registrou que os Antigos devem retornar DEPOIS que a Terra estiver despovoada. Um apocalipse zumbi poderia ser uma estratégia para "limpar a casa" para a volta dos Antigos?

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