quarta-feira, 24 de abril de 2019

A Espada Perdida - Descoberta de uma arma que revela uma sangrenta história


Parecia um final de semana como qualquer outro, mas nele se revelou um incrível achado arqueológico.

O Comerciante Weverton Martson, estava tomando banho no Rio Cricaré, na localidade de Meleiras, no estado do Espírito Santo quando sentiu ter pisado em algo que ficou enroscado em seus pés. Ele imediatamente mergulhou para ver de que se tratava, acreditando ser um galho ou raiz, mas era outra coisa. O objeto estava enterrado na areia e era pesado, ao apanhá-lo demorou para soltar do leito. Quando voltou à superfície foi impossível conter a surpresa: era uma espada!

A arma tinha a lâmina envergada, mas parecia óbvio para qualquer observador que se tratava de uma peça autêntica, não uma mera imitação. Apesar da longa exposição a água e elementos, a arma se encontrava em condições satisfatórias, considerando sua idade. Tudo indicava se tratar de uma peça pertencente a algum nobre, o único que poderia possuir uma arma de acabamento superior. Ademais, ela tinha detalhes na empunhadura na forma de uma águia de duas cabeças (bicéfala), um indicativo que pode remeter a uma família importante.

O local onde a espada foi recuperada, o Rio Cricaré, foi o palco de um dos capítulos mais sangrentos do período histórico colonial do Espírito Santo. Como boa parte de nossa história colonial, está envolto por uma cortina de desconhecimento. Foi ali, naquele mesmo local que ocorreu a célebre Batalha de Cricaré, um dos primeiros enfrentamentos em larga escala ocorridos entre portugueses e índios que resultou em uma mortandade até então jamais vista entre os dois povos.

Especialistas há anos tentam precisar a exata localização do enfrentamento. Sempre existiu a suposição de que a batalha tivesse ocorrido no Rio São Mateus, mas não havia certeza a respeito. A descoberta da espada pode provar de uma vez por todas que a Batalha teve lugar naquelas margens no distante ano de 1558. Faz algumas décadas, uma machadinha também havia sido encontrada nas proximidades, contudo uma análise demonstrou que ela era mais recente do que a Batalha e que provavelmente era uma peça do século XIX. A espada, por outro lado, parece remeter a um estilo de metalurgia empregado tipicamente na Europa do século XVI. A forja de tais armas de qualidade era realizada na Península Ibérica, em especial na Cidade de Toledo, na Espanha, centro exportador de armas de qualidade, muito apreciadas por famílias nobres. 

Ainda é cedo para dizer se a espada em questão pertenceu a algum nobre do período, mas os detalhes na empunhadura e algumas decorações no cabo podem fornecer pistas a respeito de quem foi seu dono.

A Batalha de Cricaré foi travada em 1558 e ficou conhecida como uma das mais sangrentas do período. Segundo observadores do período e historiadores que se debruçam sobre o acontecimento, mais de 5 mil nativos podem ter morrido nessa batalha, um número extremamente elevado e que teria marcado o primeiro conflito em larga escala colônia recém descoberta. Historiadores acreditavam que a Batalha tivesse ocorrido na confluência do Rio Cricaré e Mariricu, atualmente município de São Mateus, mas nunca houve comprovação.

A região já havia sido parcialmente explorada, mas a colonização se iniciou a partir de 1555, comandada pelo Donatário de Terra, Vasco Fernades Coutinho que se estabeleceu na Capitania do Espírito Santo acompanhado no início por cerca de 60 homens. A pequena Vila de São Mateus se fixou no litoral, mas seus habitantes planejavam adentrar a porção interior das terras. Desde o início, eles encontraram forte resistência das tribos que já habitavam a região. Os Aimorés eram conhecidos como uma tribo agressiva, composta de bravos guerreiros que dominavam o uso mortal do arco e flecha e da zarabatana, embebendo suas setas com veneno de sapo e outras toxinas extraídas da natureza. Além disso, conheciam bem o território e manejavam com habilidade lanças e bordunas. Mais de uma expedição ao interior havia terminado em morte, com os colonos atacados, escapando por pouco, isso quando não caíam diante dos atacantes em maior número. Um dos grandes temores dos colonos era justamente a fama de que os aimorés eram antropófagos e que os cadáveres de seus companheiros quando não eram recuperados, acabavam servindo de refeição para os nativos. A colônia apenas não havia sido conquistada pelos nativos por conta de canhões que faziam a proteção do pequeno assentamento, que contava ainda com uma paliçada. Contudo, os nativos estavam chegando cada vez mais perto e seria questão de tempo até perderem seu receio diante da artilharia portuguesa.


Com as terras capixabas sendo sabidamente férteis e a fixação de engenhos se mostrando uma perspectiva rentável para a Coroa, Vasco Fernandes Coutinho escreveu ao Governador Geral Mem de Sá em Salvador, pedindo ajuda. A produção de Cana de Açúcar estava ameaçada já que os nativos haviam arruinado vários engenhos construídos com enorme dificuldade. É claro, o donatário deixava de citar que os ataques eram uma reação à captura de índios que serviam de escravos, roubos, ataques a aldeias, estupro e rapto de índias que passaram a servir de companheiras para os colonos.

Mem de Sá, que havia acabado de ser empossado, desejava mostrar força e despachou para a Capitania do Espírito Santo uma guarnição de homens liderados pelo seu filho Fernão de Sá. A tropa viajou à bordo da Galé São Simão, um dos melhores barcos da frota colonial, munido com canhões de calibre 3 (chamados falcões). A expedição aportou primeiro em Porto Seguro onde recebeu reforço de capitães veteranos no enfrentamento de indígenas. Juntaram-se seis outros navios que levavam um contingente de 200 homens, além de armas de fogo, pólvora, espadas, lanças e armaduras.

Os portugueses suspeitavam que os nativos tivessem aldeias no interior (as mereriques que eram defendidas mutuamente) e que as tribos estavam se unindo para enfrenar os colonos, uma suspeita que se mostrou verdadeira. Expedições anteriores haviam mapeado vias fluviais que podiam ser usadas para desembarcar as embarcações, diminuindo o tempo do deslocamento terrestre. O grupo avançou pela Barra de São Mateus, seguindo por quatro dias contra a correnteza impulsionada pela força dos remos. No quarto dia rio acima, uma fortificação indígena foi avistada pelos observadores à bordo. Decidiram aguardar o amanhecer em uma posição privilegiada para então promover o ataque.

Quando o sol despontou, quatro galeras avançaram transportando a primeira força de ataque, contudo, os nativos perceberam sua presença e se organizaram para esperá-los. Assim que os primeiros homens pisaram na praia enlameada foram saudados por uma chuva de flechas que os atingiu com precisão letal. Nenhum conseguiu avançar mais do que alguns metros e os feridos acabaram crivados de flechas. O desembarque não foi uma perda total apenas porque de dentro dos navios a artilharia começou a disparar com canhões dando cobertura aos homens que desesperados se refugiavam atrás de troncos. Reagrupando para o segundo desembarque, os portugueses trouxeram escudos e grandes pedaços de madeira para se proteger da chuva mortal. Na praia, os corpos de seus companheiros já se encontravam inchados pelo veneno das setas e muitos agonizavam.


Quando um número suficiente de homens se concentrou na praia, receberam ordens de avançar e convergiram para a aldeia que se encontrava logo adiante. Com disparos de arcabuzes e cobertura de canhões, os nativos retrocederam, mas ainda assim receberam os invasores com nova saraivada de setas. Contudo, os tiros afastaram os guerreiros e estes não conseguiram conter o avanço que era reforçado por novas levas de homens desembarcando na praia. O combate se tornou corpo-a-corpo, com os soldados levando vantagem graças às armaduras e ao uso de machados e espadas de excelente qualidade.

Os nativos percebendo que não conseguiriam conter a invasão, trataram de fugir levando mulheres e crianças para uma aldeia não muito distante. Lá planejavam recompor a defesa para conter os atacantes. Contudo, os portugueses foram rápidos em seguir os rastros deixados na floresta e empreenderam perseguição imediatamente. Os nativos não tiveram tempo de se reagrupar, e acabaram pegos de surpresa. Essa segunda aldeia era grande e próspera, com várias habitações e uma população maior, contudo, surpreendidos, os guerreiros tiveram pouco tempo de montar uma defesa.

Os padres que faziam o registro da ação militar não pouparam elogios à "presteza" e "galhardia" com que os soldados lutaram. Os tiros provocaram pânico entre os nativos e muitos com famílias ali vivendo se colocaram em fuga. Os que resistiram não conseguiram fazer frente a investida. Para piorar as coisas, várias ocas de palha foram incendiadas causando uma debandada em massa. Aos invasores cabia apenas ceifar o maior número de vidas com suas armas superiores, derrubando tantos inimigos quanto era possível. De uma distância segura, onde se estabeleceram, os portugueses se contentavam em disparar nos nativos em fuga, sem se importar que fizessem alvo contra mulheres, velhos e crianças. A aldeia enquanto isso já queimava e os últimos homens escapavam para a mata carregando o que podiam, atrás deles, apenas o rumor dos moribundos.

Entretanto, a facilidade com que encontraram a vitória nesse primeiro momento, custaria caro aos portugueses. Os homens, inebriados pelo sangue e pelo calor da batalha continuaram ali atirando e matando. Alguns se aproximaram da aldeia para capturar prisioneiros, recolher tesouros ou estuprar mulheres que tiveram o azar de ficar para trás. O número de mortos é difícil de ser estimado, mas é provável que tenha chegado à casa dos milhares. Os invasores não se aperceberam de que haviam entrado muito no território inimigo e que poderiam haver outras aldeias próximas, os homens se entregaram a sanha assassina e desejo de vingança sem pensar no que poderia acontecer.


Enquanto a maioria do contingente se satisfazia com pilhagem e destruição desenfreada, Fernão de Sá e mais alguns homens, continuaram seguindo a trilha, atrás dos fugitivos. Avistaram poucas léguas adiante uma terceira aldeia não tão grande e nem tão protegida quanto a anterior. Essa poderia ser facilmente conquistada pela guarnição, mas com número reduzido de homens, Fernão não podia fazer muito. Ele ordenou que disparassem contra a aldeia e então bateu em retirada para se reagrupar.

Contudo, sem que os invasores soubesse, havia ainda uma quarta aldeia, onde os guerreiros já haviam sido alertados do ataque pelo som dos canhões. Lá eles se preparavam para o contra-ataque. Ao mesmo tempo, as naus que aguardavam no local de desembarque perceberam que a maré estava baixando rapidamente. Se permanecessem ali acabariam encalhando no leito lamacento. Com o temor de ficarem presos naquela posição, os comandantes decidiram se afastar em busca de águas mais profundas.

Quando Fernão enfim retornou a segunda aldeia encontrou uma paisagem infernal. Havia corpos para todos os lados, as habitações de palha ardiam e o fedor de corpos queimados, fumaça e pólvora empesteava o ar. O massacre já estava consumado! Apesar da vitória esmagadora e da comemoração dos homens, o comandante da campanha imediatamente ficou preocupado - e com razão! Os soldados haviam reduzido perigosamente seu estoque de munição e pólvora, portanto era preciso retornar o quanto antes para a praia.

Mas antes que pudessem iniciar o recuo, flechas voaram da floresta atingindo em cheio os soldados. Eram os Aimorés que haviam se organizado e vinham em grande número!


A fuga pela mata foi desesperada e atrapalhada pela densa fumaça que se formou. Alguns homens se perderam e acabaram indo na direção errada, que os levou justamente para seus perseguidores. Sem a vantagem de armas de fogo para manter os inimigos à distância, os portugueses foram presas fáceis para os guerreiros em número muito maior. Os nativos caíram sobre a tropa com uma fúria avassaladora, armados com porretes e bordunas seguiram o percurso inteiro apanhando e massacrando aqueles em quem conseguiam por as mãos.

Mas o pior esperava os portugueses na praia. Ao chegar na foz do Rio Cricaré, não encontraram as embarcações que deveriam estar lá. As naus haviam se retirado cerca de 400 metros mar adentro. Desesperados, os sobreviventes se puseram a gritar e pedir socorro, mas os índios estavam bem mais próximos. Ali, na areia lamacenta se deu o final da batalha, que estava mais para um massacre de vingança! Os portugueses foram chacinados por incontáveis flechas e os poucos que ainda se arrastavam na areia foram degolados e massacrados. Os gritos podiam ser ouvidos à distância, pelos marinheiros nas embarcações, mas estes nada podiam fazer visto que não havia alcance para os canhões.

Fernão de Sá e seus capitães foram mortos nessa batalha e os rumores davam conta de que ele teria sido o último a tombar, defendendo-se com espada em riste apesar de flechas estarem fincadas em seu corpo. Provavelmente uma liberdade poética dos cronistas. Os únicos sobreviventes foram três homens que se despiram das armaduras, jogaram armas de lado e nadaram até as embarcações. E ao chegar caíram extenuados no tombadilho, agradecendo a sorte que tiveram.

Os capitães da frota comandada por Diogo Amorim discutiram se deveriam voltar para a Praia em busca de sobreviventes que ainda pudessem estar lá. Concluíram que as fogueiras vistas no horizonte deveriam pertencer aos nativos saciando seus apetites canibais e se resignaram. Melhor seria voltar para Vitória com as notícias do enfrentamento. 


Em Vitória a notícia do revés foi levada para os demais assentamentos da colônia. Na Europa a notícia foi recebida com consternação - que "terra impiedosa era aquela onde cristãos eram massacrados e devorados por selvagens?" 

Mem de Sá, o Governador Geral lamentou não apenas a derrota da maior armada reunida até então na colônia e que para muitos era imbatível, seu pesar incluía a morte do filho, Fernão. Nos anos que se seguiram, os portugueses planejaram cuidadosamente novas expedições que promoveram ataques na região e por fim terminaram por vencer a resistência dos Aimorés. Um dos planos de Mem de Sá era fundar uma cidade de proteção e defesa no litoral, e salvaguardar o território conquistado à duras penas. Entretanto a fundação da Cidade do Rio de Janeiro drenou os recursos da colônia e impediu que a Capitania do Espírito Santo ganhasse uma cidade maior.


É provável que a espada encontrada no fundo do Rio Cricaré tenha pertencido a um dos portugueses, talvez até mesmo a um dos comandantes da expedição. Talvez seu aço tenha sido usado para cortar e estocar guerreiros Aimorés ou então para matar inocentes. É possível que ela estivesse nas mãos de um soldado que pereceu com bravura, ou ainda que ela tenha sido simplesmente descartada no rio, quando seu dono correu para o mar fugindo em desespero. Bravura e covardia, honra e abuso são faces de uma mesma moeda sangrenta trocada nos campos de batalha. Não há como saber quem foi que brandiu essa arma e o que produziu com ela - se sangue ou glória, se triunfo ou vergonha.

A história pode determinar se a espada realmente esteve ou não na Batalha de Cricaré, mas a verdade sobre quem a manejava, esta se perdeu em meio ao caos e horror de um campo de batalha e nas páginas da história.

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