segunda-feira, 3 de julho de 2017

Coração Satânico - Resenha do Livro da Darkside


O ano de 1987 foi bom para quem gosta de filmes de horror, o que, ironicamente, era uma péssima notícia para quem tinha entre 11 e 15 anos de idade.

Eu sei bem disso. Lembro que queria muito assistir ao que estava saindo no cinema - A Mosca, Hellraiser, Evil Dead II, mas não tinha idade suficiente para passar na bilheteria. Existia uma censura indicativa, e embora alguns cinemas fizessem vista grossa para a entrada da molecada, outros eram bastante severos quanto a isso.

Quando os cinemas começaram a anunciar um filme chamado Coração Satânico eu fiquei maluco. Não lembro onde, mas assisti ao trailer e fui imediatamente fisgado pelas imagens. Tudo no filme parecia atraente, em um estilo de atração proibida que fazia minha imaginação fervilhar. O trailer não deixava muita coisa clara, mas tudo no filme, a começar pelo título tinha uma aura de mistério e proibido. Além disso, a Revista SET, uma publicação sobre cinema e vídeo (quem foi adolescente na época sabe do que eu estou falando), publicou uma matéria de capa enorme a respeito desse filme. Mas desgraça das desgraças, quando Coração Satânico foi lançado, tinha censura 18 anos.


Eu não lembro dos detalhes, mas sei que tentei assistir o filme em duas ocasiões, mas em ambas não permitiram minha entrada e da minha turma de amigos. Para juntar sal à ferida, em uma das tentativas dois dos meus colegas, que eram um pouco maiores conseguiram entrar enquanto os outros ficaram com cara de "também quero" na bilheteria. Os comentários desses colegas foram conflituosos, um não entendeu o filme direito, o outro gostou muito, ambos concordavam que Lisa Bonet era linda e aparecia em cenas muito à vontade que fizeram a alegria da molecada.

Infelizmente tive de me conformar em assistir Coração Satânico apenas anos mais tarde, lançado no formato de fita cassete. O filme era tudo que eu esperava! Confesso que na primeira vez não devo ter entendido tudo, sobretudo por estar distraído com os atributos de Lisa Bonet (e que atributos!), mas foi o suficiente para gostar do que vi.

De lá pra cá, devo ter assistido esse filme uma dúzia de vezes. Coração Satânico se tornou um dos meus filmes favoritos de Horror. Não por ser assustador, mas por ser incrivelmente seletivo no que escolhe mostrar. O horror não é gráfico, longe disso, é discreto e contido, talvez exatamente por isso ele cause arrepios. É um daqueles filmes cuja história é tão bem construída que você não apenas assiste, você participa da investigação do detetive Harry Angel (vivido por Mickey Rourke, que acredite se quiser, já foi estrela e candidato a galã de cinema!). O pobre sujeito é jogado de um lado para o outro depois de aceitar um trabalho oferecido por um cavalheiro chamado Louis Cyphere (Robert DeNiro em momento iluminado). E a medida que ele vai escarafunchando o submundo de Nova York em busca de pistas, e acaba fazendo uma viagem dos diabos para Nova Orleans a gente percebe que essa investigação vai terminar da pior maneira possível.


Cara, que filme! 

Tem gente que não gosta, justamente por ele ter um ritmo mais lento. Já ouvi comentários "heréticos" de pessoas que acharam ele leve demais. Mas francamente, esse não é um filme de sustos ou de gore, é um filme de ambiente e clima, no qual sombras, enquadramentos e sugestões fazem muito mais pela história do que litros de sangue - o que não significa dizer que não haja sangue, de fato, há muito dele escorrendo. Não consigo entrar em um elevador de porta pantográfica sem lembrar desse filme!

Esses tempos assistindo o DVD me dei conta de que Coração Satânico, completaria 30 anos.

Me dei conta, também, de duas coisas: 

1) Eu estou ficando velho,
2) Eu não havia lido o livro no qual ele foi baseado.

Não tem como lutar com um desses fatos, mas o outro eu podia reparar facilmente. Procurei saber a respeito de "Falling Angel", o título original do romance publicado em 1978, escrito por um sujeito de nome complicado, William Hjortsberg. Infelizmente o livro, aqui no Brasil, não estava disponível fazia tempo, me dei por conformado, fazer o que...


Eis que pouco menos de um mês depois, recebi uma Newsletter da Editora Darkside que mencionava que um de seus próximos lançamentos seria exatamente "Coração Satânico" (a editora preferiu acompanhar o título do Filme, ao invés de traduzir para "Anjo Caído" ou algo que o valha). Foi uma coincidência que, perdoe-me o trocadilho, era nada menos do que satânica. O livro que eu estava procurando seria publicado pela editora que eu, pessoalmente considero a melhor e mais fiel editora brasileira dedicada aos gêneros Literatura Fantástica e Horror. Parecia até óbvio que fosse a Darkside a trazer Coração Satânico de volta, mas ao mesmo tempo foi uma grata surpresa.

Esperei ansioso pelo lançamento e quando finalmente tive o livro em mãos devorei o romance do início ao fim com uma voracidade que me fez virar páginas em ritmo frenético e tomar cuidado para não pular parágrafos tamanha a ansiedade para saber o que viria a seguir.

É engraçado, pois embora curioso a respeito da versão original, o fato de eu conhecer o filme de cor e salteado, e mais, saber como ele termina, deveriam diminuir consideravelmente o efeitos das reviravoltas e do final bombástico. Mas não! O livro é escrito de uma maneira tão envolvente que você vai se deixando levar e cada revelação, tem o peso de um soco no estômago, não importa se você sabe ou não que ela está chegando.


Muita gente coloca Falling Angel, o romance, na categoria de grandes clássicos modernos do Horror e não é para menos. O autor desse livro, o tal sujeito de nome complicado que me força a soletrar toda hora H-J-O-R-S-B-E-R-G, escreveu algo incrivelmente bem construído, um romance de detetive que em retrospectiva tem uma história simples, mas que deixa a gente pensando por um bom tempo depois de terminar as últimas linhas. O leitor vai acabar indo e voltando nas páginas para buscar aquelas pequenas pistas que revelavam de antemão o mistério, mas que foram tão bem escondidas que não se percebe na hora. O diabo, como dizem, está nos detalhes, e não faltam nem detalhes e muito menos o diabo nesse livro pra lá de perverso.

Coração Satânico é uma homenagem aos romances de detetive, com os dois pés fincados no gênero Noir. Ou seja, espere por detetives durões, contratos de risco com clientes estranhos, cenários sórdidos, gente suspeita e aquela sensação de constante claustrofobia. Mas além de ser um eficiente romance de detetive, Coração Satânico investe num clima de horror, com uma investigação de dar nos nervos a respeito da podridão humana, da sede de poder e da ambição. O filme destila doses cavalares de cinismo a cada capítulo e tem uma narrativa em primeira pessoa - como é comum em romances desse tipo, que soa como se o detetive estivesse contando o caso para um velho amigo numa mesa de bar. Boa parte da narrativa vem na forma de diálogos o que ajuda a fazer o texto seguir com invejável fluidez, como se fosse a terceira dose de um bourbon envelhecido.


Não há tempo a perder com frescura. O mistério tem início na primeira página, com o detetive particular de Nova York, Harry Angel sendo contratado por um novo e enigmático cliente chamado Louis Cyphre. O sujeito de modos finos e elegantes contrata Angel para seguir os passos de um crooner e pianista chamado Johnny Favorite. O ano é 1959 e Favorite, que foi um sucesso antes da Segunda Guerra agora está esquecido, supostamente por ter voltado do front como um vegetal após um sério ferimento sofrido. Parece uma moleza de trabalho, dinheiro fácil! Basta descobrir o que aconteceu com Favorite e porque ele não está mais no Asilo em que ele foi internado em 1950. O Horror começa quase que imediatamente depois de Angel aceitar o caso.  

Entre idas e vindas, o detetive consegue descobrir que Favorite ainda tem alguns conhecidos por aí, gente que trabalhou com ele ou que esteve ao seu lado enquanto ele buscava o estrelato. Gente que compartilha da mesma opinião, o cantor era um traste e um sujeito perigoso. Pior que isso, Favorite estava metido até o pescoço com vodu da pior qualidade e para conseguir o que desejava havia mergulhado em rituais de magia negra. O rastro parece ter esfriado, sobretudo porque ninguém tem muito interesse em falar a respeito do caso, mas Angel tem um talento fora do normal em revirar a sujeira e buscar no lodaçal pistas que o colocam no rumo certo.

O que se segue é uma trama intensa e be amarrada se passando inteiramente no submundo de uma Nova York escura e ameaçadora. Os personagens que Angel encontra pelo caminho parecem gravitar em um mundo repleto de crenças e superstições, vivendo em lugares sinistros que vão de parques de diversões e shows de mágica barata, empórios de ingredientes para rituais e bares de quinta categoria onde o jazz dá o tom. Há uma aura de estranheza no ar, com insinuações de satanismo em todo canto, e embora Harry seja um cético por natureza, mesmo ele começa a ficar incomodado pela profusão de estrelas de cinco pontas e o cheiro cada vez mais forte de enxofre no ar. Mais incomodo ainda é o rastro de corpos que vão ficando pelo caminho a medida que o caso progride e todas as testemunhas começam a ser eliminadas.


Lá pelas tantas, Harry começa a se perguntar a respeito das motivações de seu cliente e na sua real identidade. Louis Cyphere é daqueles personagens complexos, que Robert De Niro imortalizou com um brilhantismo impar. Bebendo da fonte do romance, ele assimilou as várias facetas de Cyphere e literalmente roubou o filme do início ao fim. No livro, o misterioso cliente parece nunca contar a história por inteiro. O que ele quer com Favorite e qual o seu interesse em toda essa sujeira? Ele acredita ou não no mundo oculto? E por que ele continua aparecendo sob diferentes nomes e identidades? 

Entre os vários personagens coadjuvantes, o de Epiphany Proudfoot, a jovem dona de uma loja de traquitanas arcanas e sacerdotisa vodu ligada ao passado de Johnny Favorite será responsável por conceder as pistas vitais para juntar as peças do quebra-cabeça. A personagem vivida no cinema por Lisa Bonet, uma escolha nada menos que perfeita, avisa desde o início que Harry não sabe onde está se metendo, e que talvez fosse melhor ele largar o caso. Mas, como sabemos, detetives noir são famosos por ir até o fim, custe o que custar. 

O final chocante, com direito a reviravoltas faz com que a gente fique sem palavras. Mesmo quem já viu o filme e conhece o final, vai gostar do final, a maneira como ele é conduzido faz todo sentido e ao contrário do filme, aqui existe tempo e espaço para a revelação ser mais gradual. Fico com uma pontinha de inveja de quem não viu o filme e vai se deleitar com o livro antes.


Isso nos leva a pergunta de um milhão de dólares: Vale a pena ler Coração Satânico depois de ter visto o filme?

A resposta, à queima roupa e sem frescura, como o próprio livro, é SIM.

Coração Satânico, o livro, guarda enorme semelhança com o filme. Boa parte dele segue a mesma premissa e quem assistiu o filme tantas vezes quanto eu, vai ser capaz de perceber que alguns diálogos foram mantidos sem mexer em uma única vírgula. O senso de familiaridade, no entanto não soa como repetição, está mais para um bem vindo deja vu. Ele não fica óbvio e corta sua diversão, ao invés disso recorre a sua memória e faz com que você deixe escapar um sorriso de cumplicidade à cada virada. Você sabe que vai acontecer, e fica esperando que aconteça. Quando muito o leitor pensa: "Ainda bem que não estou na pele do detetive".

Há algumas diferenças na trama, mas nada muito profundo. Talvez a maior diferença entre o livro e sua transposição para as telas seja que no filme existe uma boa porção se passando em Nova Orleans. Não era uma ideia ruim, já que o berço do misticismo americano está na Big Easy (o apelido da cidade que é a capital da Louisiana). É nessa cidade exótica, com gostos e sabores peculiares que o vodu se tornou a religião secreta dos moradores, não apenas dos negros e descendentes de escravos, mas de muitos ricos brancos e poderosos. No livro, a trama fica fixa em Nova York e quando muito Harry deixa a cidade para ir à vizinha New Jersey. Mas há espaço de sobra para exotismo e ambientes memoráveis, com algumas cenas extras que pontuam a investigação. Um dos trechos finais, em uma estação de metrô convertida em Templo Vodu, aliás, é de tirar o fôlego.

Existe também mais alguns percalços da investigação que não são cobertos no filme, a relação da astróloga Margareth Krusemark com Favorite, o envolvimento dos policiais que não dão trégua a Angel e a importância do misterioso sujeito que usa a identidade de Edgar Kelly que no livro se faz essencial. As descrições cruas de sexo e morte, com direito a mutilações e sangue são um dos pontos altos da narrativa de Hjortsberg que jamais é arrastada ou gratuita.


A edição da Darkside tem aquela qualidade irretocável que faz a gente repetir sem parar: "MEU DEUS QUE LIVRO LINDO"! O extremo cuidado e o carinho na produção faz com que folhear esse livro seja um prazer, o sonho molhado de qualquer bibliófilo. A capa dura com acabamento luxuoso, as páginas agradáveis ao toque, os pequenos detalhes das imagens pinçadas de manuais de anatomia com corações dissecados e símbolos arcanos, tudo é perfeito nos mínimos detalhes. A edição acompanha uma introdução e um posfácio assinado pelo autor, além de uma carta datilografada por Stephen King que rende os mais rasgados elogios à obra que ele chama de "única". A edição que eu recebi veio acompanhada de um afago daqueles, um bonequinho vodu de tecido vermelho com dois enormes alfinetes fincados. O livro também veio "amarrado" com uma linha grossa de tricô vermelho em um nó que parecia elaborado demais para ser obra do acaso.

Só para concluir, não vou poupar elogios. Se o Sr. King falou, quem sou eu para falar o contrário.

Coração Satânico é um romance de mistério detetivesco perfeito. Os muitos ingredientes contidos nesse caldeirão borbulhante se misturam de maneira que o caldo jamais desanda: há suspense, horror, drama, investigação, erotismo e ação com um tempero balanceado que mantém todos esses sub-gêneros em harmonia. Ele é entretenimento puro, mas com um toque de classe invejável, brilhante nos pequenos detalhes e grandioso no todo. Fico pensando se o autor tinha consciência de que estava lapidando uma pequena joia que não perderia o brilho trinta anos mais tarde. 

Leia o quanto antes você não vai se arrepender!

2 comentários:

  1. Literalmente um pacto com o tinhoso. Vou adquirir minha edição. Valeu.

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  2. Que demais, eu adoro esse filme! Quero esse livro tbm.

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