quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Yig, o Pai das Serpentes - Mito da Víbora que Caminha como um homem


"O meio humano Pai das Serpentes... o Deus-Cobra das tribos da planície central - presumivelmente a força principal por de trás do mito de Quetzalcoattl e Kukulcan, ele era um estranho demônio antropomórfico".

H.P. Lovecraft e Zealia Bishop
A Maldição de Yig

A Serpente é uma das representações mais antigas do mal e da perversidade. Os répteis peçonhentos são vistos com um misto de fascínio e de medo primitivo pelas civilizações mais antigas. Algumas religiões ancestrais veneravam serpentes como criaturas místicas, as bestas favoritas de Deuses e Demônios, seus agentes na terra e servos fiéis.

No Universo do Mythos de Cthulhu, a Serpente tem enorme importância, não apenas pela Raça atávica de Homens Serpente que um dia governou a Terra de Valúsia. Essas víboras bípedes deixaram ruínas de basalto em certos lugares ermos do planeta, antes de partirem para as profundezas, em busca de um refúgio onde pudessem hibernar e se proteger dos humanos. Há vários outros seres escamosos entre os antigos, criaturas que sugerem uma herança reptiliana, como os Lloigor, Bokrug e os Servos dos Deuses Exteriores, para citar apenas alguns.

Nenhuma criatura ou entidade do Mythos, no entanto, é tão intimamente ligada aos ofídios quanto Yig, que não por acaso é chamado de Pai das Serpentes.

O Grande Antigo é conhecido em várias partes de nosso planeta, visto como um Deus extremamente enigmático, por vezes, uma deidade sábia e benigna, em outras ocasiões, como um ser perverso, que exerce influência sobre todas cobras e as usa para espalhar a morte, o caos e sua vingança implacável.

O culto de Yig teria surgido originalmente em K'n'yan, no coração de uma mítica sociedade de pré-humanos, que conquistaram tanto a ciência quanto a magia, e que construiu um vasto império nas profundezas da terra, onde hoje se localiza o deserto de Okhlahoma. Os misteriosos k'n'yanni veneravam Yig como sua entidade principal. Construíam em sua honra templos adornados com peles de cobras e altares nos quais deitavam sacrifícios. De lá, o culto se espalhou entre as civilizações antediluvianas de Mu e Valusia na forma de seitas de adoradores de serpentes. Em Mu o culto foi proibido, considerado blasfemo e perigoso pela casta dos sacerdotes, os cultistas foram banidos e seus templos destruídos.

No antigo reino de Valusia, eles encontraram maior aceitação, tornando-se um culto popular entre nobres e aristocratas de alta estirpe. Secretamente, os altos sacerdotes de Yig eram membros do povo-serpente e conspiravam para dominar a Valusia. Quando a conspiração foi revelada, o povo da Valusia se uniu para expulsar o culto e expor os líderes como monstros não humanos. A rebelião terminou com grande derramamento de sangue e com a Seita sendo proscrita. Séculos mais tarde, já quando a Valusia havia se consolidado como uma das nações mais poderosas de seu tempo, o Culto ressurgiu. Mais uma vez tentou ganhar influência entre as castas elevadas. Na ocasião, o mítico Rei bárbaro, Kull de Atlântida enfrentou os cultistas e os derrotou de uma vez por todas.


Cataclismos e desastres naturais acabaram destruindo esse Império, mas o culto de Yig continuou existindo, entranhando-se nas sociedades dos chamados Reinos Hiborianos. Na orgulhosa nação da Stigia, Yig voltou a ser venerado com o nome de Set e entre seus seguidores encontrava-se vários feiticeiros como o legendário Thoth Amon que era um dos seus favoritos.

Mas a Era Hiboriana também passaria por calamidades que decretariam seu ocaso e consequente esquecimento. Yig e seu culto mais uma vez sobreviveriam a essa provação, rastejando para a escuridão tal qual uma víbora. O Culto retornou a America do Norte, onde surgiu originalmente e uma vez mais buscou ali por seguidores. Seus cultistas se fixaram no México onde provavelmente inspiraram os mitos de Quetzalcoatl e Kukulcan. Algumas tribos de nativos americanos nas Grandes Planícies também absorveram o culto que foi carregado para o sul, fixando-se na região amazônica. Yig também pode ter sido a inspiração para cultos africanos que mais tarde dariam origem a crença vodu, carregada para o Caribe por escravos na forma do Dambalah. Há indícios de que o culto também encontrou seu caminho em direção do Sudeste Asiático e Austrália, por algum tempo, instalou-se nas Ilhas Britânicas, para onde foi carregada por refugiados do Povo Serpente.

Alguns teóricos acreditam que os cultistas de Yig estão entre os mais numerosos na atualidade, perdendo em número apenas para Cthulhu e Shub Niggurath, rivalizando com muitas seitas que seguem os Avatares de Nyarlathotep e Hastur.

Diferente de outros Grandes Antigos, Yig por vezes demonstra um grau de surpreendente benevolência para com a humanidade. Quando chega o outono, tribos de nativos americanos promoviam festividades com danças e outras cerimônias criadas para apaziguar a ira do Pai das Serpentes e garantir seus favores. Em troca, Yig garantia o crescimento do milho e promovia as chuvas necessárias para as ricas colheitas. Por outro lado, quando está em desgosto, o Deus enviava suas serpentes para invadir as plantações e envenenar o solo.

Através da história humana, Yig seguiu ganhando e perdendo influência sobre vários povos e civilizações, sem jamais desaparecer por completo. E é provável que ele jamais o faça... Os cultistas acreditam que assim como a serpente troca de pele, eles também passam por mudanças e transformações.


Muitos feiticeiros servem ao Pai da Serpente, recebendo em troca poder e magia, que são ensinados pelo Deus. Não por acaso ele é tido por algumas tradições místicas como um patrono da magia, em especial aqueles feitiços que lidam com pragas e maldições. Rituais envolvendo o nome de Yig tem lugar sempre à noite, em recessos profundos, quando a lua se esconde no céu. Nas cavernas que servem como templos de rocha obsidiana, os cultistas promovem celebrações blasfemas e orgias profanas. Deitam-se em tapetes vivos compostos de sinuosas serpentes, ingerem misturas tóxicas para obter visões e falam a língua secreta e sibilante dos répteis. 

Durante essas celebrações diabólicas, as Crias de Yig, imensas serpentes marcadas com uma lua crescente prateada em sua testa crotálica, são invocadas para representar o Deus. Elas abençoam os ritos com sua presença aterrorizante. As Crias também protegem os templos, consagram rituais e produzem o veneno usado em vários ritos de passagem. Os cultistas consideram essas Serpentes como criaturas sagradas e é proibido a qualquer devoto erguer a mão contra elas. Por vezes, tais seres agem de modo traiçoeiro, investem contra suas próprias fileiras, sobretudo quando os sacrifícios são insuficientes ou quando detectam alguma dúvida no coração dos homens. As Crias de Yig possuem um veneno letal e seu bote, com a rapidez de um raio, mata em poucos segundos. A vítima é então devorada por inteiro e a serpente retorna para a escuridão afim de digerir o ímpio.  

Muito temida é a pérfida Maldição de Yig, um ritual maligno reservado para aqueles que ousaram desafiar o Deus Serpente. Também aqueles que ferem ou matam uma Cria de Yig incorrem nessa grave punição. Através desse malefício, o feiticeiro implora ao Pai das Serpentes por vingança e executa um complexo ritual. Se atendido, a maldição se completa e nos meses seguintes, uma horrenda transformação tem início atingindo a vítima da maldição. Com efeito, gradualmente a pele deste se torna escamosa e fria, seus cabelos caem, seus olhos se tornam vítreos e a língua bífida até adquirir a aparência repulsiva de um réptil. A Maldição prossegue alterando o corpo e dentro de um espaço de alguns anos os membros começam a atrofiar até que pernas e braços fiquem curtos e frágeis, forçando o indivíduo a rastejar pelo chão. Apesar das dramáticas mudanças, a mente preserva sua consciência, prisioneira num corpo abominável, meio homem, meio serpente. Esse infortúnio pode continuar por anos, e sendo ele irreversível, não é de se estranhar que a maioria dos afligidos prefiram abreviar sua pobre existência tomando a própria vida.

Outra variável da Maldição de Yig, atinge mulheres e envolve o nascimento de crianças com horrendas deformidades congênitas cujas características marcantes remontam a serpentes. Tais crianças, quando sobrevivem, após o nascimento acabam se tornando Crias de Yig devotadas a servir seu Mestre e Senhor. 


Dentre os tomos com conhecimento antigo que se referem a Yig, as raríssimas Escrituras de Ssathaat relatam sua história ainda que os textos possam ser mera fábula. Diz o texto, escrito em caracteres sinuosos do alfabeto Aklo, que Yig teria nascido em um mundo obscuro chamado Zandanua, onde seu irmão reptiliano Rokon ainda habita. A chegada de Yig à Terra, milhares de anos atrás, teria motivado a evolução dos répteis e seu desenvolvimento como animais terrestres. O tomo afirma que Yig vive na Cova de Ngoth no interior das Cavernas de Yoth, um dos recessos subterrâneos da Terra de K´n-yan. Compelido a hibernar até o dia em que as estrelas estejam alinhadas no firmamento, Yig desperta de tempos em tempos por curtos períodos; quando invocado pelos seus cultistas ou em datas específicas.

O célebre Necronomicon afirma que Yig e Nyarlathotep são ferrenhos rivais que tendem a se combater através de seus agentes mortais. No Oriente Médio, essa rivalidade deu ensejo a disputas sanguinárias. O mesmo se repetiria séculos mais tarde no México e no Peru, com séquitos que veneravam essas divindades em disputa direta. Finalmente, o lendário Livro de Skellos, uma obra escrita nos tempos Hiborianos, supostamente revelaria detalhes sobre Yig. Mas uma vez que nenhum exemplar desse livro sobreviveu, não há como atestar se isso é verdade ou não.

Yig é descrito como uma abominação aterrorizante, uma entidade que assume a forma de um imenso homem com medonhas características ofídicas. Medindo mais de dois metros e meio de altura, seu corpo lustroso e compacto é coberto por escamas verde-acinzentadas que descem pelo tórax e espalham-se pelos membros. Uma vez que a coloração varia significativamente, é de se supor que ele troque de pele frequentemente assumindo assim diferentes matizes que vão do preto e marrom escuro até o vermelho-acobreado. Por vezes Yig veste um traje ritualístico tecido com a pele humana e carrega em suas mãos um cetro de obsidiana escupido com a face de uma grande serpente com olhos carmesim. Em ocasiões formais, sobre sua cabeça desponta um adorno de jade representando uma medonha víbora em espiral. Esta mítica peça, chamada de Coroa da Serpente, é reconhecida como um artefato de grande poder que concentra vasta energia mística.

O Pai das Serpentes se move com graça e desenvoltura, contudo na maioria das vezes ele simplesmente desliza sobre um tapete de serpentes vivas, evitando assim tocar o chão com os seus pés. As serpentes que o acompanham o defendem e atendem todas as suas necessidades prementes como se fossem uma extensão do seu corpo. 

A face de Yig é descrita como um pesadelo amalgamado de homem e serpente. O perfil grotesco causa asco nos mais sensíveis e provoca reações inesperadas de medo que muitas vezes deflagram uma severa herpetofobia (o medo incontrolável de ofídios). Alguns afirmam que se trata do temor primordial da presa diante do predador. Escamas recobrem o rosto que possui olhos vítreos que jamais piscam e uma boca larga que se estende de lado a lado, arquejada em um tipo de sorriso sardônico e malicioso. A musculatura da mandíbula é capaz de se distender de tal maneira que um homem adulto pode ser engolido por inteiro. Uma longa língua negra e bífida dardeja entre presas aguçadas que vertem um veneno amarelado. O pai das cobras exala um cheiro característico de óleo de cobra que o acompanha onde quer que ele vá e se mantém suspenso no ar por horas após sua partida. Mesmo destituído de nariz e orelhas, ele possui sentidos aguçados e é capaz de captar movimentos e se manter alerta a tudo que ocorre ao seu redor.


As estátuas do Pai das Serpentes que são encontradas nos templos não fazem jus a experiência majestosa que é encontrar o Deus pessoalmente. Yig é capaz de se comunicar em todos os idiomas conhecidos pela humanidade, mesmo aqueles que não são falados há milênios, o timbre de sua voz é sibilante e hipnótico. Aqueles que ouvem as suas palavras sentem um relaxamento no corpo e um terror paralisante que os impede de falar e se mover até que Ele decida romper o transe e permitir que mortais responsam.    

É provável que Yig tenha diversos avatares, sempre obedecendo o princípio de serem entidades  com características serpentinas. Um desses supostos avatares teria um longo corpo reptiliano, com o abdômen superior e cabeça de uma mulher com longos cabelos verdes que pendem como serpentes vivas. Alguns teóricos cogitam que esse avatar tenha dado origem ao mito das Górgonas gregas. Outro avatar conjecturado envolve a forma de um imenso dragão como os das lendas orientais, uma fera reptante sinuosa e com muitos metros de comprimento. Essa forma segundo o folclore japonês seria o filho de Mappo no Ryûjin. Na América do Sul, o M'Boitata a temida serpente gigante presente no folclore das tribos tupi-guarani também é um de seus avatares. É provável que a lendária entidade nórdica conhecida como a Serpente de Midgard também esteja de alguma forma associada a Yig e sua mitologia específica.

Reverenciado, aplacado e igualmente temido, Yig é um dos poucos Grandes Antigos que possui uma estreita relação para com a humanidade. Seja para obter sacrifício ou adoração, Yig sempre esteve intimamente associado com a espécie humana e é provável que irá preservar esse vínculo até o fim dos tempos.

A respeito de Yig:

Yig, o Pai das Serpentes é uma divindade criada por H.P. Lovecraft e parte do Mythos de Cthulhu. Sua primeira aparição se deu no conto "A Maldição de Yig", que foi concebida por Zealia Bishop e quase que completamente reescrita por Lovecraft. Nessa história ele é descrito como "uma forma humana, a não ser se você o olhar de perto". De acordo com Lovecraft, uma das principais características de Yig é sua devoção pelos répteis, em especial as serpentes - suas "crianças". Ele costuma punir aqueles que ferem os répteis com maldições aterrorizantes.

Na história de Lovecraft, algumas tribos de nativos americanos consideram Yig como "um nome maligno". Contudo algumas tradições o tem na mais alta conta, considerando-o uma das divindades mais antigas e poderosas. que pode ser a origem de inúmeras religiões baseadas em deuses serpentinos. Alguns autore so identificam como o deus serpente da Stigia, Set, presente nas histórias de Robert E. Howard envolvendo Conan, o Bárbaro e o Rei Kull.

6 comentários:

  1. Pra mim parece uma entidade benevolente , principalmente para os nativos Americanos, eu sei que a página não é sobre História ou Antropologia, mas mostrar Yg como uma abominação aterrorizante, é mais ou menos como religiões Monoteístas como Cristianismo Demonizam as religiões nativas Americanas durante a Conquista das Américas, Yg foi muito mais benevolente que os Europeus que trouxeram escravidão e doença , me faz pensar quem realmente é o mal ?, os Grandes Antigos ou a Humanidade.

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  2. Excelente texto!
    Descobri a pouco tempo o universo de Lovecraft e achei sensacional. Você poderia me recomendar alguma obra que se refira ao continente de Mu, Valusia ou aqueles antes do diluvio? Acho este um assunto interessante.
    Obrigado!

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  3. Opa Renato Campos:

    Na minha opinião, Yig não é "bondoso". Talvez ele possa ser considerado "menos maligno" que outras divindades, mas o que o Pai das Serpentes deseja é ser cultuado, honrado, saciado com rituais e sacrifícios. Ele quer algo em troca de seu provimento, e quando esse algo não vem, ele não tem escrúpulos em tomar à força e fazer valer seu poder. Eu duvido um bocado de religiões que envolvem arbitrariedade, autoritarismo, perseguição e sacrifícios impostos... essas coisas são uma receita para o desastre seja quanto a Yig, seja quanto às religiões pré-colombianas, seja quanto aos europeus que conquistaram a América na base da Cruz e Espada.

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  4. Thomáz:

    Tem algumas postagens aqui n blog a respeito de Mu e continentes perdidos.

    Olha esses dois aqui:

    http://mundotentacular.blogspot.com/2014/08/continentes-miticos-mu-lemuria-e.html

    http://mundotentacular.blogspot.com/2011/07/atlantida-dos-mythos-de-cthulhu.html

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  5. Nossa, sensacional, Kull lutou contra eles e Conan os temia, adoro esses contos que envolvem a era hiboriana

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