segunda-feira, 30 de abril de 2018

O Alienista - A caçada a um assassino no final do século XIX


Eu li o livro mais famoso de Caleb Carr, "O Alienista" faz muitos anos. 

Lembro que ele foi lançado quando o tema "serial killer" ainda era uma novidade e "O Silêncio dos Inocentes" era o principal romance de ficção a respeito. Hoje existem centenas de livros, programas de televisão, filmes, documentários, quadrinhos, seriados sobre o assunto. Serial Killer se transformou em um assunto corriqueiro. Até então, não havia tanto alarde e o tema ainda era uma curiosidade um tanto espinhosa.

O romance de Carr se destacava por misturar o tema "caça ao assassino" com uma rica pesquisa de época e por ter como pano de fundo um período de profundas transformações na sociedade americana. Eu gostei muito do livro e ele se tornou um dos meus romances favoritos de mistério policial e investigação procedimental.

Quando "The Alienist" se tornou um bestseller em meados de 1994, os direitos para transformá-lo em filme foram comprados por um grande estúdio de Hollywood. A ideia é que ele recebesse um roteiro o quanto antes e que tivesse uma produção bem caprichada. Uma lista de bons diretores esteve envolvidas na produção, assim como um elenco classe A. Mas as coisas nem sempre saem como se espera. A dificuldade de condensar o romance em um filme de duas horas consumiu mais de uma década sem resultados e por fim, "O Alienista" nunca foi além de um projeto. O tempo passou, o autor ficou um tanto desanimado com essas indas e vindas e tudo indicava que ele jamais se tornaria um filme.


Finalmente depois de muitas negociações, alguém em Hollywood chegou a conclusão de que o livro de Carr poderia ser transformado em uma série e dessa maneira toda sua profundidade e detalhes poderiam ser mantidos, sem a necessidade de retalhar e modificar a história. Uma vez que os roteiros para televisão estão dando um verdadeiro show de qualidade, com programas cada vez mais elaborados, o novo formato caiu como uma luva. O Alienista, foi ao ar nos EUA pelo canal TNT em janeiro desse ano e fez bastante sucesso de crítica e público. Agora ele chega ao Brasil através do Netflix e já está disponível na grade de programação no formato de uma série fechada com 10 episódios. 

O Alienista não é uma série que redefine o gênero introduzindo muitas novidades, mas é um excelente programa a respeito da caçada a um maníaco no final do século XIX. Não é exagero nenhum fazer uma ousada comparação e afirmar que ele é uma espécie de True Detective de época. De fato, muito do clima soturno de "O Alienista" remete a True Detective, sobretudo por que um dos produtores executivos é Cary Fukunaga, criador da série da HBO. Há também algo de Mindhunter e de Ripper Street na série, o que resulta em um emaranhado suspense psicológico e uma viagem aos porões escuros da mente de um psicopata.

Passando-se na metrópole em franco crescimento de Nova York, no ano de 1896, o Alienista começa com uma macabra descoberta, o cadáver horrivelmente mutilado de um menino vestido com roupas de mulher. A vítima trabalha em um medonho bordel frequentado por uma rica clientela com apetites extravagantes. Ninguém normalmente daria a mínima para a morte de um imigrante pobre, a polícia preferia fazer vista grossa, entretanto a natureza grotesca do crime acaba atraindo um especialista na recém surgida ciência comportamental. O Dr. Lazlo Kreizler, é um pioneiro no estudo daqueles indivíduos considerados "alienados pela natureza", pessoas que agem e se comportam de maneira imprevisível - ele é o "Alienista" do título.


A descoberta desse primeiro corpo faz com que Lazlo tome conhecimento de que o jovem é apenas uma das várias vítimas que um assassino sem rosto está deixando. E esse matador parece agir com um propósito misterioso que a princípio só faz sentido em sua mente degenerada. O alienista reúne então uma equipe com o propósito de investigar os crimes e determinar não apenas a identidade do criminoso, mas os motivos que o levam a agir com tamanha brutalidade. Sob a autoridade do então Comissário de Polícia, Theodore Roosevelt - que anos mais tarde se tornaria presidente dos Estados Unidos, o time de Lazlo inclui o ilustrador do New York Times John Moore, a secretária feminista Sara Howard, dois irmãos policiais entusiastas de métodos científicos e alguns ex-pacientes de Kreizler que se tornam seus ajudantes.

Mergulhando no submundo obscuro de Lower Manhathan, região repleta de sujeira, decadência e pobreza extrema, a equipe de Kreizler, composta de indivíduos da classe média alta fica chocada com a maneira como a maioria da população de New York vive. Saindo de ambientes suntuosos e requintados com restaurantes e mansões vitorianas, a investigação vai revelando, a medida que se aprofunda, uma teia sinistra e sórdida, expondo que o crescimento desenfreado da cidade teve um custo muito elevado. Em uma época de profundas transformações sociais, a América, Terra das Oportunidades e destino final de imigrantes, mostra uma face hedionda de descaso, crueldade e desesperança.

O horror dos cortiços claustrofóbicos habitados por famílias inteiras faz o contraponto com os ataques do maníaco que vão se tornando cada vez mais violentos. A caçada resulta em várias investigações paralelas que começam a incomodar pilares da alta sociedade, policiais com acordos escusos e políticos corruptos.


Através dos primeiros episódios somos apresentados ao trio de protagonistas Kreizler, Moore e Howard, interpretados respectivamente por Daniel Bruhn (de "Bastardos Inglórios"),  Luke Evans (de "O Hobbit - A Batalha dos Cinco Exércitos") e Dakota Fanning (que faz filmes desde os oito anos de idade e tem uma carreira que nem caberia nessa resenha). Os personagens principais são muito bem desenvolvidos, o espectador passa a conhecer vários detalhes da personalidade e de suas motivações, bem como defeitos e virtudes que os tornam muito mais interessantes. Enquanto o Dr. Kreizler é mais intelectual e frio, Moore é mais emocional e reage às revelações do caso com perplexidade. Já a atuação de Dakota Fanning mostra que ela deixou para trás os papéis de meninas e adolescentes e abraçou de vez o pepel de uma mulher forte e decidida em um conturbado momento histórico.  

Tendo lido o livro, eu sei que os demais personagens coadjuvantes da série, deviam ter um papel mais determinante no romance. Roosevelt  (Brian Geraghty), por exemplo, fica meio apagado no decorrer dos episódios e sua participação que no livro é central, acaba caindo para segundo plano. O mesmo acontece com os irmãos gêmeos da polícia (Douglas Smith e Matthew Shear) que pelo menos recebem um pouco mais de atenção, como pioneiros a usar investigação científica. 

O elenco que conta ainda com alguns rostos conhecidos - entre os quais Ted Levine e Sean Young em participações especiais, é bastante sólido. Os primeiros episódios cumprem o seu papel de vender a série e atrair a audiência. Não se surpreenda se depois de assistir o primeiro e segundo episódios você se ver fisgado e engrenar uma maratona ininterrupta. Se bem me lembro o livro é um daqueles que você devora e vira as páginas avidamente querendo saber como a trama termina.


Assim como acontece no romance, "O Alienista" se passa em uma época anterior ao surgimento da Ciência Forense, da compreensão do papel das doenças mentais como catalizador para crimes em série e de técnicas rudimentares de investigação. A equipe de Kreizler, e o próprio alienista parecem investigar o caso com uma venda sobre os olhos que os impede de compreender as razões para que crimes tão medonhos estejam sendo praticados. Eles realmente não sabem com o que estão lidando e isso deixa tudo ainda mais aterrorizante. Esse acaba sendo um dos elementos mais fascinantes a respeito da série, ver como as pistas afetam os investigadores e como eles precisam driblar preconceitos, superstições e a falta de recursos para se manter focados na caçada.

"O Alienista" é uma série a respeito dos horrores da mente humana e da perversidade do ser humano. O assassino responsável por deixar uma pilha de cadáveres mutilados, cujos olhos são arrancados é realmente assustador em seus delírios, mas ele está longe de ser o único personagem capaz de enorme maldade. A própria cidade de Nova York, dividida por um abismo social, favorece o surgimento de indivíduos perversos dispostos aos atos mais baixos para manter as coisas como estão.


Com uma produção extremamente caprichada, a cidade de Nova York surge de uma maneira impressionante, quase como um personagem em todo seu esplendor. Os vários cenários são muito bem explorados permitindo que se conheça o interior iluminado das mansões da elite novaiorquina, os teatros requintados e restaurantes sofisticados, bem como os casebres podres, prostíbulos degenerados e os porões de manicômios que eram verdadeiros depósitos de loucos. Recorrendo a um realismo sujo, a série não poupa o espectador da degradação, miséria humana e de doses generosas de gore (sangue, vísceras e autópsias detalhadas estão presentes em praticamente todos episódio). Há algo de Penny Dreadful e From Hell no estilo sombrio da filmagem e quem gostou dessas produções vai adorar a série.

Na superfície, "O Alienista" parece apenas mais uma série de procedimento policial com um bom e velho "quem cometeu o crime?", e um grupo intrépido determinado a pegar o culpado. Nesse ponto ele cumpre e até excede as expectativas, uma vez que a investigação é empolgante e nos deixa atentos do início ao fim. Entretanto, a série vai muito além disso, retratando os questionamentos a respeito de um período cheio de injustiças. Para quem deseja substância e provocação, essa série é quase obrigatória.

Trailer:

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Pactos Sinistros - Lendas sobre acordos diabólicos e barganhas sombrias ao longo da história


Um elemento muito presente em várias histórias e lendas ao redor do mundo envolve o conceito do infame pacto com o Demônio, ou alguma outra entidade similar extremamente poderosa e influente. O acordo em geral gira em torno de uma troca de favores: um lado recebe fama, riqueza, poder, juventude, vigor ou habilidades excepcionais e em contra partida o outro abdica da sua alma imortal. Um acordo que na maioria das vezes se mostra injusto e pouco vantajoso.

Ainda que a ideia da existência de forças diabólicas e pactos com elas seja material para mitos, ficção, lendas e folclore, não faltam relatos a respeito de barganhas consideradas reais que despertam curiosidade e fascínio há séculos. Essas são fábulas estranhas a respeito de indivíduos que negociaram com as trevas em busca de benefícios e que pensaram poder levar vantagem sobre o maior dos trapaceiros.

Uma das modalidades de pacto mais frequentes ao longo da história, sem dúvida, diz respeito a atingir grande habilidade e aperfeiçoamento em uma arte, ofício ou profissão. Particularmente popular entre os músicos, eles parecem ser os que mais vezes incidem nesse tipo de barganha. 

Não é necessário mencionar o brilhante violinista Giuseppe Tartini que teve sua barganha com o diabo descrita na postagem anterior, contudo o compositor italiano está longe de ter sido o único envolvido em rumores dessa natureza. Por sinal, violinistas são de longe os mais interessados. Muitos anos depois de Tartini, outro violinista clássico criaria ao seu redor notoriedade como alguém que firmou um pacto diabólico em troca do virtuosismo. Estamos falando do italiano Niccòlo Paganini.


É interessante notar que Paganini fez pouco para afastar os rumores a respeito da origem de seu brilhantismo. De fato, ele incentivava os boatos e até os encorajava, por vezes admitindo ter negociado com o demônio que lhe concedeu genialidade invejável em troca da sua alma. As histórias a respeito desse acordo tornaram Paganini extremamente popular e famoso, sem mencionar temido. A fama de Paganini estava no auge quando ele morreu subitamente em 1840. Na ocasião, a igreja se recusou a aceitar seus restos mortais e administrar os rituais fúnebres necessários para um enterro decente. Quatro anos mais tarde, o Papa finalmente permitiu que os restos de Paganini fossem sepultados em Genova, sua cidade natal, mas em um terreno ao lado do cemitério. O corpo nesse tempo todo ficou armazenado em um porão, enrolado em tecidos aguardando um lugar que o recebesse.  Demorou mais 36 anos para que os ossos do genial musicista fosse aceito no jazigo da  família, onde se encontra, até hoje.

Juntando-se a lista dos compositores clássicos que afirmavam ter barganhado com as trevas, está outro musicista de sucesso, o francês Phillipe Musard (1792-1859). Ele foi um músico incrivelmente bem sucedido que se apresentava em concertos em teatros como atração principal. É possível que Musard tenha sido a primeira verdadeira celebridade do mundo da música, no sentido de atrair fãs, fofocas e publicidade ao seu redor. Diferente de seus contemporâneos, Musard se apresentava em concertos acessíveis para o grande público e adorava os afagos de seus admiradores. Há relatos de que pessoas viajavam grandes distâncias para assistir seus espetáculos e que ele era igualmente popular entre a plebe e a nobreza européia. As histórias que giravam ao seu redor também impulsionavam sua fama como um dos músicos mais adorados de seu período.

Os teatros em que ele se apresentava eram espalhafatosos e chamativos. Musard exigia que o palco fosse ornamentado com móveis, flores, espelhos, velas e até mesmo estátuas que ajudavam a compor elementos cênicos até então jamais vistos em uma apresentação musical individual. Em apresentações em Paris ele chegou a exigir que o palco fosse lavado com água de rosas e perfume que serviria em suas palavras para compor a experiência de sua performance.


O estilo de Musarde se diferenciava do clássico convencional o que agradava a audiência. Por vezes ele incluía dançarinos e instrumentos incomuns para pontuar suas composições. Isso levava seus espetáculos a serem disputados por uma platéia excitada e selvagem, em nada parecida com o público que frequentava esse tipo de apresentação. Além disso, Musarde tinha uma presença de palco notável valendo-se de movimentos bruscos, corridas e gestos arrojados, enquanto os demais artistas permaneciam estáticos ou mesmo sentados. 

Essencialmente Musarde era uma espécie de estrela do rock em pleno mundo da música clássica. E seu público o adorava cada vez mais! Ele se tornou um fenômeno de popularidade especialmente em Paris, onde era fácil encontrar pães e chocolates moldados com o seu rosto. Em face da sua excentricidade e desrespeito com a etiqueta da música clássica, ele começou a ganhar fama como alguém favorecido pelo demônio. Esse boato se tornou mais forte quando músicos modernos adotaram o estilo de Musard e passaram a se inspirar no seu carisma. O próprio músico se deliciava com essas histórias e se não as incentivava diretamente, não fazia nada para censurará-las. Musard foi um artista incomum para a época em que viveu e deixou uma marca duradoura na história da música clássica.

Um dos casos mais conhecidos de músico que alegadamente firmou um acordo com o diabo foi a lenda do Blues Robert Johnson (1911-1938). Ocupando o posto de número cinco na lista dos maiores guitarristas de todos os tempos da Revista Rolling Stones, Johnson foi o responsável direto pela popularização do blues no início do século XX, um gênero que mais tarde inspiraria o próprio rock and roll. Guitarristas como Eric Clapton, Keith Richards, Chuck Berry e muitos outros, afirmam que a curta carreira de Johnson serviu como inspiração direta para que eles também se tornassem guitarristas. Johnson foi largamente copiado e admirado e se tornou uma espécie de deus dentro do gênero. É claro, ele também é extremamente famoso pelo rumor de ter vendido sua alma a Satã.


Segundo a lenda, Johnson era um excelente guitarrista, mas só quando completou 18 anos de idade, se tornou realmente conhecido e admirado. Quando atingiu a maioridade ele literalmente explodiu para o estrelato, saindo do nada e conseguindo uma fama com a qual jamais havia sonhado. Seu surgimento como uma estrela em ascensão no mundo da música foi surpreendente e imediato. Sua popularidade entre negros e brancos para alguns tinha algo de sobrenatural e na mesma época ele começou a ser acusado de ter realizado um acordo com o demônio.

Johnson não apenas encorajava essas histórias a seu respeito, mas descrevia como havia feito a barganha. De acordo com ele próprio, na noite em que completou 18 anos, decidiu negociar sua alma em troca de fama, riqueza e o estrelato. Johnson relatou que buscou uma encruzilhada à meia noite e gritou alto para os quatro lados que desejava barganhar sua alma. O diabo apareceu em pessoa e ofereceu os seus termos, que o músico aceitou de imediato. Logo ele descobriu que seu estilo havia se aprimorado e começou a tirar vantagem disso em busca do sucesso.

Alusões ao seu pacto com as trevas estão presentes em várias das suas composições incluindo sucessos como Crossroads Blues (Blues da Encruzilhada) e Me and Devil Blues (Eu e o Diabo do Blues). Para aumentar ainda mais os rumores, Johnson morreu no auge da sua carreira em circunstâncias misteriosas no ano de 1938 aos 27 anos, uma idade que no mundo do show business carrega uma espécie de maldição. Vários nomes famosos faleceram ao chegar aos 27 anos; Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Kurt Cobain, apenas para citar alguns. As causas exatas da morte de Johnson permanecem enevoadas, alguns acreditam que ele cometeu suicídio, outros que ele foi assassinado pelo marido ciumento de uma mulher com quem ele estava tendo um caso e outros que ele teria contraído uma doença. Sua morte foi tão repentina e esquisita que não se sabe exatamente se o seu corpo realmente repousa na sepultura que lhe foi arranjada às pressas. Alguns dizem que ele forjou a própria morte, sobretudo porque poucos viram o seu cadáver. Para outros, ele ainda estaria vivo.


Em algumas dessas histórias, o músico no final confronta o demônio e consegue escapar com a sua alma intacta. Em uma história curiosa, uma mulher chamada Raquel Robinson, nascida no Colorado, contou uma assustadora narrativa envolvendo seu tio que era um músico do Novo México. Ele estava a caminho de um clube noturno para uma apresentação quando parou em um posto de gasolina para verificar um ruído estranho no carro. Um atendente explicou que havia um problema no motor e que o carro deveria ficar no posto para reparos. Quando o tio explicou que precisava chegar ao clube um estranho que estava por acaso no posto entrou na conversa e ofereceu carona. Nesse ponto as coisas começam a ficar estranhas.

Uma vez no carro com o estranho, o sujeito começou a contar que costumava andar sempre por ali e que estava de olho em novos talentos. De repente, sem dar nenhum aviso perguntou se haveria alguma coisa que ele gostaria de mudar em seu estilo para ter sucesso. Depois de um momento de silêncio o tio disse que não. O homem misterioso não disse mais nada, apenas colocou uma música no som do carro. A melodia era curiosa e o tio jamais tinha escutado, mas pareceu estranhamente boa. O tio perguntou que música era aquela e ele simplesmente respondeu: "Eu conheço muitas músicas de sucesso". O estranho completou dizendo que aquela música poderia deixá-lo milionário e que se ele quisesse poderia oferecer a letra. O tio respondeu que não tinha dinheiro para pagar, e o estranho sorriu afirmando que "haviam outras maneiras de pagamento".

Eventualmente os dois chegaram até o clube noturno e o estranho resolveu estacionar e ficar para assistir ao show. Em meio ao show, o tio tocou muito bem e recebeu muitos aplausos, de fato, foi a melhor apresentação da sua vida inteira. Quando a banda resolveu fazer uma pausa para descansar entre as músicas o estranho apareceu de repente nos bastidores e disse "se você quiser, todas as noites podem ser assim. E você pode ganhar muito dinheiro e fama. Basta querer...".

Nesse momento, o tio sentiu um arrepio na espinha entendeu o que estava acontecendo. O estranho não era uma pessoa comum e sim o diabo oferecendo uma barganha. Ele sentiu uma súbita vertigem, mas conseguiu se afastar. Mais tarde, naquela noite ele contou o que havia acontecido aos outros membros da banda. Eles obviamente não acreditaram na história. O sujeito pediu a fita de vigilância da casa noturna e em momento nenhum o homem que ofereceu carona aparecia na gravação. Quando ele descreveu o sujeito e o carro que ele dirigia, ninguém lembrava de tê-lo visto. Para todos os efeitos, ele nunca existiu.

Porém, músicos não são os únicos artistas que fazem barganhas em troca de sucesso. No final do século XVII, o pintor austríaco Chistoph Haizmann afirmou ter feito um pacto para pbter enorme habilidade como pintor e uma maneira de abandonar a pobreza. Ele admitiu a história para autoridades depois de sofrer um colapso nervoso em 1677. O pintor disse que experimentava transes e nessas ocasiões perdia o controle do próprio corpo. E quando estava "apagado" ele produzia pinturas sensacionais. A história chegou até o padre católico Leopold Braun, que providenciou um exorcismo para livrar o artista da influência e do seu contrato. Durante o exorcismo, o demônio emergiu e disse que tinha um contrato assinado com Haizmann e que não abriria mão de seu negócio. O padre exigiu que o demônio tinha de mostrar o papel assinado e quando ele não pode produzir o papel, Haizmann voltou a ter o controle de seu corpo. Para todos os efeitos ele acreditava estar livre da influência maligna.


Infelimznete para ele, o episódio não foi o fim de seu sofrimento. Nos anos após o exorcismo, Haizmann experimentou um breve período de paz em sua vida até sofrer um novo colapso. Depois disso, ele passou a produzir telas cada vez mais sinistras e obscuras nas quais apareciam cenas e figuras diabólicas. As telas começaram a aterrorizar o próprio artista que alegava não lembrar de tê-las criado. Ele também afirmava ser visitado pelo demônio em seus sonhos e que nestes era lemrado constantemente da barganha pela qual não poderia se desobrigar. O artista passou por muitos outros exorcismos antes de finalmente se livrar da influência do Demônio. Haizmann passou a ter então uma vida rígida de penitência e profunda religiosidade. Em tempos modernos, especialistas acreditam que ele sofria de um quadro agudo de esquizofrenia, mas é provável que nunca saibamos ao certo.

Nem todos os acordos como Diabo são firmados com o objetivo de receber habilidade ou despertar talentos e reconhecimento. Há também histórias a respeito daqueles que vendem sua alma em troca de poder, riqueza ou ambos. É provável que o caso mais famoso de tal negociação envolva o infame líder e político britânico, Oliver Cromwell (1599-1658), que é considerado como uma das mais misteriosas e controversas figuras da História da Grã-Bretanha. Conhecido pelo seus brutais e sangrentos métodos e pela eficiência nos campos de batalha, bem como sua postura agressiva na política estrangeira no papel de Lorde Protetor, Cromwell é uma das figuras centrais na Revolução Inglesa. Suas campanhas militares eram impiedosas, marcadas por massacres e verdadeiras carnificinas que não poupavam a população civil.

Quando Cromwell morreu de malária em 1658, partidários da monarquia descobriram onde seu corpo estava sepultado, o exumaram e profanaram de várias maneiras, chegando até a encenar um enforcamento e decapitação. Quando religiosos foram chamados para intervir, nem mesmo eles quiseram se envolver, afirmando que Cromwell havia atraído aquele destino sobre si mesmo por ter servido às forças do Inferno em vida.


É verdade que ao longo de sua carreira Cromwell foi várias vezes comparado ao Demônio, a ponto de ser retratado com chifres e patas de bode em cartazes. Seus detratores diziam que sua carreira meteórica , suas muitas vitórias militares e seu carisma só podiam decorrer de um acordo com as trevas. Aqueles que defendiam essa crença mencionavam uma colossal tempestade no dia em que Cromwell morreu, um incidente que ganhou o nome de "A Ventania de Oliver" e que muitos sugeriram ter sido causada pela aparição do Diabo que havia se manifestado para reclamar a alma de Cromwell. Algumas narrativas a  respeito dessa tempestade citavam que as nuvens negras tinham o aspecto de figuras sinistras e que os raios jamais foram tão fortes. Nos anos posteriores a sua morte, Cromwell ainda era tão temido que pais usavam sua figura severa para ameaçar seus filhos, como se ele fosse um tipo de "bicho papão".

Haveria alguma verdade nessas histórias fartamente divulgadas na época, ou elas não passam de mera propaganda negativa e superstição? Acordo com o diabo ou não, Oliver Cromwell continua sendo uma das figuras mais controversas e para alguns, malignas, da história inglesa.

Outro comandante militar com um histórico de boatos envolvendo barganhas demoníacas é o General Jonathan Moulton (1726-1787), de New Hampshire, nos Estados Unidos. De modesto carpinteiro, ele se tornou um influente político ativo nas guerras do Rei George, no Conflito Francês e nas Guerras Indígenas, além de ter participado de maneira proeminente na Revolução Americana. Ele começou como voluntário de uma milícia e foi subindo na hierarquia militar até ser promovido a Brigadeiro General por ninguém menos do que o próprio Washington. Quando retornou a vida civil, Moulton recebeu como recompensa uma vasta extensão de terras em North Hampton, New Hampshire, tornando-se um dos homens mais ricos no estado e fundando a cidade de Moultonborough. Não foi muito depois disso que as suspeitas a respeito de uma barganha com o diabo começou a ganhar força. 


Uma das histórias mais estranhas surgiu quando a casa de Moulton se incendiou misteriosamente sem que ninguém oferecesse explicação de como aconteceu. Dizem que o General teria comentado com amigos que a culpa era de Satã, furioso por ele ter arranjado uma maneira de cancelar uma barganha feita muitos anos antes. Alguns diziam que o trato original com o diabo era que ele encheria uma bota com ouro em troca da sua alma e que esta seria reclamada quando o dinheiro terminasse. Segundo a lenda, Moulton planejou um esquema no qual retirou a sola da bota e fez com que ela nunca ficasse cheia. Com isso recebeu uma quantidade enorme de ouro antes do diabo perceber que não importava o quanto tentasse, jamais encheria o calçado. Furioso por ter sido enganado, o Diabo queimou a casa como vingança.

Outra parte estranha da história envolve a morte de Moulton. Seu corpo desapareceu e supostamente foi levado a um lugar ignorado para ser sepultado sob uma lápide falsa. Dizem que isso se deveu ao fato de que Moulton exigiu ser enterrado com uma bota cheia de ouro para assim se proteger do Diabo. Ninguém pode dizer ao certo se ele foi enterrado com a tal bota cheia de ouro, mas é fato que Moulton exigiu ser sepultado em local ignorado e mesmo hoje, ninguém sabe onde repousam seus restos.

As pessoas podem imaginar que no mundo dos pactos demoníacos, os últimos a incidirem na prática seriam os religiosos, mas narrativas a respeito de sacerdotes metidos com pactos são lugar comum. Na verdade, um dos mais antigos relatos a respeito de Barganha Demoníaca envolve um sacerdote que mais tarde se tornou santo, Teófilo de Adana, na Turquia no século VI. Segundo a história, Teófilo contratou um poderoso feiticeiro para que invocasse o Demônio e providenciasse um contrato que garantisse sua posição de Bispo em Adana. Quando o Demônio surgiu, ele teria exigido que o Bispo renunciasse sua crença em Cristo e na Virgem Maria, bem como assinasse um contrato com sangue. Theophilus aceitou os termos e logo depois foi feito Bispo.

Em determinado momento, Theophilus se arrependeu de sua decisão e rezou para que a Virgem Maria o perdoasse. Eventualmente depois de jejuar por 40 dias, ela apareceu diante dele. Ele implorou por perdão e ela disse que nada poderia ser feito. Em seguida, o Bispo jejuou por mais 30 dias e resolveu doar toda sua fortuna para os pobres. Ele teve então uma visão na qual a Virgem concedia a ele perdão total pelos seus pecados. 


Entretanto, três dias depois de receber perdão, Satã apareceu exigindo o cumprimento de seu contrato. Quando ele disse estar liberado pela intercessão divina da Virgem Maria, o demônio não se mostrou nem um pouco satisfeito e fez uma ameaça na qual mostrava o Fogo do Inferno. Aterrorizado, Theophilus levou até o Bispo que o substituiu um documento no qual havia prometido sua alma. O Bispo disse que o contrato precisava ser queimado aos pés da estátua da Virgem. Segundo a lenda, quando o documento virou cinza por inteiro Theophilus morreu em paz, aliviado por sentir que sua alma estava definitivamente livre.       

Finalmente outra figura religiosa que supostamente barganhou sua alma foi o Padre Urban Grandier (1590-1634), Diácono da Igreja de Saint Croix em Loudon, França. Para todos os efeitos, sua conduta não era considerada muito cristã pelo seu rebanho. Sua reputação como mulherengo e como agressor de mulheres já seriam ruins o bastante, mas havia muito mais. Ele havia sido acusado de lançar uma maldição sobre um grupo de freiras de um convento próximo, enviando demônios para aterrorizá-las, incluindo o Demônio Bíblico Asmodeus, que segundo rumores Grandier controlava por intermédios de rituais antigos de magia negra. 

As freiras alegavam que o demônio havia estuprado e assassinado algumas noviças e que outras teriam sido raptadas para se tornarem escravas sexuais do Padre Grandier. Essa acusação fez com que a Inquisição investigasse suas ações e mais tarde o prendesse sob suspeita de conluio com as trevas. Durante o inquérito instaurado, Grandier foi torturado e revelou ter assinado um pacto com o demônio para ganhar poder e influência. O contrato precisava ser lido de trás para frente em Latim e era adornado com vários símbolos cabalísticos. Mais grave ainda, o próprio Satã havia assinado o contrato e garantido sua validade.


O contrato instituía que Grandier teria direito a "amar e ser amado pelas mulheres, a deflorar virgens, ganhar o favor de monarcas e o respeito de senhores influentes", tudo isso em troca de sua aliança com os poderes do Inferno. Não se sabe ao certo se o documento foi forjado, mas é fato que a assinatura do Diácomo estava no contrato ao lado da que pertencia a Satã. Diante das provas estarrecedoras, Grandier foi condenado a morte, sendo queimado em uma estaca no ano de 1634.

Será que demônios e o próprio Diabo são reais? E se a resposta for sim, será possível fazer com eles acordos ou pactos em troca da realização de sonhos, usando para isso a alma como moeda de troca?

Seja como for, se alguma dessas histórias tem algum fundo de verdade, é um conceito intrigante a ser contemplado. A promessa de vantagens e benefícios, da realização dos sonhos mais profundos é algo que pode atrair os ambiciosos e aqueles que realmente desejam realizar suas expectativas, custe o que custar. Enquanto existirem religiões com demônios e seres das trevas, provavelmente existirão histórias a respeito de tentações e barganhas prometidas e assinadas com sangue.

Mas na dúvida, é melhor não assinar nada... mesmo que a promessa pareça vantajosa.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Il Trillo del Diavolo - A lenda de uma composição inspirada pelo Diabo em pessoa


Diz o famoso ditado que a Música é o alimento da alma.

Ela é uma das expressões artísticas mais sublimes da humanidade, uma forma de elevação do espírito e da alma. Para alguns artistas, a música é divina e proporciona um vislumbre do paraíso. Antonio Salieri, que ficou famoso por invejar a obra de Wolfgang Amadeus Mozart, costumava implorar a Deus por inspiração e depois de cada sonata que compunha se colocava de joelhos como agradecimento. Outros compositores se consideravam inspirados por Deus que lhes proporcionava aquela fagulha determinante para seus melhores trabalhos.

Mas e se o outro lado, também tiver interesse na arte musical e de alguma maneira patrocinasse suas próprias composições, valendo-se de métodos especiais. O Diabo, dizem, é o pai do Rock n' Roll, mas muito antes do surgimento desse tipo de música, ele já trabalhava nos bastidores criando histórias incríveis.

A música está cheia de lendas e rumores a respeito de músicos famosos e compositores envolvidos com o sobrenatural. De Fausto e Mefistófoles até o Fantasma da Ópera, dos guitarristas de blues esperando em encruzilhadas para vender sua alma ao estrelato, das travessuras pagãs de Jim Morrison, até os rituais de Telema tentados pelo membros do Led Zeppelin, a música e o ocultismo caminham de braços dados desde que ambos surgiram.

Uma das histórias mais fascinantes sobre o assunto envolve o compositor barroco italiano Giuseppe Tartini (1692-1770) e sua associação com ninguém menos do que o Diabo em pessoa.


Diz a lenda que em certa noite do ano de 1713, Tartini, um jovem e promissor musicista sonhou que havia encontrado o Diabo cara a cara. O demônio ofereceu a ele uma barganha: transformá-lo no melhor violinista do mundo e assim lhe garantir enorme sucesso. O acordo foi firmado, o Diabo concordou com a proposta e disse que o rapaz seria famoso e que iria compor uma música inesquecível. Em determinado momento do sonho, Tartini ficou curioso e perguntou ao Diabo se ele era um conhecedor de música, afinal, quais eram seus conhecimentos para determinar o que é verdadeiro talento?

O diabo se sentiu ofendido com a desconfiança e pediu que Tartini emprestasse a ele o violino que tinha em mãos - no sonho ele estava com o instrumento. Em seguida, ele não se fez de rogado, habilmente posicionou o violino no queixo, testou duas vezes e começou a tocar de maneira sublime.

O som que o Diabo produziu com o violino mudou a vida de Tartini.

Quando despertou do sonho, com a música fresca na cabeça, ele correu para escrever a melodia. A peça era tão complexa, tão bem executada que o rapaz ficou estarrecido. Tartini tentou inúmeras vezes recriar o som e a melodia ouvida, mas alguns trechos acabaram se perdendo e ele não conseguia lembrar dos detalhes bem o suficiente para colocar em uma partitura.

O jovem experimentou desapontamento após desapontamento já que era incapaz de atingir o grau de complexidade e de delicada precisão que a composição exigia. Após meses trabalhando na obra, Tartini se sentiu tão perdido que tentou o suicídio usando as cordas de seu violino para cortar os pulsos.

Felizmente ele sobreviveu!


Nos seus devaneios às portas da morte, o diabo fez mais uma visita ao rapaz. Escorregando para a morte, Tartini implorou ao tinhoso para ele tocasse a sonata uma vez mais. No sonho, ele ouviu com atenção e fez um esforço sobre-humano para memorizar cada movimento e os trechos mais intrincados. Ao despertar pediu por uma pena e papel para que pudesse anotar cada detalhe.

Quando finalmente saiu do hospital onde estava internado, Tartini contou o que havia acontecido. Os padres católicos que administravam o lugar disseram que o rapaz havia enlouquecido depois que relatou sua blasfêmia. Giuseppe tornou o objetivo de sua vida replicar aquela melodia ouvido apenas em seus sonhos. 

Ele demorou sete longos anos para finalizar sua Sonata Diabólica, como ela foi apelidada. A música ganhou o nome de "Il Trillo del Diavolo" (O Trinado do Diabo) e nos tempos modernos se tornou uma peça bastante conhecida e admirada. Considerada uma das composições mais difíceis de serem executadas. Curiosamente o compositor lamentava jamais ter conseguido reproduzir com exatidão a música que continuava assombrando sua mente febril. Aqueles mais próximos contavam que o rapaz sofria de uma enorme depressão por não ser capaz de atingir o tom desejado. Tartini tornou-se temperamental, chegou a destruir inúmeros instrumentos em acessos de fúria, encerrava apresentações furiosamente e dizem, pensou em suicídio outras vezes.

É provável que a "culpa" não fosse de Tartini, uma vez que os violinos da época não possuíam cordas resistentes o bastante para suportar a pressão das mudanças de tons e acabavam arrebentando. Apenas com a modernização dos instrumentos é que musicistas conseguiram atingiram a plenitude do que Tartini havia concebido.

A famosa mística e medium, Madame Helena Blavatsky escreveu um conto curto em sua coleção de Histórias de Terror com o título "A Alma no Violino". Na sua versão fictícia, Tartini obtém seu talento graças ao pacto diabólico e se arrepende no final de sua vida.


Vários compositores dos séculos XVIII e XIX consideravam o tritono - o  intervalo entre alturas de duas notas musicais que criam três tons inteiros, uma inspiração e construíram adaptações em cima dele. Não por acaso, o tritono, a invenção de Tartini, é considerado uma das dissonâncias mais complexas na música ocidental, realizado apenas por músicos extremamente talentosos. O musicista francês Camille Saint-Saëns em sua Danse Macabre conseguiu criar um tritono claramente inspirado por Tartini.

Extremamente polêmica, a história acabou repercutindo na Igreja Católica que condenou o uso do tritono como uma construção maligna. Um dos argumentos dos religiosos era de que a música derivava de Deus e portanto exigia harmonia. Um som dissonante seria algo a ser evitado. A campanha da igreja para desqualificar o tritono fez com que muitas partituras e compositores fossem perseguidos. O tritono hoje em dia é usado em vários estilos. 

Estudiosos de música e pesquisadores tentaram explicar até hoje como Tartini teve a inspiração para compor sua obra prima, alguns chegaram a sugerir que ele teria nascido com polidactilia, ou seja, seis dedos funcionais em cada mão. Talvez isso explicasse sua genialidade, mas talvez, ele fosse realmente inspirado pelo Diabo... quem pode saber ao certo?

Para tirar suas dúvidas, aqui está a Sonata para violino em sol menor de Giuseppe Tartini, o Trinado do Diabo. 

Ah sim, a coisa fica animada aos 4 minutos, dá para perceber que em certos momentos parecem dois violinos sendo tocados simultaneamente, mas na verdade é apenas uma pessoa alterando o tom.

domingo, 22 de abril de 2018

A Cadeira Satânica - A História de uma peça de mobília maldita


O Museo de Valladolid é uma instituição que se localiza na cidade de mesmo nome, no sudeste da Espanha.

Ele é conhecido como um dos mais importantes museus ibéricos com um rico acervo de peças, sobretudo voltada para a arqueologia e belas artes. Entre as coleções permanentes em exposição o visitante encontra elementos da história de Valladolid, que é a capital da Província de Leão e Castela. Objetos do passado da cidade como moedas romanas, armas usadas pelos povos mouros que a ocuparam, roupas típicas, obras de arte e pinturas renascentistas disputam as atenções, entretanto a peça mais famosa do Museu é outra: uma cadeira.

Mas não se trata de uma simples peça de mobília antiga do século XVI. A cadeira em questão tem nome e uma história estranha que inclui uma maldição, assassinato e superstição. Ela é chamada de "Cadeira do Diabo" e o título é bem merecido.

De acordo com a lenda, o dono original da cadeira era um estudante português chamado Andres de Proaza que se estabeleceu na Espanha para estudar Medicina na Universidade de Valladolid - uma das mais antigas do mundo. De Proaza, segundo alguns, era um jovem de apenas 22 anos, inteligente e determinado, certas fontes sugerem que ele tinha ancestrais judeus responsáveis por introduzir técnicas médicas aprendidas com os árabes. 

Em 1550, o Curso de Medicina enfrentava uma furiosa oposição da Igreja Católica e da Inquisição que censuravam duramente as aulas de anatomia. O renomado Dom Alfonso Rodriguez de Guevara, decano do Departamento de Medicina tentou introduzir aulas de anatomia e dissecação conforme ele havia aprendido na Itália, mas os clérigos espanhóis ficaram escandalizados. Na concepção dos religiosos, estudar cadáveres equivalia a profanação e portanto era blasfêmia.  

Proaza já possuía um profundo conhecimento em anatomia. Seu pai e avô haviam estudado em segredo com médicos mouriscos que dominavam as principais técnicas da época. Ainda criança ele frequentou as clínicas de seu pai e avô onde teve contato com todo tipo de aflição e doença, muitas das quais os estudantes normais só vinham a conhecer através de seus mestres. Mais do que isso, Proaza tinha uma vantagem sobre seus colegas: ele já havia visto autópsias e não era estranho aos horrores e maravilhas oferecidos pela engenhosa máquina humana.


Não é de se estranhar que todos na Universidade tenham ficado impressionados com o conhecimento de Andres. Mestre Guevara tomou o jovem português como seu pupilo e pensava até em transformá-lo em seu sucessor. Contudo, havia algo estranho naquele rapaz, algo que deixava algumas pessoas inquietas, embora nem todos fossem capazes de determinar de que se tratava. Talvez fosse a maneira como Andres falava sem cerimônia de temas funestos e até sinistros. Quem sabe fosse sua familiaridade com a condição humana já que nada parecia perturbá-lo; enquanto a maioria dos alunos demonstrava uma natural aversão ao sangue e às vicissitudes da carne, Proaza sequer piscava.     
     
Ninguém sabe exatamente como apareceram os primeiros rumores. É possível que tenham sido os vizinhos que residiam nos arredores da quinta que Proaza havia alugado. Talvez eles tenham ouvido sons estranhos: gemidos e lamentos que chegavam até eles na calada da noite. Pode ter sido ainda a estranha coloração do riacho que passava atrás da casa do jovem médico, que de vez em quando amanhecia avermelhado. Seja como for, os boatos de que o jovem estudante de medicina era praticante de necromancia começaram a se espalhar. 

Foi então que uma criança de nove anos, um jovem ajudante de cavalariço desapareceu e os vizinhos de Proaza ficaram atônitos. Uma testemunha afirmava ter visto o estudante conversando com uma criança que poderia ser o menino sumido. Temendo o pior, contataram as autoridades que foram até a quinta do médico. Bateram várias vezes mas ele não atendeu, resolveram então arrombar a porta e revistar o lugar por conta própria.

Um cheiro desagradável os levou imediatamente até o porão que estava coberto por serragem e palha seca usados para absorver o odor e umidade. Havia uma grande mesa de madeira de onde escorria em profusão sangue fresco. A mesa estava coberta por um lençol, mas era possível perceber um volume oculto sob o tecido manchado de vermelho. Os homens engoliram seus temores e olharam o que estava ali embaixo: não era mais o corpo de uma criança, e sim os restos sanguinolentos de um cadáver secionado. 

O corpo era como "um peixe numa feira", aberto com as entranhas e os orgãos espalhados à vista de qualquer testemunha casual. A morte exposta para quem quisesse olhar. Em um carrinho de mão colocado de lado haviam ainda as carcaças de vários cães e gatos igualmente explorados pela curiosidade do jovem anatomista que confrontado com a descoberta reconheceu sua culpa.


Assassinato não era o único pecado cometido por Proaza. 

Durante seu julgamento, conduzido com alarde pela Inquisção, ele admitiu ter firmado um pacto com o Demônio, prometendo sua alma em troca do conhecimento do corpo humano. O jovem médico se gabava de ter criado um método para se comunicar com o Príncipe das Trevas usando para isso uma cadeira. Não uma simples cadeira, tenha em mente, mas um assento oferecido a ele como presente por um Necromante de Navarra.

Sentando-se na cadeira colocada no centro de um círculo de magia desenhado no chão, Proaza conseguia audiências com o demônio que surgia sempre de madrugada. O Senhor das Trevas então cumpria sua parte na barganha, revelando o que o jovem médico desejava saber a respeito de seu ofício. Segundo Proaza esse era o segredo de seu brilhantismo. Ele contou ainda que qualquer médico poderia fazer a mesma barganha com o diabo se assim desejasse, bastando sentar na cadeira e aceitar o mesmo acordo. Entretanto, qualquer um que não fosse um médico e ousasse fazê-lo, morreria três dias depois, o mesmo valendo para qualquer um estúpido o bastante para destruir a cadeira.

Pelos seus crimes inenarráveis, Andres de Proaza foi condenado à forca e segundo os registros, a sentença foi cumprida conforme ditado pelo Inquisidor mor.

Meses depois, um leilão foi realizado para que os bens pertencentes a Proaza fossem vendidos. Não é de se surpreender que poucas pessoas manifestaram interesse em adquirir a mobília associada a um assassino de crianças e satanista. Por essa razão, as coisas dele acabaram indo parar em um depósito na velha universidade. 

 Séculos se passaram, até que a história a respeito da cadeira foi quase que inteiramente esquecida.


No século XIX, um inspetor da Universidade encontrou a cadeira no depósito e tomou posse dela. O homem sentou na cadeira e conforme a maldição proferida por Proaza, morreu três dias depois em um curioso acidente.  Seu sucessor foi igualmente descuidado; ele também sentou na cadeira e não apenas morreu três dias depois, como foi encontrado sentado no assento maldito. A causa da morte teria sido um ataque cardíaco fulminante, mas para a maioria das pessoas ele foi vítima da Cadeira Satânica.

A essa altura, alguém descobriu o registro a respeito da cadeira e fez alarde sobre a suposta maldição. Depois de alegadamente tomar a vida de dois inocentes, a maldição precisava ser quebrada. Para garantir que as energias diabólicas da peça fossem dissipadas, um sacerdote ordenou que ela fosse levada até a capela da Universidade e suspensa de cabeça para baixo ao lado do altar. Lá ela ficou até 1890 quando foi transferida para o Museo de Valladolid depois que a capela foi demolida.

Em seu novo lar, uma faixa vermelha foi amarrada nos braços da cadeira evitando assim que visitantes desavisados sentassem nela. É claro, isso não impediu que pessoas tentassem fazê-lo e nem que ambiciosos médicos sentassem nela esperando que assim um pacto fosse firmado e os poderes infernais concedessem a eles genialidade sobrenatural. Depois de algum tempo, a direção do Museu decidiu fechar a cadeira em um armário de vidro para evitar que curiosos sentassem nela ou a danificassem. Houve um tempo em que maldições seriam o suficiente para afastar as pessoas, mas não nos tempos modernos, quando elas se vêem atraídas pelas qualidades sobrenaturais de artefatos ocultos.

A Cadeira Satânica continua em exibição no Museo de Valladolid, se ela continua agraciando aqueles que sentam nela com audiências demoníacas, é assunto para controvérsia.

quarta-feira, 18 de abril de 2018

A Expedição Shäfer ao Tibet - A Caçada dos Nazistas ao lendário Yeti


Nazistas parecem ter um lugar de destaque em qualquer grande conspiração que seja estranha, bizarra ou simplesmente esquisita. De experiências com ocultismo, passando por bases de discos voadores, exploração do sobrenatural como armamento de guerra até o desenvolvimento de tecnologias avançadas, nazistas fizeram por merecer o status de grandes vilões.

Enterrado em meio a uma infinidade de conspirações e esquisitices históricas associadas aos nazistas é possível encontrar coisas realmente peculiares. Uma delas atraiu o interesse pesquisadores interessados em criptozoologia. Trata-se de um caso muito estranho combinando expedições secretas, exploração e monstros enigmáticos.      

Existem tantas lendas fantásticas a respeito de expedições nazistas ao redor do mundo que em alguns momentos é difícil determinar se elas possuem algum fundo de verdade. Parece ser verdade que Hitler tinha um intenso interesse em temas sobrenaturais, no desconhecido e no estranho, tanto que ele promoveu a criação de uma organização devotada a sua exploração. A Ahnenerbe, presidida pelo segundo em comando na estrutura nazista, Heinrich Himmler, tinha como um de seus principais objetivos investigar as raízes da raça ariana. Contudo, existiam muitos subdivisões dentro da Ahnenerbe, algumas devotadas ao estudo do misticismo e do mundo sobrenatural, temas que agradavam a Himmler. Entre os projetos da Ahnenerbe estavam o estudo da feitiçaria, de poderes psíquicos, magia negra e outras ciências ocultas. Na sua busca incessante por artefatos e fontes de poder ancestral, os agentes nazistas se lançaram em expedições que os levaram a várias partes do planeta: do Egito, aos desertos da Arábia, da Amazônia ao Coração da Asia.

Entre as mais inusitadas expedições sancionadas por Himmler estava uma viagem aos Picos do Himalaia com o objetivo de encontrar o lendário Yeti, criatura também conhecida como o "Abominável Homem das Neves"

     
O ano era 1938 e os alemães já haviam realizado outras expedições às geladas Montanhas do Himalaia, no Reino do Tibet, uma das regiões mais misteriosas e desconhecidas do planeta. Os nazistas tinham enorme interesse no Tibet, uma vez que acreditavam que a raça ariana teria se originado naquela parte do mundo. Liderada pelo zoólogo alemão e oficial da SS Ernst Schäfer, os nazistas também desejavam explorar as montanhas para determinar se as lendas tibetanas a respeito do Yeti tinham algum fundo de verdade. A expedição contava com vários cientistas respeitados, como o antropólogo Bruno Beger, que acreditava não apenas na existência do Yeti, mas também em espíritos como o Tulpa, em feitiçaria e poderes psíquicos. Beger defendia que os antigos arianos haviam em algum momento da história conquistado uma boa parte da Ásia e que desenvolveram um vasto império que detinha ao mesmo tempo conhecimento místico e tecnológico. Fragmentos desse saber ancestral ainda poderiam ser encontrados entre a população.

O propósito oficial da Expedição Shäfer, a terceira na região, era pesquisar as origens dos povos arianos e determinar suas raízes culturais. Além disso, eles também buscavam catalogar a exótica fauna e flora do Himalaia, traçar a etnografia dos povos locais, examinar a geologia e desenhar mapas detalhados.

Entretanto, é claro, haviam planos mantidos em segredo pelos membros da Expedição. O Ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebels se valia dessas expedições para promover o partido e demonstrar a alegada superioridade da Alemanha diante das outras nações. Conquistar montanhas e chegar antes ao topo de cordilheiras era uma questão de honra e prestígio. Os nazistas também usavam suas expedições de caráter científico como pretexto para sondar esses territórios sob o controle de inimigos em potencial, estabelecer bases para futuras incursões militares e fazer contato com rebeldes. Quando a guerra teve início em 1939, os nazistas usaram as informações de campo colhidas pelos seus exploradores.


Beger acreditava que o Yeti, um dos alvos da terceira expedição, poderia ser uma espécie humana primitiva não evoluída. Suas teorias pseudocientíficas contemplavam a possibilidade dos Yeti terem surgido na mesma época dos arianos originais. Provar a existência dessas criaturas seria uma maneira de validar as teorias a respeito de raças humanas ancestrais habitando essa mesma região inóspita. 

A expedição reuniu inúmeras lendas e narrativas do folclore tibetano envolvendo o Yeti. Guias e tradutores contratados pelos nazistas viajaram de aldeia em aldeia para reunir a maior quantidade possível de informações sobre o assunto. Nenhum rumor, era deixado de lado, todos os avistamentos eram checados e as testemunhas entrevistadas pelos cientistas.

A despeito de todos esforços, a Expedição Shäfer, obviamente, não encontrou nenhum espécime do Yeti. Oficialmente eles coletaram centenas de amostras de plantas e animais, também fizeram numerosas fotografias e filmagens, além de terem adquirido artefatos dos povos nativos, como uma cópia do Kangyur, o livro sagrado dos tibetanos. A expedição também recebeu um importante presente dos nativos do Tibet, uma estatueta de metal do Deus Vaisravana esculpida com um pedaço de um raro meteorito. Shäfer detalhou vários aspectos da expedição em um diário particular no qual descreveu costumes e a cultura do Himalaia. As anotações meticulosas de Beger serviram como material para um importante livro intitulado "Mit der deutschen Tibetexpedition Ernst Schäfer 1938/39 nach Lhasa" considerado um dos mais fiéis relatos das tradições tibetanas, sob uma ótica ocidental.

Shäfer e Beger escreveram relativamente pouco a respeito do Yeti em seus diários, mas descreveram que pelo menos duas incursões tiveram como alvo averiguar lugares onde a criatura havia sido avistada. Shäfer escreveu que do seu ponto de vista o legendário animal, não deveria ser mais do que um tipo de urso de grande porte habitando uma área montanhosa de difícil acesso. Embora Begen deixasse clara sua crença na existência da criatura, seu interesse nela parece ter gradualmente diminuído a medida que sua atenção foi se voltando para outros temas mais concretos.

Isso não os impediu de tentar encontrar sua presa. Em um dos relatos mais significativos, o líder da expedição escreveu que a expedição tentou atingir um platô onde uma caravana havia avistado um animal de grande porte, coberto de pelos brancos no ano anterior. A narrativa de guias que mencionaram já ter visto a criatura animou os membros da expedição, mas uma forte nevasca os impediu de chegar ao local exato.


As filmagens feitas pela expedição foram reunidas e editadas na forma de um filme com o título Geheimnis Tibet ( Tibet Secreto). Schäfer obteve enormes elogios entre os nazistas, recebendo uma comenda pelos valiosos serviços prestados para a Ahnenerbe. Shäfer pretendia retornar ao Tibet para prosseguir nas suas explorações, mas a intensificação da guerra impediu seus planos e ele se viu impedido de deixar a Europa. Após o conflito, ele foi interrogado pelos aliados a respeito de sua relação com os altos círculos do partido e se disse enojado quando as atrocidades nazistas vieram à tona.

Muitos anos depois da guerra, um diário escrito por Shäfer revelava que ele tinha interesse de viajar para o Tibet com o propósito de organizar guerrilhas tibetanas, contudo ele jamais voltou ao Himalaia. Depois da Guerra, ele ficou preso por quatro anos pelo seu envolvimento com a SS. Shäfer casou-se em 1949 e se mudou para a Venezuela onde se tornou professor na Universidade de Maracaibo. Posteriormente ele retornou a Europa e se converteu em um conselheiro do Rei Leopoldo III da Bélgica. Ele morreu em 1992.

Bruno Bager também sobreviveu à Guerra apesar de uma vergonhosa participação como antropólogo nazista trabalhando como consultor para a Ahnenerbe. Ele foi acusado de ter tomado parte em um projeto que visava a criação de uma coleção de esqueletos de judeus. Segundo rumores, 100 judeus foram escolhidos em Auschwitz e executados para que seus ossos fossem coletados e futuramente expostos em um museu que seria criado. Bager negou até o final da vida que tivesse participado desse episódio. Ele morreu em 2009 com quase 100 anos de idade. O antropólogo evitava falar a respeito da Expedições ao Tibet e segundo sua família desejava esquecer sua participação nelas. Ele destruiu todos os itens que o ligavam a expedição de 1938-39 e não autorizou novas edições do seu livro. Hoje, existem menos de 50 cópias dele.  

Apesar da história oficial se limitar a isso, teóricos da conspiração acreditam que algo mais sinistro ocorreu na Expedição Nazista ao Tibet. Há registros de que a expedição teria trazido um grande número de caixas e containers em segredo ao retornar e que dentro deles teriam sido contrabandeados para a Alemanha espécimes de animais desconhecidos. Os membros das expedições faziam parte da Ahnenerbe e muitos deles eram filiados a SS, obrigados a manter segredo sobre seus objetivos e os resultados obtidos. Um manifesto dos itens trazidos pela expedição explicita terem sido trazidos 47 espécimes animais, mas apenas 25 foram descritos.


Alguns acreditam que Shäfer e Beger podem ter descoberto muito mais do que revelaram em seus diários. Sabe-se que a Ahnenere era criteriosa em seus registros e que exigia detalhes de todas as descobertas realizadas. O diário oficial da expedição concluída em 1939 e arquivado pelos nazistas, era bastante sucinto e alguns acreditam que essa versão havia sido pesadamente censurada para que informações chave não vazassem. Da mesma maneira, alguns pesquisadores estranham que boa quantidade dos itens trazidos pela expedição simplesmente desapareceram ou não foram incluídos no acervo da organização. Qual teria sido o destino desses itens que incluíam objetos, animais empalhados e outras amostras?

Finalmente, existe a questão das honrarias dispensadas a Shäfer após seu retorno. Ele recebeu uma das mais importantes condecorações da época, o tipo de reconhecimento concedido a indivíduos que fizeram alguma descoberta científica significativa. Analisando friamente os resultados da Terceira Expedição, ela não foi mais notável que as outras duas.

Pesquisadores de Criptozoologia defendem que ainda que a Expedição não tenha encontrado o Yeti, é provável que eles tenham coletado informações valiosas a respeito da criatura. Mas no diário oficial, há muito pouco a respeito do assunto, quase como se ele tivesse sido propositalmente ignorado. Teriam os nazistas encontrado algo que preferiram manter em segredo? E se esse for o caso, será que ainda existem documentos secretos que sobreviveram?

As questões permanecem sem resposta, e é bem provável que jamais saibamos ao certo o que os nazistas encontraram na sua viagem pelas Montanhas do Himalaia.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

O Segredo do Dr. Willett - Os artefatos profanos de Charles Dexter Ward


“Nesse meio tempo, Willett subira ao laboratório desmantelado e trouxera para baixo alguns itens não incluídos na mudança do mês de Julho anterior, dentro de uma cesta tapada, por isso o Sr. Ward não viu do que se tratava".…”

A postagem a seguir tem relação com a fantástica novela "O Caso de Charles Dexter Ward"  de H.P. Lovecraft. Se você não leu essa história, é impostante avisar que o artigo possui spoilers a respeito de temas centrais. Proceda por sua conta.

Para celebrar os 90 anos que Charles Dexter Ward foi destruído pelo Dr. Marinus Willet, em 13 de abril de 1928, aqui está uma postagem relacionada. 

O Laboratório móvel de Joseph Curwen
por Bigford Works (Dale Bigford)


Em Julho de 1966 a Câmara de Comércio de Providence, no Estado de Rhode Island leiloou a propriedade localizada no número 10 da Rua Barnes. A casa e terreno, um belo exemplo do estilo victoriano de 1880 foi propriedade do viúvo e sem filhos médico, Dr. Marinus Bicknell Willett. Willett faleceu em 1950 e a casa ficou vazia desde então. Curiosamente, o testamento de Willett possuía uma cláusula acessória de que a mansão do bom doutor deveria continuar vazia pelo período em que um fundo especialmente reservado para suprir as taxas se mantivesse. Em seguida, a cláusula explicitava que ela deveria ser demolida.

A despeito dos protestos da firma legal que representava o espólio, brechas legais que não existiam na década de 1950 permitiram que a cidade assumisse a posse da propriedade.

Após o leilão os novos donos que arremataram a propriedade imediatamente contrataram operários para fazer a restauração da casa. Embora vazia por 16 anos a estrutura estava em excelentes condições, com apenas alguns reparos menores sendo necessários em áreas onde o gesso, piso, calefação e encanamento haviam se deteriorado. Além desse trabalho necessário, o restante se resumia a limpeza e manutenção básica.

Doutor Marinnus Willett
No interior do belo aposento em que ficava a biblioteca os operários encontraram uma situação inusitada: Uma pintura à óleo de um homem de boa aparência com trajes do período de 1920 e uma placa com as iniciais "CDW". A tela estava colocada sobre a lareira, ou assim parecia. Logo ficou claro que a pesada moldura que envolvia o retrato estava fortemente presa à parede. Enquanto buscavam por uma forma de soltá-lo, um dos operários descobriu uma alavanca escondida. Uma vez pressionada dobradiças enferrujadas estalaram revelando um nicho oculto atrás da tela.

Atrás da pintura, em um gabinete oculto, coberto de grossa camada de poeira acumulada descobriram um velho baú de madeira contendo várias pastas com papéis, documentos, recortes de jornal e fotografias. 

Se o chefe dos operários não estivesse presente no local, provavelmente o baú teria discretamente sumido no porta malas de um caminhão e desaparecido para sempre. 

Tendo vasta experiência em estruturas antigas e mobiliário o capataz ficou surpreso com a descoberta. O baú de madeira reforçada era um belo exemplo de carpintaria do século XVIII. O estilo da peça remetia ao período medieval, tipicamente usado em caixões, mas não se tratava de um relicário ou ataúde. Alças empoeiradas de couro cru evidenciava que o item era móvel e costumava ser carregado. Os pesados arremates de bronze já corroídos sugeriam que nem sempre ele havia sido usado como uma caixa para guardar objetos e que provavelmente ele havia sido colocado em um ambiente úmido por algum tempo. As fechaduras também tinham uma aparência antiga. O baú foi entregue aos novos donos da casa - que por direito haviam adquirido tudo em seu interior. Eles imediatamente contrataram um chaveiro para abrir a fechadura e descobrir o que continha.   

Quando finalmente a tampa do baú foi destrancada, os donos recuaram em aversão. A caixa segundo um antiquário foi identificada como um estojo de viagem usado por apotecários para carregar seus artigos. O que havia dentro, no entanto, era de natureza muito mais sinistra.

O baú era uma espécie de laboratório móvel. Será que o Dr. Willett escondia uma vida secreta? Estaria aquele pilar da comunidade envolvido com as artes negras e com superstições?  

Charles Dexter Ward
Ansiosos por evitar um escândalo os donos entraram em contato com professores da Universidade Brown para que levassem o baú e avaliassem seu possível "valor histórico". Após uma avaliação preliminar um dos professores achou por bem consultar um colega da Universidade Miskatonic. Todos estavam de acordo que a natureza do objeto qualificavam a Miskatonic e seus departamentos de ciências humanas como os mais qualificados para um exame. Eles poderiam descobrir o seu propósito.

A Escola de Medicina de Arkham, concordou em contratar uma agência de detetives particulares para conduzir uma investigação a respeito da vida pregressa do Dr. Willett. Buscavam algo que fornecesse pistas a respeito da descoberta sem precedentes feita na sua casa.

O pouco que descobriram resultou em estranhas revelações.

O Dr. Marinus Bicknell Willett, nasceu em 14 de março de 1861, em  Providence. Ele cursou a  Universidade de Medicina de Brown em 1879, graduando-se com honras em 1883. No ano seguinte, Willett comprou a mansão na Rua Barnes, que lhe serviu de residência até o dia de sua morte. Sua carreira se iniciou em 1884 e os arquivos demonstram que ele exerceu seu ofício, sendo reconhecido como um dos melhores e mais respeitados médicos particulares de Providence. Entre seus clientes estavam algumas das mais ricas famílias da cidade.

Os investigadores não encontraram nada de estranho em sua carreira até meados de 1928 quando descobriram seu envolvimento em um estranho incidente. Um rapaz chamado Charles D. Ward nascido em Providence, paciente de longa data do Dr. Willett, fora internado no Sanatório da Ilha Conanicut, diagnosticado com colapso nervoso. O Sr. Ward teria escapado de seu confinamento em circunstâncias misteriosas e após a espetacular fuga, ninguém mais ouviu falar dele.

 À época, as más línguas especularam se de alguma maneira Willett teria auxiliado o jovem Sr. Ward a escapar da instituição. O incidente foi abafado, mas os rumores arranharam a carreira do médico deixando uma suspeita de má conduta em seu perfil até então perfeito.

Pode ser inferido que o declínio na carreira do Dr. Willett se acentuou após esses rumores. Sabe-se que Willett resolveu tirar um longo período de férias em 1929 e que retornou a Providence apenas três anos depois. Nesse ínterim as finanças do médico parecem ter sido dilapidadas pela Grande Depressão que o atingiu com força. Uma vez retornando a Providence ele tentou voltar a exercer, mas a maioria das famílias que ele costumava atender já haviam optado por outros profissionais.

A descoberta do quadro na Rua Barnes deixava claro que o retrato com as iniciais "CDW" pertencia ao jovem Charles Dexter Ward. O que não estava claro era a razão para a tela ganhar tanto destaque na parede da biblioteca de Willett e o que seriam os objetos de natureza oculta atrás dele.

Joseph Curwen
Os relatórios a respeito do período em que Ward esteve no Sanatório Conanicut são difíceis de serem localizados. Na ausência de seus pais, Theodore e Abigail Ward que morreram num espaço de dez anos após o sumiço de seu filho único, não há pessoas que possam requisitar os registros. Ward não tinha outros parentes próximos e mesmo que existissem há rumores de que muitos desses documentos foram destruídos. Há suspeitas de que os papéis da internação de Ward no Sanatório tenham sido assinados pelo Dr. Willett, o que faz sentido uma vez que ele era o médico de confiança dos Ward na época. Também existem indícios de que Willett tenha sido um dos médicos que realizou exames no rapaz na ocasião de seu confinamento. Na época alguns jornais relacionaram a internação de Ward com uma série de estranhos casos de roubo e depredações em velhos cemitérios do período colonial de Providence.

Tudo o que se sabe é que o colapso de Ward estava de alguma forma conectado a uma pesquisa genealógica que ele vinha realizando a respeito de sua genealogia. Um dos alvos principais das pesquisas de Ward era um antepassado chamado Joseph Curwen que viveu em Providence na época colonial. Mas a respeito de Curwen existem pouquíssimas informações disponíveis. Ward parece ter vasculhado arquivos e removido a maioria dos documentos e certidões a respeito de seu ancestral.

Ward jamais foi acusado formalmente de ato ou atos criminosos, contudo, após o seu dramático desaparecimento as investigações do caso envolvendo as profanações, foram encerradas. Nenhuma outra notificação foi feita.

Os papéis que estavam reunidos na misteriosa caixa em poder de Willett eram bastante curiosos. Uma pasta continha artigos recortados de periódicos entre 1927-28, noticiando o roubo a sepulturas e ocorrências de profanação em Providence. Também havia um recorte a respeito das queixas frequentes de habitantes das proximidades do cemitério colonial concernente a cães barulhentos que causavam verdadeira algazarra à noite.

As fotografias reunidas em outro envelope retratavam Charles D. Ward em várias poses, provavelmente nos dias em que ele esteve internado no Sanatório. As fotos amadoras, provavelmente feitas pelo Dr. Willett com uma câmera de sua propriedade, pareciam se concentrar em manchas e sinais de nascença de Ward. Em alguns existentes e outros ausentes.

Também havia fotografias de uma antiga sepultura profanada pertencente a um tal Ehzra Wheedon, do cemitério colonial e de uma antiga casa que segundo informações foi adquirida por Ward e serviu como sua morada até seu confinamento e subsequente sumiço. Uma curiosa fotografia, aparentemente tirada de surpresa, mostrava um homem vestindo chapéu, sobretudo e óculos escuros. No verso dela estava escrito o nome "Doutor Allen". Um detetive sugeriu que a foto era o tipo de material usado por investigadores particulares como evidência.


A avaliação dos professores da Universidade Miskatonic quanto ao restante dos itens no baú serviram para levantar mais questionamentos do que para oferecer respostas.

Todos os objetos estavam cobertos por uma densa camada de poeira e teias de aranha evidenciando que eles não eram manipulados a muito tempo. 

O conteúdo mais eclético era uma mistura de ingredientes alquímicos, tanto processados quanto crus acondicionados em frascos grossos de vidro, algumas relíquias de natureza mística, páginas amareladas arrancadas de tomos, pergaminhos antigos, diários relatando o resultado de experiências e reações químicas, além de cadernos com relatos de experimentos no campo da necromancia. Além destes itens, havia ainda alguns instrumentos de tortura autênticos - um chicote conhecido como gato de nove caudas e um quebrador de dedos, inquietantes regalias religiosas, uma estatueta e placas de chumbo com gravações peculiares.


Mais perturbador talvez tenham sido a descoberta de uma caixa de madeira contendo oito velas que uma vez examinadas se provaram ter sido produzidas com gordura extraída de seres humanos. Finalmente haviam seis potes bojudos de chumbo cinza escuros contendo poeiras de procedência ignorada. Esses potes estavam rotulados com uma caligrafia rebuscada indicando o conteúdo de cada um. Lia-se "Custodes" em dois deles e nos demais a palavra "Materia" seguida de um número romano (I a IV). As palavras em latim significavam respectivamente Guardas e Material. Todos os vasilhames tinham tampas de metal e cobertas por uma cera amarelada na qual haviam sido desenhados símbolos cabalísticos.

Uma carta, aparentemente escrita pelo próprio Dr. Willett, no formato de um diário particular (ou confissão) foi de pouca ajuda para entender o caso. A carta extremamente confusa mencionava com indisfarçável terror algo chamado "118" que por pouco não teria matado o médico. Willett ao que tudo indica não era o dono original daqueles objetos e os havia adquirido com a intensão original de destruí-los. Adicionalmente, sua carta fazia menção a "grandes pensadores" e "conhecimento profano que poderia ser usado para o mal". Parece óbvio que o Dr. Willett não era um praticante de artes ocultas, embora pelo seu testemunho ele acreditasse na existência destas.

Departamentos individuais da Universidade Miskatonic se dedicaram cada qual a uma diferente tarefa no exame dos itens do baú e tiraram suas próprias conclusões:


Alguns dos objetos encerrados no baú, como os vidros e papéis eram típicos do século XVIII, outros tinham uma idade tão avançada que não foi possível fazer uma presunção. Alguns dos itens esotéricos eram bem conhecidos, tratados de feitiçaria medievais enquanto outros eram enigmas indecifráveis de procedência ignorada. Os ingredientes nos vidros eram derivados de plantas, de animais ou de minerais comuns e raros. De fato, todos eles sugeriam estar ligados a processos biológicos em especial a estimulação da vida e sua preservação.

A poeira dos frascos de chumbo identificados como "Custodes" era fina como grafite e aderia a pele com uma consistência de talco. Sua coloração era azul-acinzentada. A análise laboratorial dessa substância foi inconclusiva.

Já a substância dos frascos marcados como "Materia", mais densa e granulosa, resultou em uma inusitada descoberta: tratava-se de material biológico (ossos, cartilagens e cabelo) pulverizados e misturados com uma série de outros componentes até adquirir uma coloração cinza escura ou marrom-esverdeada. Análises químicas revelaram que ela tinha uma curiosa resistência a dissolução ou destruição. A substância também não reagia a nenhum teste envolvendo ácidos, variação de temperatura ou composição química. As amostras resistiam a qualquer esforço de serem combinadas. Mesmo quando porções de duas ou mais substâncias diferentes eram acrescidas, elas simplesmente se separavam com rapidez a ponto de poder ser observado a olho nu, mantendo assim sua pureza.


A opinião do Departamento de Química é que as poeiras nos vasilhames "Materia", resultavam de pulverização de material humano em um grau de pureza notável. Os frascos, feitos de chumbo eram usados para preservar essa qualidade e evitar qualquer contaminação externa. Um dos frascos, o de número III, possuía um rótulo adicional no qual estava escrito o nome de Ehzra Wheedon (o nome de uma das sepulturas profanadas).

Havia outras revelações fora da esfera acadêmica sobre o caso.

Um dos detetives contratados pela Universidade de Medicina descobriu que um colega de profissão, que por sua vez fora contratado por Willett em 1927, apareceu morto meses antes do desaparecimento de Ward do Sanatório. O corpo do detetive foi achado em um beco, cerca de uma quadra de distância de seu escritório, vítima de um aparente roubo, ainda que seu relógio e carteira não tenham sido subtraídos pelo criminoso. Entre os objetos encontrados com o investigador estava uma cópia da fotografia do misterioso "Dr. Allen", indivíduo cuja identidade não foi determinada e cujo paradeiro permanece desconhecido. É possível que o detetive estivesse procurando informações a respeito de Allen quando foi morto.


Um objeto que chamou muita a atenção no lote recuperado dentro do baú foi uma estatueta com base confeccionada em chumbo. A peça maciça medindo 18 centímetros e pesando 14 quilos apresenta uma estranha forma composta de globos e ramificações tentaculares que se estendem e abraçam a massa dando a ela uma espécie de coesão. Na base que serve de pedestal podem ser vistos curiosos símbolos ou algum tipo de alfabeto de origem desconhecida. Pesquisadores do Departamento de Metafísica Medieval, uma cadeira única da Universidade Miskatonic aventaram a possibilidade da peça ser uma representação de um princípio alquímico que simbolizaria o tempo e o espaço.

Segundo o Departamento de História, as ferramentas de tortura parecem ser objetos autênticos provavelmente usados no período colonial da Nova Inglaterra. O chicote, conhecido como gato de nove caudas era um instrumento de flagelação usada para o castigo corporal. A peça possuía sinais de sangue seco que denotavam seu uso. O instrumento de tortura conhecido como "quebra dedos" também remonta ao período colonial e foi usado em interrogatórios na infame Caça às Bruxas. Além dessas peças, uma faca com gravação de símbolos na lâmina recurva também chamou a atenção dos pesquisadores. As placas de chumbo com inscrições em hebraico e latim, sem dúvida objetos usados em cerimônias alquímicas também foram entregues ao departamento de História e Antropologia para serem analisados.

Após a conclusão das análises dos itens, a família que havia adquirido as peças concordou em doá-los para a Universidade Miskatonic que os aceitou de bom grado. Eles foram movidos para o Depósito da Escola de Medicina onde permaneceram. Em 1971, ocorreu um arrombamento criminoso neste exato depósito. A princípio os investigadores não perceberam a subtração de nenhum objeto que estava guardado no local, apenas seis anos mais tarde um arquivista descobriu que alguns itens que estavam no interior do baú haviam sido levados. Entre os objetos desaparecidos estavam os frascos de chumbo (e seu conteúdo), algumas páginas de papéis, os diários e a estatueta de chumbo. Um inquérito foi instaurado, mas nenhum suspeito foi detido embora duas conhecidas lojas de antiguidades de Arkham tenham sido investigadas como possíveis receptadores.

Há boatos de que a estatueta tenha sido encontrada na posse de Marshall Applewhite, líder da Seita Heaven's Gate que em 1997 comandou um suicídio coletivo de 39 membros de seu culto apocalíptico. Os membros da Seita acreditavam que iriam embarcar em uma nave espacial oculta na cauda do Cometa Hale-Bopp quando este se encontrava em seu brilho máximo. Os rumores nunca foram confirmados a respeito dessa descoberta.

Eventualmente o baú que pertenceu ao Dr. Willett foi esquecido.

Ele permaneceu em um armário trancado no depósito por décadas até ser redescoberto em janeiro de 2018 em um inventário de rotina. Atualmente ele se encontra em exibição no Museu da Escola de Medicina como um exemplo de pesquisa clandestina de alquimia/medicina do século XVIII.