quarta-feira, 13 de abril de 2016

Cinema Tentacular: A Bruxa (The Witch): Um filme de Horror digno da palavra


Demorou mas enfim consegui assistir o tão falado filme "A Bruxa" (The Witch/2016).

A produção chegou aos cinemas no início do mês de março, cercada de muitos comentários e rumores. Alguns alardeavam que ele seria o melhor filme de horror dos últimos cinco anos, talvez o melhor da última década. Um filme bem cuidado, bem interpretado, bem dirigido e com um roteiro simplesmente arrepiante. Sem dúvida, ele causou frisson e chocou as plateias nos festivais independentes onde foi exibido. Mais do que qualquer coisa, o filme ficou conhecido por ter recebido a chancela de Stephen King, que escreveu um comentário afirmando ser "A Bruxa" um dos filmes mais assustadores de todos os tempos.

Mas nem todos concordam. Junto com as críticas positivas e comentários elogiosos, pipocaram resenhas negativas. Pessoas que criticavam o ritmo lento, quase moroso da trama, que consideraram o filme monótono, um exemplo clássico de marketing que eleva uma produção mediana a um status que ela não merece. Propaganda sem conteúdo? Será?

Ouvi os dois lados e fui assistir tentando salvaguardar minha opinião, sem qualquer preconceito. Quando as letras dos créditos finais subiram, cheguei a duas conclusões:

1 - Pode não ser o melhor e nem o mais assustador filme de Horror que eu já vi;

2 - Mas mesmo assim, é um excelente filme de Horror.  


A Bruxa é um daqueles filmes difíceis de se escrever uma resenha, mas decidi que ia comprar a briga de tentar falar a respeito. A gente fica em dúvida sobre o que pode escrever para não ir longe demais e entregar alguns elementos centrais. Eu precisei revisar esse texto duas ou três vezes para que não cometesse nenhuma gafe capaz de atrapalhar a diversão alheia, portanto, não há SPOILERS (pelo menos até o ponto com uma ENORME placa e um disclaimer. Leia até lá, sem medo!)

Primeiro é preciso dizer que o filme é visualmente impecável. A produção é incrivelmente bem cuidada e transmite um senso de realidade histórica que ajuda muito a construir a atmosfera em que o filme se passa. Cenografia, figurino, cenários, tudo é muito bem feito com atenção aos mínimos detalhes. Dizem que historiadores foram chamados para conferir a produção minuciosamente, chegando a apontar qual seria o tecido mais adequado para confeccionar as roupas e a maneira como determinados itens eram usados pelos colonos do século XVII, época em que se passa a estória. O resultado é impressionante. Você sente que a reconstituição funciona quando percebe a maneira pouco natural como os atores infantis se comportam em cena.

Mais do que o visual, o filme soa antigo. Os atores receberam aulas de gramática e dicção, na qual tiveram de aprender a forma como as pessoas na Nova Inglaterra falavam. O forte sotaque britânico e a maneira austera como os puritanos tratavam uns aos outros. Tentar entender esse filme sem o auxílio de legenda é uma tarefa no mínimo complicada dada a forma como os personagens falam. Dizem que a barreira do idioma constituiu um desafio para o público norte-americano, alguns tiveram dificuldade em compreender alguns trechos.


Filmado em uma fazenda abandonada no Canadá, cercada de densas florestas - muito parecidas com as matas originais da Nova Inglaterra, o ambiente reforça a aura opressiva da trama. A beleza primitiva da paisagem constantemente envolta por um nevoeiro cinzento e a forma como a floresta erma parece engolir a propriedade, chega a dar nos nervos.

Centrado na região de Salem em 1630, algumas décadas antes dos infames julgamentos de Caça às Bruxas, que colocaram essa região rural nos livros de história, "A Bruxa" acompanha os passos de uma família através da histeria religiosa e loucura que imperavam na época. O diretor Robert Eggers faz uma estreia impressionante, arriscando ao misturar elementos de ceticismo com indícios inquietantes de sobrenatural. Ele não permite ao espectador definir se o que está acontecendo é real ou se não passa da imaginação dos personagens. O resultado leva a dúvidas e questionamentos que nos acompanham até a última e devastadora cena.

Com uma direção estilizada e claustrofóbica, o filme, embora seja uma produção de orçamento modesto, consegue provocar arrepios recorrendo somente ao clima e a aura de estranheza. Não há truques de cena, praticamente nenhum efeito especial mirabolante. A Bruxa é um filme que propositalmente demora a engrenar. A estória vai amadurecendo lentamente, por vezes nada acontece, mas mesmo assim, permanece uma sensação inquietante no ar.


O isolado local escolhido pelo casal William e Katherine para viver não parece ser o mais adequado, mas é o único para onde eles poderiam ir. Banidos de um rústico assentamento colonial em Massachusetts após discordar de um ponto de vista religioso, os dois são forçados a empreender uma viagem rumo ao interior em busca de um lugar onde possam construir sua fazenda e criar seus cinco filhos. A família se estabelece na borda de uma floresta e lá tenta domar a natureza e superar as adversidades que se multiplicam. E haja dificuldades! Lá pelas tantas, a gente se pega pensando como a vida dessa gente devia ser desgraçada e triste. Tudo se resumia a trabalhar duro, rezar, comer, dormir e começar tudo de novo no dia seguinte. Não havia alegria, não existia satisfação ou felicidade, tudo é cinza.

Cada personagem é apresentado e tem um papel bem definido nos acontecimentos e no drama que se segue. O pesadelo da família começa quando o filho mais jovem, o bebê Samuel desaparece misteriosamente enquanto estava sob os cuidados de sua irmã Thomasin. Quase imediatamente nós temos um vislumbre perturbador do destino da criança, na forma de um sangrento ritual de bruxaria, embora não fique claro se a imagem comprova que há algo diabólico acontecendo ou se ela não passa dos temores vívidos dos pais. Uma vez que o bebê não havia sido batizado, eles temem que a alma de Samuel esteja fadada a arder no Inferno.

Thomasin, a primogênita acaba sendo culpada pelo desaparecimento de Samuel, atraindo olhares de reprovação e censura, sobretudo da mãe. A menina, logo se torna o bode expiatório de todos, um símbolo conveniente do fracasso e dos erros do clã. Enquanto Katherine se refugia no quarto, lamentando e rezando pela alma de seu filho, ela amargamente culpa Thomasin pela negligência, a despeito dos protestos da menina que afirma não ter feito nada de errado. William, embora não culpe a filha e atribua a tragédia ao ataque de lobos, também sofre com o peso de sua teimosia. Foi por causa dele que a família teve que deixar a segurança da vila e se lançar no desconhecido. Para piorar as coisas, a colheita da fazenda, essencial para os meses vindouros, acaba não vingando. Sem o apoio de vizinhos e amigos, sua situação no inverno será complicada.


Lutando para ajudar da melhor maneira possível, Caleb, o segundo filho faz tudo ao seu alcance aventurando-se com o pai na floresta em busca de comida e de peles. Mas tudo parece fadado a dar errado para a família, William acaba se ferindo numa expedição de caça, seu cão é morto e ele passa a ter certeza que eles estão sofrendo algum tipo de maldição. Caleb acredita na inocência da irmã, mas o pobre rapaz sofre com o isolamento, seus olhares cada vez mais indiscretos para Thomasin fazem com que ele fique remoendo a culpa.

O círculo familiar é completado pelos gêmeos Mercy e Jonas, duas crianças endiabradas que estão convencidas que Thomasin não apenas abandonou Samuel na floresta, mas que de alguma forma é culpada de coisas muito piores. Elas acreditam que a irmã se associou com uma misteriosa bruxa e que firmou um pacto usando como interlocutor o bode da família, um bicho medonho chamado Black Phillip.

O bode negro é quase um membro da família e está sempre observando os acontecimentos atentamente. É claro, o animal é um símbolo frequentemente associado ao diabo e a forma como ele transita pelo pano de fundo deixa os espectadores em alerta. Cada vez que os gêmeos mencionam que viram Thomasin conversando com Black Phillip a respeito de bruxaria, ficamos com a pulga atrás da orelha imaginando se os pestinhas estão falando a verdade ou inventando tudo.


A medida que o filme progride as coisas pioram e indícios de uma presença maligna vão se tornando cada vez mais claros, quase como se os cascos do diabo deixasse um rastro na lama da fazenda. Repleto de situações corriqueiras transformadas em episódios inexplicáveis, a Bruxa não recorre a nada além da imaginação do espectador, incentivando que ele desenvolva sua própria paranoia e ofereça suas explicações.

Os personagens experimentam uma progressiva degeneração emocional e psicológica, bombardeados por incidentes inexplicáveis, eles começam a temer não apenas pelas suas vidas, mas pelas suas almas imortais. Willian ainda repete que tudo não passa de um teste: "Deposite sua fé nas mãos de Deus", ele repete exaustivamente, mas mesmo o patriarca já não parece acreditar na salvação. Para todos os efeitos o sentimento de isolamento é completo. No coração de um vazio selvagem, ninguém será capaz de ouvir seus gritos ou atender seus pedidos de clemência. Abandonados por tudo e por todos, até pela própria esperança, nada mais resta a eles senão esperar pelo pior (e se desesperar).

Com um elenco composto por dois atores de Game of Thrones (os pais, Ralph Ineson e Kate Dicki) e por crianças talentosas dirigidas com uma mão firme, os protagonistas são responsáveis por assegurar a credibilidade do roteiro. Um elenco diferente talvez não conseguisse traduzir para a tela as aflições das personagens. O respeito com que o roteiro trata os personagens também faz a diferença... ele escapa da armadilha fácil de retratar os membros da família como idiotas supersticiosos, e os apresenta como pessoas normais do período. Anya Taylor-Joy que interpreta Thomasin também tem uma atuação beirando a perfeição, oscilando entre a insegurança de uma criança tratada como adulta e a injustiça a que é sujeita por todos aqueles que deveriam protegê-la.

A Bruxa é um pouco provável misto de "As Bruxas de Salen" e "O Iluminado" (que o diretor cita como uma inspiração imediata e um de seus filmes favoritos). É fácil encontrar um ponto comum no gritante isolamento e na majestosa paisagem que torna a presença humana insignificante. Assim como o Hotel Overlook funcionava quase como uma entidade, a natureza em "A Bruxa" também parece observar cada instante do núcleo familiar. Há também algo de "O Exorcista" na densidade dramática e na sensação de que um mal invisível está espreitando, se acumulando como uma imensa tempestade prestes a desabar sobre a cabeça de todos.


A Bruxa também poderia ser um drama, nos moldes de "A Fita Branca", sobre as relações de uma família levada aos extremos e a deterioração dos laços de sangue quando confrontados com uma situação limítrofe. Abordados pelo medo primitivo, os vínculos familiares vão se tornando cada vez mais finos e sobram acusações e suspeitas. O resultado óbvio é a desintegração de qualquer elo, descambando para violência, crueldade e um sentimento de cada um por si. Apesar do título, a bruxa, se é que ela existe, atua apenas nos bastidores deixando a família afundar lentamente na insanidade que ela mesma promove.

Mas a questão que não quer calar é: existe algo de realmente aterrorizante em A Bruxa que justifique o burburinho a respeito do filme?

A resposta não é tão simples.

Por um lado, a Bruxa pode parecer um filme monótono, no qual muito pouca coisa sinaliza com horror legítimo, mas para quem se deixar levar pela história e cede ao apelo da trama, haverá arrepios de sobra. A maneira como a mera sugestão do mal consegue se insinuar e devastar com a dinâmica familiar é chocante o suficiente para causar desconforto nos mais calejados fãs do horror. 


Não espere por sustos fáceis, imagens grotescas de tortura (esse "torture porn" que tomou conta do gênero!) ou monstros bizarros, o horror aqui é sugerido nas entrelinhas, mas nem por isso é menos perturbador. Assista e tire suas próprias conclusões.

E agora, chegando ao final da resenha, vou pedir perdão aos leitores e incorrer em SPOILER por que ao meu ver uma resenha desse filme não poderia estar completa sem um adendo a respeito de seus minutos finais.

Pare então nesse ponto pois as linhas a seguir contém revelações do filme. Sinta-se a vontade para retornar aqui depois de assistir, ou siga em frente se achar que isso não vai influir no seu entretenimento...

Seja como for, esteja avisado.


A razão pela qual eu separei esse trecho final da resenha é por que eu estava doido para falar a respeito do final acachapante desse filme que me deixou realmente arrepiado.

Como disse, A Bruxa não é o filme mais apavorante que eu já assisti, mas o final é daqueles que equivalem a um soco na boca do estômago, do tipo que deixa a gente sem ar por algum tempo. 

Nos minutos finais, a conversa entre Thomasin, a única sobrevivente da família com Black Phillip é um trecho absurdamente sinistro não apenas pela estranheza que permeia toda cena, mas pela escolha de uma voz vazia e destituída de qualquer emoção humana para representar o colóquio entre a menina e o demônio. Mais tenso do que a voz suspensa no ar, são as palavras escolhidas pelo "coisa ruim" que soam pegajosas. A cena me remeteu a raposa falante ("Chaos Reigns") do filme Anticristo e ao Satanás disfarçado de criança em "A Última Tentação de Cristo", ambas representações discretas e chocantes do mal em estado físico.


Eu reproduzo abaixo o diálogo na minha opinião um dos mais perturbadores que já vi:

Thomasin: Black Phillip, eu vos invoco para falar comigo. Falai como fazia com Jonas e Mercy. Vós entendeis a língua inglesa? Respondei.

Black Phillip: O que vós quereis, filha?

Thomasin: O que podeis me dar?

Black Phillip: Queres sentir o sabor de manteiga e ter um vestido bonito? Queres viver deliciosamente?

Thomasin: Sim.

Black Phillip: Queres ver o mundo?

Thomasin: O que vai ser de mim?

Black Phillip: Vês esse livro? Abre suas páginas...

Thomasin: Eu não posso escrever meu nome.

Black Phillip: Eu guiarei vossa mão, criança.

O trecho final que menciona o tal livro se refere a uma das crenças mais disseminadas entre os puritanos, a de que Satã oferecia um mundo de prazeres em troca de assinar o próprio nome (em geral com sangue) nas páginas de um grande livro. Uma vez assinado o nome, a alma da pessoa passava a pertencer ao Inferno, simbolizando que para sempre ela havia rompido com a fé cristã.

A forma como o demônio, falando por intermédio de Black Phillip oferece tão pouco para a menina (O Gosto de manteiga? um vestido bonito?) e ela aceita de bom grado, é perturbadora.

Deixando o celeiro onde firmou o pacto, a menina caminha para o lado de fora e encontra um cabal de bruxas dançando nuas ao redor de uma fogueira, comungando com as trevas e flutuando no ar (teriam usado a gordura extraída do bebê Samuel para esse feitiço como se acreditava na época?).

Thomasin caminha vacilante para assumir seu lugar entre as Bruxas. Suas irmãs. Sua nova família.

Tenho alguns amigos que comentaram que o filme seria perfeito se tivesse terminado antes desse trecho apoteótico, mas na minha opinião o final faz todo sentido e completa a trama com chave de ouro. Ainda subsiste a suspeita de que tudo poderia ser uma enorme alucinação, mas no fundo, sabemos que é a verdade e que o mal sempre esteve espreitando, aguardando para perverter a inocência de Thomasin.

Um final perfeito para um filme de horror bem acima da média.


Cotação:



Trailer #1:


Trailer #2:

2 comentários:

  1. Bom, logo se tratando como um blog sobre o universo de horror criado pelo Lovecraft eu esperava que algum de vocês percebe-se a referência (involutaria) ao Nyarlothep na ultima cena com a conversa com o Thomasin e o Black Philip. Claramente percebe-se que se trata de uma das mascaras do Nyalorthep como o Homem Negro que ensinou a magia para as bruxas e que foi referenciado durante o período do século 16 como o Diabo da biblia.

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