terça-feira, 23 de janeiro de 2018

H.P. em Salem - Um trecho escrito por Lovecraft a respeito de sua passagem pela cidade


Uma curiosidade que pode ser interessante uma vez que tem relação com o tema central desse blog e da atual série de artigos sobre a Caça às Bruxas da Nova Inglaterra.

H.P. Lovecraft esteve em duas oportunidades na cidade de Salem, mais especificamente em Danvers, nome que a comunidade onde a Caça às Bruxas teve local. A primeira vez foi em 1923 e ele escreveu uma narrativa empolgante sobre a experiência.

Sabemos com certeza que Lovecraft tinha um legítimo interesse na história da Nova Inglaterra e por assuntos ligados ao passado de sua terra natal. Esse interesse o motivou a conhecer a cidade onde os infames acontecimentos tiveram lugar. Salem e muitos locais nos arredores apareceriam posteriormente em seus trabalhos. Essas viagens às cidades do Condado de Essex se tornariam a base e inspiração para a criação de lugarejos fictícios em suas narrativas, entre os quais Arkham, Dunwich, Innsmouth e Kingsport que compõem aquilo que se convencionou chamar Lovecraftian Country.

O trecho abaixo, faz parte de uma carta enviada por Lovecraft a seu correspondente habitual Frank Belknap Long, e foi assinada com a data de primeiro de março de 1923.

Lovecraft acabara de retornar de sua visita a Salem e estava animado ao relatar ao amigo o que viu e o que captou durante sua breve passagem. O trecho mais interessante da narrativa é esse que segue, no qual Lovecraft (talvez brincando) assume o papel de um de seus próprios personagens visitando uma cabana ancestral isolada que pertenceu a uma mulher injustamente acusada de bruxaria, que veio a ser executada pelos seus alegados crimes.

Eu achei extremamente curioso ler a descrição de Lovecraft, em tudo compatível com seu estilo cheio de adjetivos rebuscados e descrições coloridas, no qual ele explora o local e se vê surpreendido pela esmagadora aura de "Fascínio Sobrenatural e maldade enterrada".

Me pergunto qual leitor fiel ou fã devoto de Lovecraft não calçou em algum momento os sapatos (ou seriam galochas) de investigador do desconhecido e imaginou uma exploração a um local proibido repleto de mistérios e perigos. Eu me permito, é claro, um mea culpa nesse quesito, visto que não foram poucas as vezes que surpreendi a mim mesmo explorando casas abandonadas ou sendas isoladas habitadas tão somente por sombras, vendo em cada canto um espectro sobrenatural. Não eram, a bem da verdade, lugares intocados por pés humanos ou catacumbas seculares, mas ainda assim, ao explorar tais lugares, era impossível não me imaginar como um investigador.

Reconfortante saber, que o Cavalheiro de Providence se permitia o mesmo exercício de criatividade.

Julgue por si mesmo:

"Eu cruzei estradas e atravessei campos em direção à fazenda solitária construída por Townsend Bishop em 1636, e em 1692 habitada pela viúva Rebekah Nurse, mulher digna e inofensiva, que tinha setenta anos de idade e não desejava a ninguém prejudicar. Acusada pela supersticiosa escrava das Índias Ocidentais, Tituba (que pertencia ao Reverendo Samuel Parris) e por algumas crianças histéricas, a "boa mulher" Nurse foi presa e julgada. Trinta e nove pessoas assinaram um documento atestando sua conduta irrepreensível, e um júri emitiu um veredicto de "inocente"; mas o clamor popular levou os juízes a reverter o veredicto (como era possível na época), e em 19 de julho de 1692, a pobre avó foi enforcada em Gallows Hill, Salem por um crime mitológico. Seus restos foram trazidos de Salem e enterrados no jazigo da família - um lugar sinistro sombreado por altos pinheiros à certa distância da casa. Em 1885, um monumento foi erguido em sua memória, com uma inscrição do poeta Whittier.

Quando me aproximei do local que me fora indicado, depois de passar pela aldeia de Tapleyville, o sol da tarde já estava se pondo. Logo as casas ficaram esparsas; de modo que à minha direita restavam apenas os campos montanhosos do restolho, e ocasionais árvores retorcidas arranhando o céu. Além de uma crista baixa, um grupo espesso de ramos espectrais indicava algum tipo de arvoredo ou pomar - e no meio deste grupo, de repente, avistei a silhueta crescente de uma chaminé maciça e antiga. No momento em que avançava, vi o topo de um telhado cinza inclinado - sinistro em seu distante cenário de encosta sombria e bosque sem folhas, inconfundivelmente pertencente ao edifício assombrado que eu procurava. Outro avanço - uma ascensão gradual - e encontrei a velha casa, sombreada por árvores, que durante quase trezentos anos erguia-se sobre essas mesmas colinas, retendo segredos que os homens só podem adivinhar. Como todas as antigas fazendas da região, a cabana que pertenceu a Rebeka Nurse enfrentava o calor e as chuvas de modo estoico. Frente a um antigo jardim, onde na estação propícia, as flores alegres se exibem contra a porta, repousava um relógio de sol vertical. Esse relógio de sol ficou escondido sob tábuas sobrepostas pelas gerações de inquilinos que ocuparam a casa, mas felizmente, quando ela foi restaurada à forma original pela sociedade histórica que é sua atual proprietária, o relógio reapareceu. Tudo sobre o lugar era antigo - mesmo as pequenas janelas que se abriam sobre as dobradiças. A atmosfera dos tempos de feitiçaria recaia pesadamente sobre aquela colina.

Minha batida trouxe à porta a esposa do zelador, uma pessoa idosa e pouco imaginativa, sem o menor senso de apreciação pelo glamour da cena antiga. A família vivia em uma cabana a oeste da estrutura principal - uma adição, provavelmente, cem anos menos antiga do que a original. Eu fui o primeiro visitante da temporada de 1923 e fiquei orgulhoso de assinar meu nome no topo do livro de registros. Entrando, encontrei-me em uma passagem baixa e escura, cujos feixes maciços do teto quase tocavam minha cabeça; e passando, atravessei os dois imensos cômodos do pavimento arredondado - aposentos sombrios, estéreis, com imensas lareiras ligadas à vasta chaminé central. Haviam peças ocasionais da típica mobília pesada que se encontra em fazendas primitivas como essa e utensílios domésticos usados pelos seus rústicos moradores.

Nesses quartos largos e baixos, pairava uma ameaça espectral - para a minha imaginação, o século XVII era tão cheio de mistérios macabros, repressão e tormentos, como o século XVIII era cheio de gosto, graça e beleza. Aquela era uma típica morada puritana; onde, em meio às necessidades desnudas da vida, nada restava de beleza ou cultura, liberdade ou ornamento, terríveis pessoas de rosto severo vestindo chapéus cônicos e casacas pretas moraram lá há 250 ou mais anos. Gente da terra com todos os seus sussurros hediondos; distorciam a natureza com sua mentalidade anormal, e tremiam de medo do Diabo nas noites de outono, quando o vento uivava através das árvores do pomar ou explodia com raios os horríveis pinheiros cujas raízes se alimentavam dos cadáveres no cemitério ao pé da colina. Há um fascínio sobrenatural - e um mal horrendo, enterrado - nestas fazendas arcaicas.


Depois de vê-los, e farejar o odor de séculos em suas paredes, uma pessoa naturalmente hesitaria em ler certos trechos da estranha e antiga Magnalia, escrita por Cotton Mather, sobretudo, depois do anoitecer. Após explorar o piso térreo, subi as retorcidas escadas negras e examinei as câmaras sombrias de cima. O mobiliário era tão feio quanto o de baixo, e incluía uma pequena cama baú, na qual bebês puritanos dormiam embalados entre orações sem sentido e sugestões mórbidas de diabretes que voavam ao sabor do vento soprado além das pequenas janelas. Eu vi a cadeira favorita da velha Rebekah, onde ela costumava sentar antes que os magistrados de Salem a arrastassem para a forca. E o vento do pôr do sol assobiou através da colossal chaminé, sacudindo horripilantes esqueletos ocultos no sótão, sobre minha cabeça. Embora não estivesse aberto a visitação pública, convenci o zelador a me deixar subir a esse horrível sótão de segredos seculares. A poeria grossa cobria tudo, e formas não naturais surgiam em meio a luz do crepúsculo que se insinuava através dos pequenos painéis que bloqueavam as antigas janelas. Eu vi algo pendurado na viga do teto - algo que balançava em uníssono com a brisa vespertina, embora essa brisa não tivesse acesso a esse lugar funerário esquecido - sombras ... sombras ... sombras ...


Então desci daquele maldito terraço e abandonei aquela portentosa morada da antiguidade; deixei-a rumo à colina, passando pelo cemitério sob os altos pinheiros, onde o crepúsculo iluminava lápides sinistras e fragmentos enferrujados da cerca de ferro caída, e onde alguma coisa agachada na sombra de um monumento me fez subir a colina apressado pelo temor da venerável casa, em direção a encosta oposta de Tapleyville.

H. P. Lovecraft para Frank Belknap Long e Alfred Galpin, Primeiro de Maio de 1923, Cartas Selecionadas 1.221-223


Lovecraft e sua imaginação fértil.

Para quem achou curioso, esse não é o primeiro relato dele nesse estilo. Leia esse artigo no o Cavalheiro de Providence se aventura, na companhia de um amigo em busca de um lugar ermo e estranho chamado "Pântano Escuro de Rhode Island".






4 comentários:

  1. Que postagem sensacional. Isso nos inspira a buscar referência no apelo a vivência. Quem nunca explorou uma área dita maldita quando criança, talvez trazer a tona aqueles sentimentos seja fundamental em uma narrativa, seja na forma da escrita de contos e livros ou em um jogo de RPG.

    ResponderExcluir
  2. Como faço para seguir o Blog, sempre que tiver uma nova postagem? Vocês tem grupo no faceburk ?

    ResponderExcluir