quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Pequenas Maldições - Anatomia das pavorosas Coisas Rato

"Os ossos das diminutas patas, diz-se por aí, apontam uma característica preênsil mais típica de um macaco do que de um rato; enquanto que o pequeno crânio com suas presas selvagens amarelas é de uma anomalia extrema, parecendo de certos ângulos uma diminuta e monstruosamente desagradada paródia de um crânio humano".

Os Sonhos na Casa da Bruxa - H.P. Lovecraft


Como categorizar uma maldição?

Como dizer qual maldição é mais terrível quando todas elas se referem incidentalmente a produzir o malefício? Se todas as maldições são tenebrosas, talvez seja na intensidade das mesmas que reside o grande diferencial, aquilo que torna algumas delas meros contratempos, e outras verdadeiros suplícios. No universo aterrorizante do Mythos, não faltam maldições que expõem com crueza as entranhas da própria maldade. E dentre todas as magias blasfemas e rituais cruéis, poucas estão no  mesmo patamar da pérfida "Maldição da Coisa Rato".

Esse feitiço conhecido apenas por bruxos de grande poder e domínio sobre as artes negras é considerado lendário. Reservado somente para aqueles que desagradam ao realizador de tal forma que a morte, a loucura e o esquecimento não são suficientes para se extrair a vingança, sendo necessária uma combinação tétrica de tudo isso, e ainda mais.

Acredita-se que apenas alguns poucos tomos mágicos tragam a fórmula correta para que esse malefício. O Necronomicom certamente contém a versão mais fiel e mais completa da maldição. Abdul Al-Hazred teria chegado a ponderar a respeito de censurar esse trecho de sua obra, tamanha a abominação envolvida na realização de tal experimento. E quando se pensa no que está presente nas páginas do célebre livro, isso não é pouca coisa. Ludwig Prinn escriba do Vermis Mysteriis conhecia essa magia e reputava a ela um lugar de destaque entre as maldições mais aterrorizantes do Mythos. Em um trecho de seu livro, Prinn menciona um caso em que um feiticeiro da Bavária teria realizado o malefício criando a partir de sua própria esposa uma das medonhas Coisas Rato. Coube a Prinn também traçar um paralelo entre o feitiço e a famosa lenda dos Animais Familiares, seres místicos que fazem as vezes de companheiros fieis de bruxos ao longo da história. É possível que muitas das histórias sobre animais extraordinários servindo a feiticeiros, estejam relacionadas de alguma forma a Maldição da Coisa Rato que não obstante ser bastante rara, é compartilhada em círculos de magia negra.

Conhecida na Europa, ela foi praticada por necromantes venezianos e genoveses com o nome de Maledizione del Roditore, na França era chamada Traitament due-a-quatre e na Alemanha medieval de Rattengesicht. A Maldição viajou para outros cantos do planeta quando a Inquisição apertou o cerco aos feiticeiros no Velho Mundo. Ela chegou na América do Norte com o nome Maldição da Coisa Rato, ainda no Período Colonial e com esse título sinistro ganhou fama entre as cabalas de feitiçaria. Era a punição mais extremada, reservada para os traidores e desertores. De fato, é provável que venha da América do Norte o caso mais célebre da maldição, que envolve a notória feiticeira de Arkham, Massachusetts; Keziah Mason.


Mason uma eremita que viveu no auge da Caça às Bruxas tornou-se pivô de uma série de rumores sobre feitiçaria em meados de 1696. Conforme a lenda, em determinado momento, ela teria hospedado em sua casa um sujeito que atendia pelo nome ou alcunha de Brown Jenkin, um criminoso menor, homem rude, dado a surtos de violência de quem as pessoas desgostavam. Em quais circunstâncias, se deu a coabitação não se sabe, e o tema, à época, foi matéria de grande especulação pela gente do vilarejo. É fato incontestável, contudo, que o homem desapareceu pouco depois de uma altercação, supostamente deflagrada por um furto realizado por ele e que deixou a velha furiosa. Pouco depois de seu desaparecimento, Keziah Mason passou a ser vista aninhando em seu colo uma criatura de pelo castanho esganiçado que se escondia nas dobras de seu manto puído. A coisa foi vista repetidas vezes, mas sempre de soslaio. Para alguns parecia ser um gato, mas outros lhe atribuíam características de roedor, ainda que, mesmo uma ratazana daquele porte, parecia improvável. É curioso que a face do animal jamais tenha sido descrita com clareza, à distância, as poucas testemunhas atribuíram ao animal de estimação características perturbadoramente humanas. E alguns foram mais longe, chegando a mencionar que não apenas a coloração da pelagem castanha do bicho era similar a dos cabelos de Brown Jenkin (Brown no sentido de Marrom/Castanho), mas que sua face se assemelhava a uma caricatura do criminoso de quem não se tinha notícias fazia tempo.

O súbito desaparecimento de Brown Jenkin e o surgimento dessa coisinha abominável que Keziah costumava carregar em seu colo, é claro, estão intimamente relacionados, uma vez que os dois são o mesmo. A medonha transição de Brown Jenkin de sua condição humana para a de um diminuto horror, se deu por intermédio da Maldição da Coisa Rato.

Para compreender o grau de maldade associado a esse feitiço, é preciso tomar ciência de todos os detalhes. A vítima da maldição primeiro, precisa ser assassinada pelo realizador, sendo que o corpo deve permanecer intacto. Métodos indicados para esse fim são o envenenamento, asfixia ou afogamento, conforme sugeridos no próprio feitiço. Uma vez tendo eliminado o desafeto, o feiticeiro precede em uma série de preparativos que incluem lavar o corpo com essências e óleos especiais, colocar na boca do morto uma ninhada de ratos recém nascidos e costurar os lábios com uma linha feita do rabo de roedores adultos e finalmente esfolar um pedaço da pele da vítima, grande o bastante para nela redigir um tipo de contrato místico. Com esses preparativos concluídos, o realizador invoca vários nomes do Mythos, sendo Nyarlathotep - na maioria das vezes, sob o disfarce do Homem Negro, o principal. Embora não seja requisito imprescindível, a presença do Homem Negro nessa fase do Ritual é garantia de êxito.


Se o ritual tiver sido consumado à contento, o corpo da vítima dali em diante irá apodrecer rapidamente, se desintegrando a medida que sua carne fornece a substância para a formação da Coisa Rato. O corpo do roedor começa a se formar como um apêndice tumoroso em alguma parte do cadáver - sendo nas costas, na barriga e na nuca os locais mais frequentes. Ele toma forma ao longo de uma semana ou mais. Quando o corpo amadurece, o feiticeiro conclui o ritual soprando na boca da Coisa Rato e depois alimentando-a com uma gota de seu sangue. Quando a criatura recebe esse sacrifício de energia vital ela imediatamente desperta e começa a roer com suas presas o liame de pele e carne que a funde ao seu antigo ser. Irrompendo seu caminho para a liberdade, ele logo se vê compelido a servidão do mestre e senhor que a criou, sujeitando-se à sua vontade para todo sempre.

A Coisa Rato é inteiramente leal à pessoa que a criou. O Ritual o compele à sujeição. Ademais, para continuar existindo, o feiticeiro precisa de tempos em tempos alimentá-la com algumas gotas de seu próprio sangue que é sorvido avidamente pelo diabrete. Uma Coisa Rato devidamente alimentada pode viver indefinidamente e ser um valioso assecla para um feiticeiro, agindo na qualidade de espião, mensageiro e até protetor.

Aqueles que subestimam a Coisa Rato em face de seu tamanho incidem em um grave erro que pode se provar letal. Embora pequenas, essas criaturas amaldiçoadas podem ser bastante perigosas uma vez que são inteligentes e tenazes em seus instintos. Quando motivadas ou compelidas a cumprir alguma ordem dada pelos seus amos, eles vão até as últimas consequências dispostos a morrer se necessário. Uma coisa rato pode ser ordenada a matar um alvo, e se assim for, ela irá se insinuar por pequenas frestas, buracos e caminhos que apenas um pequeno animal conseguiria cruzar. Incidentalmente, eles são perfeitamente capazes de manipular objetos pequenos, destrancar portas e sufocar com suas pequenas patas. Não é difícil imaginar tais criaturas carregando veneno e cuidadosamente depositando-o em suprimentos de água ou alimentos. Capazes de compreender as ordens de seu mestre, uma coisa rato pode se comunicar verbalmente retendo os idiomas que conhecia em vida. Sua voz tem um timbre estridente e afetado.


As presas resistentes e afiadas dessas pequenas abominações ganharam notoriedade. Seus dentes frontais são incrivelmente fortes podendo partir até madeira sólida e argamassa. Em alvos humanos, seu alvo prioritário sempre será uma garganta exposta. Acessando a área, o ataque é rápido: as mordidas dilaceram a carótida de tal maneira que estancar o sangramento é quase impossível. Sua estratégia mais comum envolve atacar suas vítimas enquanto adormecidas ou então se pendurar no teto esperando que o alvo passe por baixo afim de cair sobre ele. Coisas Rato sabem de suas limitações, e se não estiverem em uma situação vantajosa, simplesmente irão escapar para atacar mais tarde.

Chamados por Al-Hazred de "Escarneadores Malévolos", as Coisa Rato atingem um tamanho máximo de 45 centímetros de comprimento do focinho até a ponta do rabo. Pesando pouco mais de 8 quilos. Seu corpo é delgado e ágil, com pernas poderosas que lhes concedem velocidade para correr e sustentação quando se faz necessário erguer-se na porção traseira. São excelentes escaladores e nadam razoavelmente bem, além disso, quando desejam agir de modo furtivo, é extremamente difícil encontrá-los.

Uma coisa rato à distância pode ser confundida com uma ratazana ou gato. Seus pelos variam entre o preto, castanho e cinza, sendo que a matiz depende da cor de cabelos do indivíduo amaldiçoado. As patas frontais da criatura se parecem com diminutas mãos, com dedos bem definidos, capazes de executar delicadas funções motoras. O que chama mais atenção nessa espécie mágica, contudo, é o rosto maligno que se assemelha a uma caricatura da pessoa de quem ele brotou. A face é transfigurada por uma expressão perpétua de escárnio, raiva e loucura, sentimentos que passam a mover suas ações e definir sua razão de ser. Deparar-se com uma coisa rato e perceber suas feições humanas constitui uma experiência perturbadora da qual não raras as vezes, advém choque e extrema repulsa.


Não é totalmente desconhecido que Coisas Rato sejam capazes de lançar mão de feitiços. Há rumores de feiticeiros que decididos a se perpetuar pela eternidade, deixaram ordens para serem transformados nessas criaturas abomináveis por servos fieis. Nessa forma hedionda, tais feiticeiros conquistaram um tipo de imortalidade, já que sendo mágicos, eles não estão sujeitos às vicissitudes dos anos. É comentado que pelo menos um cabal de Coisas Rato, estabelecido na cidade francesa de Marselha comandou por décadas o submundo sobrenatural daquela cidade no conturbado Período Revolucionário. Há boatos que tais criaturas conseguiram estabelecer inclusive um controle, ainda que limitado sobre os roedores comuns, criando assim seu próprio exército.

Em se tratando das Coisas Rato, as palavras do ocultista de flandres Ludwig Prinn parecem carregadas de dramático significado, demonstrando o quanto tais seres podem ser aterrorizantes:

"É sabido que a Coisa Rato é o resultado de uma maldição atroz. Ter ciência da existência de tais seres faz os homens mais ponderados temerem pelo poder nefasto da magia negra. Pois se ela é capaz de perverter a essência do homem e transmutá-la em algo puramente malévolo, não há limites para o que mais ela seria capaz de realizar. Por força de magia, aquilo que um dia foi um homem, passa a ser a própria encarnação do terror. E fazem bem em temer por suas vidas aqueles que se tornam objeto da busca de tais serviçais. A Coisa Rato poderá roer através de seu peito e devorar seu coração antes de você implorar por ajuda".

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