quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Necromancia - A mais macabra das Ciências Ocultas


Há milênios, humanos demonstram uma verdade obsessão com a ideia da morte: como adiar a sua chegada, como se preparar para o que vem depois, como entender o nosso destino… e, é claro, como retornar de lá. 

Necromancia é a prática de comunicação com aqueles que habitam o além, que ultrapassaram a fronteira da vida e penetraram nos domínios da morte e que possuem um conhecimento único de algo que transcende nosso saber terreno. Ele é o saber da tumba, compartilhado pelos espíritos e fantasmas que tem sido estudado, testado e ensinado ao longo da história humana.

Robert Masello, um jornalista premiado e autor, conta a história da Necromancia em seu livro "Erguendo o Inferno: Uma História Concisa das Artes Negras e das Pessoas que ousavam praticá-la" (Raising Hell: A Concise History of the Black Arts and Those Who Dared to Practice Them). Nele, o autor deixa claro que os indivíduos adeptos desta modalidade da feitiçaria fazem bem mais do que procurar cadávres e entoar palavras mágicas, embora tal coisa também aconteça.

Necromantes reais possuem um código de conduta muito severo que lhes impõe uma série de limitações. Por exemplo, eles devem se restringir de consumir sal ou carne, também não devem se render aos prazeres mundanos e promover um estilo de vida celibatário. Necromantes não vestem roupas claras, mas não são obrigados a trajar preto como muitos pensam. Uma vez que suas atividades são basicamente noturnas, muitos deles escolhem trocar o dia pela noite, horário em que suas atividades são mais propícias.

Na Espanha Medieval, pré-reconquista, o estudo da Necromancia atingiu o seu ápice como uma disciplina ensinada por professores e aprendida por alunos. As salas de aula eram construídas em catacumbas de cemitério ou no anexo de mausoléus onde os estudantes podiam ter acesso ao material de seu estudo e com ele se familiarizar: a morte. Há indícios de que célebres universidades espanholas, como a famosa Salamanca, possuíam Cursos de Necromancia, embora estes não fossem abertos a qualquer pessoa interessada. Havia uma rede de informantes dentro de disciplinas como filosofia, medicina e mesmo teologia, que descobria possíveis interessados e os convidava para atender a esse curso. Nele, os adeptos aprendiam noções de anatomia, alquimia e ocultismo, e mais importante, os fundamentos das artes negras.


É curioso, mas a necromancia sempre considerou a si mesma a mais neutra das ciências ocultas. Ela não se inclinava para o bem ou para o mal, visto que seu foco se referia a todos, sem distinção de alinhamento social. A morte chegava a todos, era um visitante inevitável para o Rei ou para o servo, para o nobre e o plebeu, para o rico e para o pobre. Necromantes consideravam a si mesmos uma espécie de canal através do qual, os segredos poderiam ser compartilhados e desvendados. Ainda que certos rituais pudessem parecer sinistros e suas atividades soassem macabras, os verdadeiros necromantes não eram praticantes de sacrifícios ou de atrocidades.    

Não obstante, a prática foi transformada em uma anátema da fé cristã. A Necromancia passou a ser intimamente associada ao satanismo e como tal, perseguida pelos inquisidores. A morte era um território exclusivo para a cristandade e o envolvimento com seu saber se tornou reprovável. Mas isso não significa que a prática desapareceu nos séculos seguintes. De fato, ela continuou entranhada nas sociedades despertando o mesmo interesse e fascínio que sempre teve.

Um dos princípios da Necromancia clássica é que os rituais são extremamente complexos e demandam enormes preparativos. Outro princípio é que os segredos do além não são entregues gratuitamente e o envolvido em sua exploração, por vezes, tende a se expor a riscos. Fantasmas e espíritos, na maioria das vezes, não se mostram cooperativos e não ficam satisfeitos ao serem invocados.

Por que então incomodá-los?

Segundo a tradição da necromancia, existem várias razões para ingressar no estudo dessa arte, alguns mais puros do que outros.


Espíritos conjurados, são por vezes invocados por afeição, o feiticeiro sente falta de um ente querido ou age como uma ponte para aliviar o sofrimento e preocupação de alguma pessoa em profundo luto. Algumas vezes, os espíritos são assim invocados para confortar os vivos e reduzir seu lamento.

Outras vezes, os espíritos são invocados por serem eles, uma fonte de conhecimento secreto. Um adágio da arte diz que "mesmo o fantasma menos informado sabe mais a respeito do além que a maioria dos necromantes". Além disso, eles conhecem todos segredos que carrearam consigo para o outro lado - a localização de tesouros, o nome de assassinos e criminosos, segredos que não podiam ser divulgados em vida, que após a morte finalmente podem vir à tona. Um necromante não sabe apenas como se comunicar com os mortos, mas aprende a persuadir os espíritos, por vezes através de agrados e promessas, em outros casos, por intermédio de coação e intimidação.

De acordo com o folclore, os espíritos podem ser acessados perto de seu descanso final por cerca de um ano após sua morte. Não é por acaso que necromantes eram famosos por rondar cemitérios e saber quando cada pessoa morreu. Nesse período, a invocação do morto se tornava mais fácil, uma vez que ele ainda não entendia sua condição de desencarnado. Com o passar do tempo, se tornava mais difícil, em alguns casos, impossível alcançar o falecido o que podia demandar um longo ritual.

Esses rituais tinham requisitos e careciam de total seriedade e comprometimento por parte do necromante. Antes de sua realização, o necromante fazia uma série de preparativos para se limpar espiritualmente: jejuava e evitava certos tipos de comida, não bebia nada fermentado, se eximia de sexo e da companhia de entes queridos, além de que, passava parte de seu tempo em meditação. Também era comum um preparativo que envolvia lavar o corpo em frequentes abluções purificadoras no mesmo horário e seguindo o mesmo ritual. Não apenas a parte exterior era foco de sua atenção, mas por dentro também. Por isso, consumiam ervas purgativas que induziam ao vômito e diarreia. A ideia é que quanto mais limpo estivesse o organismo, melhor.

O período compreendido pela maioria dos estudiosos do assunto envolve um tempo de preparação de no mínimo nove dias. Nesse período simbólico de vazio, eles tentam se harmonizar com o mundo que planejam explorar. Todos esses preparativos visam criar uma espécie de elo complacente entre o necromante e as almas daqueles que ele espera conjurar.


Os rituais deviam também obedecer a várias diretrizes. Primeiro o lugar escolhido é de extrema importância para a realização do ritual mágico. Os locais mais favoráveis para estabelecer contato com os mortos são câmaras subterrâneas, catacumbas de cemitérios, mausoléus e outros lugares em que a morte esteja próxima. Encruzilhadas também são considerados como lugares propícios, talvez pela crença de que elas funcionavam como um eixo para o trânsito dos vivos, e também dos mortos. Uma representação terrena de que os caminhos se cruzam e convergem. Além destes lugares consagrados segundo a crença, outros cenários podem ser ruínas, casas abandonadas, igrejas fechadas, monastérios e cavernas isoladas. O ideal é que o realizador tivesse paz e quietude, que não fosse interrompido após iniciada a sua exploração e que nada pudesse desviar sua atenção. 

Assim como fazia com seu corpo, preparando-o para a cerimônia, o local escolhida deveria passar por uma purificação. Velas negras e incensos almiscarados podiam ser queimados para abrir os caminhos através do uso de fragrâncias e substâncias específicas como losna, cicuta, açafrão, aloés, sândalo, mandrágora e ópio. Alguns acreditavam que um pequeno sacrifício é necessário, por isso ofereciam pombos ou coelhos que eram cerimonialmente mortos por decapitação. Outros sacrifícios podiam ser o sangue do realizador coletado em um cálice, bem como sua urina, o sangue menstrual de virgens ou bile. Uma coroa de louros, terra de cemitério, a crina de um cavalo, as penas de corvos e uma infinidade de outras coisas dependendo da crença do realizador também poderiam fazer parte do preparativo.  

A imagem que se faz dos necromantes condiz com o figurino adotado por eles quando praticam seus rituais. Ao contrário das bruxas e dos feiticeiros pagãos, o necromante raramente conduz seus rituais nu. O manto negro de tecido rústico dotado de capuz é a vestimenta mais propícia para seus rituais. Mas apenas ele é usado, o necromante não veste nada além desse traje simples. Por vezes próximo ao local ele deixa uma adaga, seus livros, velas e qualquer amuleto que ele tenha consagrado e que possa lhe ser útil.

O melhor momento para se realizar o contato com o mundo dos mortos, como é de se esperar, é entre a meia-noite e uma da manhã. Se a lua estiver cheia e cilhante, as condições se mostram ideais. A chuva torrencial ou o granizo, além de outras manifestações da natureza, como raios, também oferecem portentos. Existe a crença de que tempestades podem ajudar no contato com o além uma vez que eles causariam um tipo de ruptura nos tecidos que separam os mundos.

Dentre os rituais mais importantes dentro da Necromancia, nenhum é mais conhecido que a comunicação com os mortos.


Para realizar tal façanha, o Necromante e seus associados precisam cumprir uma última formalidade: eles precisam do cadáver da pessoa que desejam invocar. E é nisso que talvez resida a parte mais mórbida de seu ofício e a que concede a esta atividade o caráter mais medonho, já que Necromantes são em essência ladrões de sepultura.

Segundo os preceitos, o corpo deve ser removido de seu lugar de descanso durante a madrugada. Um círculo de proteção é desenhado ao redor da sepultura que será escavada. Após a exumação do ataúde, este é aberto e o corpo removido com um cuidado que beira a reverência. No passado ele era envolto por um saco de tecido escuro para ser mais facilmente carregado até o local escolhido para hospedar o ritual.   

O cadáver é posicionado sobre uma superfície semelhante a um altar (que pode ser de madeira ou pedra) e no qual são desenhados símbolos de proteção para afugentar maus espíritos. Tochas queimam ervas e substâncias que acrescentam ao ambiente um elemento odorífero particular. A posição do cadáver é importante segundo as convenções, sua cabeça deve estar voltada para o oriente (na direção do nascer do sol) e suas pernas devem ser dispostas com a direita sobre a esquerda. Próximo da mão direita, o necromante coloca um pequeno prato ou bacia, onde deve queimar uma mistura de vinho, betume e óleo essencial. O corpo deve ser tocado três vezes com uma vara de visco, enquanto o necromante repete palavras de seu Grimório repetindo então o nome do morto. Em uma pequena variação, se o morto cometeu suicídio, este deve ser tocado com a vara nove vezes, invocando outros nomes para que o cadáver seja liberado dos sofrimentos a ele impostos.

Ao fim, o necromante diz algo como "através de minha arte, eu te ordeno (filano de tal) que se manifeste e responda as perguntas que eu lhe dirigir".

Se tudo tiver sido realizado corretamente, o espírito será invocado e retornará ao seu velho corpo. Com um tom de voz pesaroso e sepulcral, o falecido irá responder todas as perguntas que o necromante fizer - o que existe além do mundo das lágrimas, que demônios estão lhe afligindo, onde um tesouro se encontra, qualquer coisa. Quando o interrogatório termina, o feiticeiro recompensa o espírito pela sua cooperação assegurando que ele não será perturbado no futuro. Os restos são queimados ou enterrados para que não sejam perturbados novamente. A destruição do corpo é uma maneira de impedir que ele seja sujeito novamente a ocupar seus restos.


Um famoso necromante da antiguidade, Sextus, filho de Pompeu, o Grande, teria aprendido o ritual com uma bruxa. Ele desejava saber como havia transcorrido uma determinada batalha em que seu pai estava envolvido durante a campanha para conquistar Roma. Ele teria ordenado a exumação de um soldado próximo de seu pai que havia morrido na batalha, mas o resultado do ritual obteve apenas respostas confusas. De acordo com Lucano, que relatou a história em sua obra Farsália, Sextus ficou enojado pelas descrições da batalha feitas pelo cadáver. 

Ele teria então buscado o aconselhamento de uma bruxa chamada Erichto.

Essa bruxa seria uma criatura assustadora, que tinha fama de não apenas se comunicar com os mortos, mas usá-los como seus guardiões e escravos. Para facilitar sa comunicação com os mortos, ela vivia em um cemitério, dormindo em uma tumba, cercada de ossos e relíquias funerárias. Quando Sextus pediu a ela que invocasse os mortos para que eles revelassem os augúrios, ela explicou que primeiro era necessário trazer diante dela um cadáver fresco.

Por sorte, havia ali perto um campo de batalha, e depois de buscarem por uma sepultura recente encontraram o cadáver de um soldado que havia acabado de ser enterrado. Erichto examinou o cadáver e aprovou seu uso, uma vez que nem bem havia esfriado. Ele não havia sido ferido na boca, nem nos pulmões ou na garganta, então não haveria problemas de responder às suas questões.

A gruta usada por Erichto era consagrada em nome dos deuses do submundo. Erichto havia preparado um nauseante cozido com a carne de hienas que por sua vez haviam devorado a carne de homens mortos, a pele de cobras, a espuma da boca de cães ferozes, e todo tipo de erva daninha de odor repulsivo. Quando a horrível mistura entrou em ebulição, a bruxa ordenou que Sextus fizesse um corte no peito do cadáver, exatamente acima de seu coração, para que ali fosse inserido uma cânula. O líquido foi então derramado para que se tornasse uma espécie de substituto de seu sangue.

Erichto começou então a proferir encantamentos, chamando por Hermes, para que guiasse o morto, e Caronte, que transporta as almas através das águas escuras do Rio Styx. Ela apelou a Hecate e Proserpina, a Rainha do Submundo, e a Caos, o senhor obscuro cujo objetivo é espalhar a destruição e a discórdia entre os homens. Ela lembrou a todos eles que sempre foi fiel discípula deles e que havia repetido os seus nomes em altares. Enquanto tais nomes eram proferidos, uma tempestade irrompeu, com raios e trovões. Sextus ouvia à distância o uivo de lobos e das serpentes sibilando.


Gradualmente Sextus percebeu uma forma transparente surgir flutuando sobre o cadáver do soldado. Erichto ordenou que o espírito entrasse no corpo desmazelado, mas ele se negou; ela ordenou mais uma vez ameaçando condená-lo ao submundo e aos seus tormentos. Mas o espírito novamente disse que não faria conforme ela ordenava. A bruxa então tentou uma nova abordagem: se o espírito fizesse conforme ela dizia, ela prometeu que destruiria seu corpo e dessa maneira não seria possível invocá-lo novamente por aquele horrível ritual. 

O cadáver acabou concordando; e reentrou em seu corpo. O sangue voltou a circular em suas veias e seu corpo decrépito se ergueu de maneira solene do altar. Com palavras carregadas de maus agouros, ele se voltou para Sextus quando este perguntou qual seria o destino da Campanha Militar que seu pai havia iniciado. "A Batalha será perdida: teu pai, teus parentes e você mesmo, não viverão para ver a próxima estação do ano. Tua campanha está fadada a ruína. Logo tua carne irá apodrecer em uma tumba e nada restará de ti além de ossos. Isso é o que te aguarda".

Diante da resposta decepcionante, Sextus dispensou o espírito. Ele e Erichto mantiveram sua promessa, montaram uma pira funerária e incineraram o cadáver. Conta a história que Sextus tentou convencer o pai do que havia acontecido, mas que Pompeu não desistiu de seu plano de reinar sobre o Império romano. Plano este que foi frustrado e resultou na sua morte. Fiel ao pai, Sextus ficou ao seu lado até o fim. Ele também não viveu para ver a estação seguinte.

Verdadeira, falsa, mero charlatanismo ou superstição, a Necromancia persiste como parte indissociável do mundo oculto e uma das tradições mais misteriosas, dividindo opiniões há séculos.

Um comentário:

  1. wannabe escritora de passagem: este é um dos blogs mais inspiradores que conheço =)
    E olha que não escrevo terror X)

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