quarta-feira, 1 de novembro de 2017

RPG do Mês: Tales from the Loop - Os Anos 80 que nunca existiram


Os anos 80 estão na moda.

Não é de hoje que uma onda avassaladora de nostalgia varreu o mundo, fazendo com que aqueles que viveram os saudosos anos 80 queiram revisitar essa época mágica. O mais engraçado é que essa onda atingiu com força mesmo quem não viveu a chamada Década Perdida, mas que se sente, de alguma forma, intrigado pelo seu estilo e glamour. 

Ok, estilo é questionável, glamour, idem. Os anos 80 foram uma época, pensando em retrospecto... peculiar para quem era criança ou adolescente.

Quem viveu essa época curiosa deve ter uma série de lembranças guardadas com carinho: seja da música pop que se tornava uma tendência mundial, de modismos hoje absurdamente esquisitos, programas de televisão e filmes que marcaram época e incríveis novidades que pareciam surgir a cada semana com uma velocidade vertiginosa. Os anos 80 foram marcantes, sinalizando com um futuro que parecia se materializar diante de nossos olhos, prometendo modernidades que mal sabíamos, logo seriam superadas nas décadas seguintes. Entretanto, naquele momento, aquilo tudo era simplesmente incrível! Câmeras, video cassetes, computadores pessoais, telefones, transportes modernos, fax... A sensação era de ver o futuro acontecendo diante dos nossos olhos, testemunhar aquelas transformações em ritmo acelerado era incrível!


É claro, nem tudo foi lindo e maravilhoso... a época que nos deu Michael Jackson, Madonna, Atari 2600, De Volta para o Futuro e A Super Máquina, foi a mesma que acenou com problemas e crises profundas. Guerras Civis, fome na África, o consumismo desenfreado, Yuppies, drogas cada vez mais poderosas, a Epidemia da AIDS e é claro, o temor da Guerra Fria entre Americanos e Soviéticos que ameaçavam mergulhar o planeta no Apocalipse Nuclear. Quem cresceu nessa época sabe do que estou falando e sabe que não é exagero.

Parece um contraponto que uma década tão questionada, marcada por exageros e pieguismo, desperte um saudosismo tão gritante em quem a presenciou. Mas a verdade é que os anos 80 deixaram saudade e se tornaram objeto de culto de toda uma geração.

Tomemos, por exemplo, o revival de séries de televisão, transformadas em filmes e as refilmagens de sucessos da época. A reedição de músicas que foram hits estrondoso e que são gravados novamente por artistas contemporâneos que nem sequer tinham nascido. A redescoberta de estrelas esquecidas no mundo da música e da arte. As festas nostálgicas com direito a coreografias e músicas eletrônica sampleada. Os modelos retro de máquinas, aparelhos e eletrônicos. Tudo isso voltou com força, tudo com a distinta exceção dos ridículos cortes de cabelo e das medonhas roupas com ombreiras.


Uma das maiores provas do culto aos anos 80 possivelmente é o sucesso de programas de televisão como Stranger Things. Produzida e escrita por pessoas que cresceram nesse período, a série do Netflix oferece uma experiência de catarse para o espectador saudosista, na qual ele mergulha de cabeça nos sons, cores e filosofia oitentista.

Nesse contexto, parece perfeitamente natural prever que outras mídias seriam igualmente tomadas de assalto por essa moda. Quanto tempo, por exemplo, demoraria para surgir um RPG tendo os anos 80 como pano de fundo? Bem, não demorou muito... 

TALES FROM THE LOOP é um RPG sueco criado pela Free League e idealizado por Nils Himtze, os mesmos responsáveis por jogos que tem conquistado cada vez mais espaço no mercado internacional. Nos últimos anos, a Suécia se tornou referência para ambientações de RPG inovadoras e com ideias cheias de frescor e imaginação - vem de lá, para citar apenas outros exemplos Symbaroum, Coriolis e Mutant: Year Zero, além do controverso e clássico Kult. O interesse por jogos suecos tem atraído editoras norte-americanas que literalmente saem no tapa para conseguir os direitos sobre esses jogos. Loop por exemplo, foi comprado pela Modiphius Entertainment num estalar de dedos, tão logo foi ventilada a premissa do jogo. E pode apostar, foi uma aposta segura!


Tales from the Loop (que doravante será chamado apenas de Loop) à primeira vista pode parecer um Stranger Things RPG, já que bebe da mesma fonte da série da Netflix. Temos personagens centrais que são crianças pré-adolescentes, vivendo nos anos 80, investigando mistérios e se metendo em encrencas que remetem a filmes como Goonies, E.T. e obviamente o próprio Stranger Things. Mas vamos com calma que as coisas não são bem assim! 

Apesar de Loop guardar MUITAS semelhanças com a proposta original de Stranger Things, reside nas pequenas diferenças o maior charme dessa incrível ambientação. A primeira coisa que deve ser ressaltada é que o jogo não se passa nos anos 1980 com o qual estamos tão bem familiarizados. Na capa do livro podemos ler claramente "Roleplaying in the '80s that never was" (ou seja, "Roleplaying nos anos 80 que nunca existiram"). Isso significa que embora a essência do jogo esteja confortavelmente embasada na onda de nostalgia, ele oferece um outro enfoque.

Para explicar melhor do que se trata Tales from the Loop, teremos de falar de um incrivelmente talentoso artista gráfico sueco chamado Simon Stälenhag. Respeitado em seu país de origem pelo seu trabalho conceitual, Stälenhag ganhou fama com o lançamento de livros de arte retratando uma espécie de mundo fantástico no qual nostalgia e tecnologia se misturam, criando um panorama ao mesmo tempo familiar e surreal. Mais especificamente, os livros de Stälenhag oferecem uma visão de como poderia ser a década de 1980 se inovações tecnológicas como veículos antigravitacionais e robôs gigantes, tivessem sido introduzidas no período.


A fusão do mundano e do extraordinário rende imagens de tirar o fôlego e que ilustram esse artigo. O artista demonstra um talento impar para construir um mundo no qual vagões aéreos, complexos ultra-modernos e máquinas inteligentes interagem, na maioria das vezes, com crianças explorando seu funcionamento e seus mistérios. O primeiro livro de Simon Stälenhag, não por acaso, chama-se "Tales from the Loop" e oferecia um vislumbre desse mundo fantástico. Não demorou para que alguém visse no livro o incrível potencial para construir um RPG baseado nele. E foi assim que o jogo nasceu. Inteiramente inspirado por essa arte deslumbrante, Loop se propõe a ser um RPG de fantasia, com os pés bem fincados no mundo real, uma mistura inusitada e extremamente promissora. A frase "anos 80 que nunca existiram" é perfeita para definir o que o leitor encontrará nesse jogo.

Tales from the Loop me atraiu de tal maneira, quando li os primeiros comentários a respeito de sua versão americana, que fiquei doido para adquirir minha cópia. Infelizmente perdi o Financiamento Coletivo e acabei tendo de esperar para que ele fosse distribuído e depois chegasse às lojas. Foi uma longa espera, mas compensou... O livro tem um tema que me agrada muito, afinal, eu cresci nos anos 80 e estou incluído no grupo dos saudosistas que adoram lembrar dessa época - de fato, a trilha sonora que está tocando enquanto escrevo essa resenha é puro anos 80 (a título de curiosidade estou ouvindo "Jump" do Van Halen!). 

E caras, quando o livro chegou às minhas mãos foi amor à primeira vista. Literalmente! Não apenas por se tratar de um livro lindo, transbordando com as ilustrações coloridas de Stälenhag em cada página, mas pelo conteúdo simplesmente incrível. O livro é tão bem escrito e tem um linguajar tão gostoso de ler que você simplesmente o devora do início ao fim.


A versão americana editada pela Modiphius é praticamente idêntica a versão européia, com um importante adição: a inserção de um capítulo que permite situar as histórias do Loop nos Estados Unidos. Essa mudança é muito oportuna já que seria difícil conduzir aventuras se passando na Suécia dos anos 1980 sem fazer uma pesquisa prévia. De qualquer forma, o narrador tem as duas opções à sua disposição. Eu respirei aliviado quando soube que tiveram o cuidado de apresentar a cidade de Boulder, na divisa do Deserto de Nevada como opção viável para a original, a gélida ilha de Munsö no Mar do Norte.

Mas já que essa resenha está ficando grande, que tal falarmos a respeito da ambientação e mais especificamente do que trata Tales from the Loop?

Ok, vamos lá!


Tales from the Loop acompanha as aventuras e desventuras de crianças e pré-adolescentes com idade entre 10 e 15 anos que vivem em uma cidade onde coisas muito estranhas tendem a acontecer com alarmante frequência. Como já mencionamos várias vezes, a ação tem lugar em algum momento da década de 80, com o narrador podendo escolher qualquer ano que quiser. A fonte de todas as esquisitices parece ser um Mega-complexo Científico Tecnológico, fundado no início da década e que muda para sempre a maneira como os habitantes locais vêem a sua cidade. Essa instalação hospeda o maior e mais moderno Acelerador de Partículas do mundo, um engenho monstruoso e extremamente complexo apelidado de Loop. Ninguém sabe exatamente qual a extensão das pesquisas realizadas no interior do Loop, mas sabe-se que ele se dedica a todo tipo de projeto científico visando a criação de novas e revolucionárias tecnologias. 

Foi graças a lugares como o Loop que invenções incríveis ajudaram a redefinir o mundo e torná-lo diferente do que conhecemos. Nele temos coisas incríveis como naves capazes de flutuar usando o Campo Magnético do planeta (o Efeito Magnetrine), máquinas e robôs que realizam trabalhos nos campos da indústria e automação e servos mecânicos dotados de inteligência artificial imbuídos da capacidade de realizar trabalhos essenciais. O Loop por si só é um complexo que gera enorme quantidade de eletricidade e soluciona inúmeros problemas de abastecimento energético. 

Mas é claro, tudo isso tem um preço. Nem sempre as coisas funcionam como o esperado, e as vezes, algo pode fugir do controle. Existem muitos outros projetos secretos em pleno desenvolvimento dentro do Loop, muitos deles voltados para a indústria armamentista. Projetos que vão de teleportação a miniaturização, da criação de armas terríveis até viagem no tempo. E a consequência direta dessa busca incessante por avanço tecnológico é um perigo inerente para todos que vivem nos arredores da instalação. As cidades à sombra das Torres do Loop parecem um imã de acontecimentos bizarros e incidentes imprevisíveis, que vão de portais dimensionais se abrindo até contatos com alienígenas, de avistamento de dinossauros escapando de um laboratório, até a rebelião de máquinas inteligentes que odeiam a humanidade e querem sua destruição.


No melhor estilo filmes da Sessão da Tarde, a única linha de defesa capaz de conter essas graves ameaças é a interferência de crianças que acabam tomando conhecimento dessas coisas e precisam lidar com elas antes que seja tarde demais. E essa é a beleza de Tales from the Loop, o fato de que os jogadores assumem o papel de crianças e que sozinhos precisam confrontar e resolver as situações mais inesperadas. Isso tudo, sem a ajuda de adultos, contando apenas com a ajuda de seus amigos de colégio, vizinhos e irmãos. Se você já assistiu filmes como Viagem ao Mundo dos Sonhos, o Vôo do Navegador, Querida Encolhi as Crianças, E.T. ou D.A.R.Y.L sabe o tipo de aventura que o espera.

Em Tales from the Loop as crianças possuem conhecimento do mundo moderno que as cerca, muitas delas são capazes de trabalhar com desenvoltura em computadores ou operar máquinas complexas, mas o que vale mesmo é sua imaginação e criatividade. Uma criança pode não saber como desabilitar um robô militar, mas pode ser perfeitamente capaz de convencê-lo a não eliminar seres humanos ensinando a ele noções de humanidade. Da mesma maneira, uma criança pode usar seu conhecimento de video games para pilotar um vagão magnetrine. Essa falta de compromisso com a realidade formal ajuda a tornar o jogo ainda mais divertido e imprevisível.

Cada sessão de Tales from the Loop é chamada individualmente de Mistério. O objetivo é ficar sabendo da existência do Mistério, investigar sua origem, compreender o que o causou, definir uma maneira de resolvê-lo e finalmente lidar com as repercussões dele. Via de regra, as "coisas estranhas" acabam sendo resolvidas pelas crianças e os adultos nem ficam sabendo do envolvimento delas e que devem suas vidas a elas. Em Loop organizações governamentais estão sempre agindo nos bastidores para acobertar e negar os incidentes. Sempre há uma versão oficial capaz de desqualificar um rumor e transformar uma notícia bombástica em mera especulação sensacionalista. Quem gosta do tema conspirações terá um prato cheio aqui!


Outra sacada incrível do jogo é que as crianças, a despeito de estarem envolvidas com investigações e conspirações, continuam tendo ir ao colégio, interagir com seus pais e vizinhos e  fazer tudo aquilo que crianças normais precisam fazer. Isso permite que o narrador crie um vasto "elenco de apoio" composto de pais, parentes, amigos, vizinhos, professores, treinadores e colegas de classe. Entre uma aventura e outra, os jovens heróis tem de lidar com acontecimentos mundanos, mas ainda assim importantes, como a separação dos pais, um professor implicante, provas finais ou um bando de bullies que os atormenta pelos corredores da escola.

A ambientação define cinco Princípios vitais para o jogo. Essas são diretrizes que o narrador que pretende conduzir uma sessão através dos Mistérios de Tales from the Loop deve se ater. Os princípios definem que a cidade onde as crianças vivem é repleta de coisas estranhas e fantásticas, que o dia a dia é chato e implacável e que adultos estão fora do alcance portanto, é difícil contar com eles. Essas regras ajudam a direcionar a história evitando que adultos se envolvam e possam assumir o curso da investigação excluindo os verdadeiros protagonistas do jogo - as Crianças. Finalmente temos os princípios restantes que definem que os Mistérios envolvem perigos mas que as crianças raramente morrem, que a sessão avança cena por cena e que o mundo é descrito de maneira colaborativa entre o Mestre e os Jogadores.

Pode parecer bobagem, mas compreender esses princípios norteadores é essencial para que as aventuras no Loop façam sentido, do contrário, o jogo pode facilmente se desvirtuar para algo que foge a proposta original de ser uma aventura de crianças enfrentando o desconhecido. Outra ótima regra é delegar aos jogadores a função de descrever determinadas cenas, permitindo que eles contem o que está acontecendo na vida de seus personagens e possam assim ter um certo grau de interação com o mundo que os cerca. O Mistério sempre está nas mãos do Mestre, mas os jogadores são estimulados a contar um pouco da vida dos personagens entre as histórias e desenvolver seus problemas pessoais, desafios, derrotas e conquistas.


Bom, acho que já me estendi demais na resenha, então está na hora de quebrar ela na metade para que não fique muito longa. A segunda parte vai se concentrar no Crunchy do jogo, ou seja, vamos falar das regras do sistema, de como funcionam os rolamentos, como se dá a criação de personagens e como é uma típica sessão de Tales from the Loop.

Então fiquem atentos para a continuação.

Ah sim... por que não fazer uma propaganda?

Foi quem atentos pois estamos marcando uma sessão ao vivo via stream de Tales from the Loop para essa semana. Para quem ficou interessado, vale a pena clicar no link do evento.

 Tales from the Loop Transmissão ao Vivo

5 comentários:

  1. ...esse MERECIA um lançamento no Brasil nem que fosse por " sic " Financiamento Coletivo " ...

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  2. Sua escrita é sempre magnifica. Parabens. Lendo este trecho aqui "Parece um contraponto que uma década tão questionada, marcada por exageros e pieguismo, desperte um saudosismo tão gritante em quem a presenciou." penso que, nós tendemos a esquecer as coisas ruins do passado e lembramos das coisas boas. Só alguns traumas pessoais seguem vivos, mas questão mais globais, tendem a ser esquecidas, e o que resta é só nostalgia do que foi bom. Acontece a mesma coisa no amor.... o que sobram são os bons momentos vividos... abraços e espero participar de uma mesa dessa um dia.

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  3. Fiquei extremamente interessado no jogo quando lei sobre o financiamento coletivo e não lembro o pq de ter perdido. Desde então ainda não adquiri o livro, por isso achei a resenha excelente!!

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  4. Apesar de ter nascido em 1990 , tenho um grande carinho pela década de 1980 devido as produções culturais da época e as mudanças históricas ocorridas naquele período . É muito bom presenciar algo de tamanha qualidade originar-se desse sentimento nostálgico .

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