quinta-feira, 28 de abril de 2016

Sanidade, Insanidade e a força do Mythos - Por que investigadores enlouquecem?


Once I had a little game 
I mean the game called "go insane"
Forget the world, forget the people 
And we'll erect a different steeple

Jim Morrison - A Little Game

No coração das ambientações inspiradas pelo Horror Cósmico está o conceito de Insanidade, um abrigo pessoal no qual os personagens buscam refúgio quando a realidade se torna assustadora demais e insuportável além da conta.

A maioria dos indivíduos diagnosticados com algum tipo de insanidade nasce com uma anormalidade mental com a qual terão de conviver até a morte. Os heróis de Call of Cthulhu, no entanto, são pessoas normais que enlouquecem em decorrência de seu contato com o perigoso mundo dos Mythos.

Eles se tornam insanos como um mecanismo de defesa diante da absoluta falta de humanidade daquilo que é conhecido como Cthulhu Mythos. Investigadores e outros personagens de ambientações lovecraftianas compartilham de uma mesma fraqueza, afinal de contas, todos eles são humanos. Não há super poderes, magia ou capacidade sobrenatural capaz de blindar a mente do investigador que se embrenha nessa rota abominável.

Os Mitos são como uma substância radioativa, uma espécie de plutônio que corrói a mente, contaminando e deteriorando a razão de tal maneira que nem mesmo o mais sensato dos homens, o mais razoável dos indivíduos, escapará incólume de sua depredação. Uma mente tocada pelos Mitos jamais irá se recuperar por inteiro.

Mas antes de mergulhar na questão dos Mitos e como ele afeta a mente humana, devemos estabelecer o que é Sanidade.

A Sanidade é o estado mental de consciência existencial. A Sanidade representa o controle, a estabilidade e a capacidade de racionalização do indivíduo. Nos jogos Lovecraftianos, a sanidade também representa a capacidade do personagem de suportar e se proteger de choques emocionais arrebatadores. Aqueles que iniciam o jogo com um número alto de sanidade possuem uma mente forte. Eles são capazes de racionalizar coisas absurdas, afastar lembranças nocivas e repudiar visões devastadoras. Aqueles com pouca sanidade são mais frágeis, e portanto são mais suscetíveis ao choque e horror que os conduz a loucura.


No jogo, é o choque emocional que causa a insanidade. Mas de onde vem esse choque emocional?

Em primeiro lugar, a grande maioria das Entidades dos Mitos de Cthulhu são absolutamente terríveis. São a matéria de pesadelos manifestadas no mundo real da maneira mais direta e crua possível. As criaturas que compõem os mitos são monstruosidades blasfemas que na concepção humana não deveriam existir ou ao menos não deveriam ocupar um lugar no universo natural em que vivemos. Lovecraft deliberadamente optou por fazer suas criaturas serem alienígenas ao extremo. Em sua obra, podemos sentir que ele tenta desesperadamente encontrar adjetivos capazes de descrever essas entidades, mas a tarefa se mostra impossível pois não existem palavras capazes de fazer jus a tais seres. Eles são por definição impossíveis, indescritíveis, imponderáveis... e quanto mais estranha aos nossos olhos a sua forma, maior o choque produzido.

Saber da existência de tais poderes cósmicos faz com que a percepção familiar de um universo em ordem e compreensivo, desmorone por inteiro. A mera existência dos Mitos, e sua capacidade de perverter as Leis da Natureza se apresentam como um ponto de ruptura para a mente humana. Os Mitos de Cthulhu desafiam os conceitos de razão e dedução, não há como entendê-lo sob um prisma seguro, ele está além de qualquer conceito estabelecido pela humanidade. Humanos não podem começar a compreender essa força, sem de alguma forma baixar suas defesas e abrir a mente para essas noções. Em suma, ao sentir o pulso dos Mitos reverberando em todas as coisas; a razão e a sanidade são sacrificadas para sempre. Abraçar a loucura é a única maneira de continuar vivendo depois de tocar esse coração profano.

Para aqueles que esbarram no conhecimento pérfido dos Mitos, loucura ou a ameaça constante da loucura, se torna uma companhia constante. Nos jogos, conhecimento a respeito do Cthulhu Mythos reduz os pontos de sanidade exponencialmente. Quando um personagem toca os segredos do Mitos ancestrais, o peso emocional e a sobrecarga mental dessas revelações se tornam um fardo pesado para ser carregado. A mente sofre com essas revelações e vai deteriorando cada vez mais: ele falha em testes de sanidade cada vez mais frequentemente, a insanidade permanente passa a ser uma realidade a medida que a espiral de loucura puxa o indivíduo cada vez mais fundo.


Muitos jogadores vêm o aumento da habilidade Cthulhu Mythos como uma espécie de recompensa da aventura. Na realidade, esse conhecimento é como uma doença que se instala na mente, um câncer disposto a crescer sem controle se for alimentado. Embarcar na busca de pontos de Mythos de Cthulhu é uma forma de condenar o personagem a um destino cruel do qual não há volta.

Cabe ao mestre explicar claramente o que representa esse saber e fazer com que os jogadores compreendam no que estão se metendo. Nenhum personagem, exceto os suicidas, os já insanos ou os que tem pré-disposição para se tornarem cultistas se embrenham profundamente nessa busca desejando de corpo e alma desvendar seus mistérios profanos.

Mas como fazer com que os jogadores compreendam o que significa ser exposto aos Mitos? Como fazer com que os jogadores não apenas quantifiquem o custo de sanidade em termos de pontos perdidos?

Na minha opinião, o Mitos deve produzir uma espécie de cicatriz nos personagens. Ele não deve se limitar a perda de uma quantidade determinada de pontos e nada mais. O Mitos deve repercutir na existência e na alma do personagem, dali em diante o saber adquirido causará no personagem efeitos dos quais ele não poderá (e não conseguirá!) se dissociar.

Muitos dos jogadores iniciantes em Chamado de Cthulhu perguntam por que seus personagens estão sujeitos a loucura e ficam impotentes diante dos horrores. Alguns não entendem a causa da insanidade que acomete os personagens.


Eu gosto de explicar da seguinte maneira:

Ser exposto ao conhecimento dos Mitos Ancestrais equivale a ser suplantado por uma onda de horror, pessimismo e impotência diante de uma força inacreditável. Equivale a descobrir de uma hora para outra que o universo não se importa com a humanidade. Que nossa espécie é um mero acidente no percurso cósmico e que de um momento para o outro, nós podemos ser varridos da existência e ninguém sequer saberia disso. Mais do que a constatação da insignificância, os Mitos representam a certeza de que o universo não é organizado e sim caótico, não é perfeito e sim falho, não é benevolente mas absolutamente indiferente.

Não é apenas a feiúra dos monstros ou suas formas absurdamente bizarras, é a constatação de que aquilo simplesmente NÃO DEVERIA EXISTIR que obriga os investigadores a procurar na loucura o único alento restante.

Em seu próximo cenário, pondere como você jogador reagiria ao se deparar com as revelações do Horror Cósmico, e então, tenha pena de seu pobre personagem, pois no mundo deles, esses horrores são muito reais.

E tudo que resta, é a doce loucura...

4 comentários:

  1. Muito bom esse artigo! Aliás, tudo que eu leio aqui no Mundo Tentacular é sempre excelente! Parabéns!

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  2. Texto incrível, meus parabéns. Estou narrando um RPG de horror inspirado em Cthulhu. A ideia inicial era ser um apocalipse zumbi, mas durante a organização da história do jogo tive contato com o Nerdcast RPG, e tive a ideia de misturar elementos mais sobrenaturais. Os principais inimigos dos jogadores são espiritos, os zumbis tão ali para atrapalhar a movimentação deles, e o grande objetivo do jogo é impedir que um rei demônio desperte em um ritual que está sendo feito por um grupo de cultistas. (inclusive, os zumbis estão ali sob o comando desse demônio. O nome dele? Nyarlathotep ;)

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