terça-feira, 18 de junho de 2019

Itaqua - O Mito do Andarilho do Vento, Deus do Inverno e do Norte gelado


O frio sempre foi considerado um flagelo da humanidade.

Ele está associado a fome, a doença e a morte. Desde o início dos tempos, a raça humana está sujeita ao clima e suas oscilações, elas causaram incontáveis infortúnios para os homens. Seja na forma de colheitas e plantações sendo devastadas, na fome que se segue a essas tragédias e obviamente no seu toque gélido. O frio tem sido um companheiro cruel em nossa longa caminhada.

No universo dos Mythos Ancestrais, existe uma divindade que reúne em sua figura todos os elementos do frio primordial e do mais severo dos invernos. Para muitos povos da antiguidade ele era a encarnação do próprio inverno que desce implacável ceifando tudo em seu caminho. Essa entidade perversa habita as nuvens plúmbicas, viajando através do firmamento nos ventos gélidos, causando nevascas e geadas ao seu bel prazer. Venerado e temido nas latitudes setentrionais do planeta que ele reivindicou como seu lar, esse Grande Antigo está intimamente associado a temperatura e clima.

Ele é chamado de Itaqua, o Andarilho do Vento, o Devorador da Tempestade, o Senhor da Nevasca, o Silêncio Branco e Caminhante do Firmamento... são muitos os nomes dessa entidade poderosa e especialmente cruel. Com certeza, o fato de incontáveis povos e civilizações associarem a fúria da natureza a forças sobrenaturais contribuiu para que Itaqua se convertesse na personificação da maioria dos Deuses tempestuosos do passado remoto. Estudiosos dos Mythos traçaram paralelo entre Itaqua e diversas entidades, como o deus asteca Quetzalcoatl, Thor, o Deus nórdico do Trovão e Enlil, deidade suméria/ babilônica responsável pelas tempestades. No hemisfério norte do planeta, a real natureza de Itaqua é melhor compreendida pelos cultistas que o adoram com fascínio e submissão.


Itaqua é considerado uma das entidades mais importantes no Panteão de deuses Inuit, sendo conhecido pelos povos esquimós como Sila. Com esse nome, ele foi reverenciado por tribos nativas distribuídas pelos confins do deserto Ártico, da Sibéria à Groenlândia. O culto de Sila, contava também com enclaves de cultistas habitando os territórios mais inóspitos do extremo Norte do Canadá e do Alasca onde sua influência era inquestionável. Os cultistas se contentavam em tentar aplacar a sua fúria com oferendas e rituais sangrentos. Sacrifícios eram oferecidos em determinadas datas, com as vítimas escolhidas sendo amarradas em estacas e abandonadas em planícies e descampados onde o Deus se materializava acompanhado por uma imensa tempestade. Com essas ofertas, os cultistas acreditavam que Sila/Itaqua ficaria satisfeito e não enviaria sua punição. Por vezes, ele se contentava com o sacrifício, mas em outras, sua cólera se refletia em tempestades avassaladoras que soterravam vilarejos inteiros sob a neve, fazendo-os desaparecer para sempre. 

Não por acaso, Itaqua sempre foi muito mais temido do que adorado e seus cultos quase que desapareceram por completo no início do século XIX. Contudo, bastiões ainda resistiram em certas partes isoladas do extremo norte como a cidade de Stillwater, no Território de Manitoba, Canadá ou Cold Harbor no Alasca. Seus seguidores não constroem templos, preferindo conduzir os seus ritos nas planícies abertas. A adoração trazia poucos benefícios aos envolvidos já que o Deus raramente oferecia artefatos ou compartilhava magias, e quando o fazia era apenas para fortalecer uma elite sacerdotal, capaz de controlar o restante de uma comunidade. De qualquer maneira, Itaqua jamais se importou com o bem estar de seus cultistas e não raramente os exterminava após algum acesso incontido de fúria.

Como ocorre com os Grandes Antigos, Itaqua teve sua liberdade restringida por princípios cósmicos que o compelem a se manifestar apenas por curtos períodos de tempo e em áreas pré-determinadas. As tradições orais, compartilhadas por xamãs siberianos e Feiticeiros das tribos Cree, habitantes dos Grandes Lagos, afirmam que Itaqua não é nativo de nosso planeta e que vem de um mundo, dimensão ou realidade chamada Borea, uma terra escura, com vastas planícies de gelo negro, constantemente fustigada por tempestades e vendavais. Ele teria sido atraído para a Terra por razões desconhecidas incontáveis milênios atrás, estabelecendo-se no Polo Norte, que se tornou o seu Domínio ou Área de Caça.

Quando a conjunção de estrelas atingiu seu alinhamento fatídico, Itaqua se viu preso por essas poderosas correntes cósmicas, incapaz de romper a prisão constituída para capturar os Grandes Antigos. Assim como seus irmãos, ele se viu impedido de manifestar-se livremente além de determinados limites geográficos. No caso de Itaqua ele não pode deixar a porção entre o Norte de Manitoba e o Polo Norte, embora em certas circunstâncias e datas favoráveis, ele consiga se manifestar temporariamente em outros pontos do globo. Uma vez que cultos devotados a ele floresceram em regiões do México, Japão e Pérsia, é de se supor que ele tenha tolerância para viajar até climas mais amenos, ainda que em raras instâncias. Para se deslocar de um lugar para o outro, Itaqua se vale de colossais tempestades e outros fenômenos climáticos de intensidade substancial que parecem carregá-lo de um extremo a outro do planeta. É possível que ele utilize também portais e outros métodos mágicos, ainda que seus cultistas adotem a noção de que o Deus simplesmente voa através dos Ventos. Seu apelido "Andarilho do Vento" advém dessa característica em especial, já que as tradições afirmam que "ele é capaz de andar no vento, assim como os homens andam na terra firme".

Pouco se sabe a respeito da origem e história de Itaqua. Até para os padrões das obscuras entidades que integram os Mythos, o conhecimento sobre ele é ínfimo. Isso se deve provavelmente ao fato de que a maioria de seus cultistas provém de culturas e povos que não possuem registros escritos. Grande parte das informações a respeito do Deus se manteve confinada no seio de pequenas comunidades isoladas, transmitidos oralmente. Dessa forma, muito pouco foi apurado a respeito dele. O que se sabe foi extraído por antropólogos e exploradores que tiveram contato com habitantes dessas regiões afastadas que relataram lendas sobre seus deuses. E mesmo estas histórias, certamente contém informações dúbias cuja veracidade não é possível corroborar no todo, ou mesmo, em parte.

Não por acaso, Itaqua é um dos mais misteriosos Grandes Antigos, um enigma obscurecido por um denso nevoeiro de rumores e sussurros.


Supõe-se que Itaqua seja o responsável por incontáveis desaparecimentos ocorridos nos confins gélidos que integram os seus domínios. Na maioria dos casos, as vítimas do deus simplesmente desaparecem em meio a uma tempestade especialmente violenta. Nada de seu paradeiro é ouvido, por meses, anos ou às vezes para sempre. Eventualmente, algumas destas pessoas são encontradas enterradas na neve ou presas em gelo, com sinais de terem sofrido queda de uma altura considerável. É desconcertante que algumas dessas vítimas tragam consigo estranhos adereços e objetos que parecem pertencer a outras civilizações separadas por longas distâncias. Algumas vítimas ainda são encontradas vivas, balbuciando sandices a respeito de uma criatura colossal voando nas nuvens. Não raramente estas vítimas são achadas há quilômetros do ponto de onde supostamente desapareceram, sem que seja possível determinar como surgiram em localidades tão díspares.

É raro, mas alguns podem sobreviver a essa experiência traumática. Entre os povos Inuit, aqueles que "Viajaram no Vento" são considerados como indivíduos tocados pelo Deus. Elas experimentam visões e profecias enlouquecedoras até o fim de suas vidas. Tendem ainda a ser evitadas pelas tribos e passam a viver como eremitas. É dito que aqueles que suportaram a proximidade de Itaqua, desenvolvem ainda uma capacidade sobrenatural de resistir a temperaturas gélidas sem o menor desconforto. Nos confins da taiga siberiana, há rumores sobre xamãs que partilham desse destino e são considerados como sábios insanos.

Outra lenda curiosa a respeito de Itaqua diz respeito ao Wendigo, um conhecido mito, difundido entre os povos nativo-americanos do norte. O mito originalmente se refere a homens que se transformam em bestas selvagens de aparência grotesca após consumir carne humana. Os Wendigo são monstros temidos pelas tribos Inuit, criaturas ferozes que vivem sozinhas e que abandonam a razão para se tornar terríveis predadores.

Supõe-se que os Wendigo sejam uma raça serviçal criada pelo poder de Itaqua. A transformação afeta pessoas que são escolhidas pelo Deus, passando a viver em sua companhia como prisioneiros ou ainda aqueles que se alimentam de carne oferecida por ele. O critério que o leva a escolher uma pessoa para se transformar em Wendigo é desconhecido. O que se sabe é que a transformação envolve uma série de etapas em que o corpo da vítima é lentamente pervertido em uma forma mais ou menos parecida com o próprio Itaqua, ainda que menor e menos poderosa. No estágio final, a vítima perde inteiramente sua consciência, regredindo a selvageria. Ela, no entanto, permanece inteiramente sujeita à vontade do Deus. 

Há rumores de que nos confins do Canadá ou nos recônditos do Alasca ainda existem lugares habitados por Wendigo servis à Itaqua. Como tal, elas acatam suas ordens e realizam quaisquer tarefas transmitidas sem questionamentos. É possível que estes seres sejam a base para várias lendas a respeito de monstros antropoides encontrados em latitudes inferiores, como o sasquatch, o yeti e o pé grande. Aqueles em terras mais quentes e que supõem estar seguros, longe de Itaqua, podem receber a visita desses servos do Andarilho do Vento. Os limites árticos não se aplicam aos Wendigo, que podem ser enviados a qualquer lugar do mundo para extrair a vingança em nome de seu mestre.

Diferente da maior parte dos horrores do Mythos, Itaqua é uma entidade claramente humanoide. Em uma comparação simplória, seria possível tentar descrever seu aspecto geral como simiesco, contudo, uma observação mais atenta afasta a noção de que o Deus guarde similaridade com qualquer forma de vida terrestre. Para todos os efeitos, Itaqua é totalmente alienígena, bem como sua aparência.

Sua forma é descrita como a de um gigante polifêmico, com mais de 30 metros de altura e um corpo delgado a ponto de ser emaciado. Muitos o descrevem como um colosso de aparência pálida, quase cadavérico, com membros muito longos terminando em mãos e pés dotados de dedos por sua vez encerrando em garras recurvas. Sua face é uma carranca desfigurada, magra e angular, onde desponta uma mandíbula poderosa que dá forma a uma boca em esgar perpétuo, destituída de lábios. Os dentes brancos e pontiagudos se projetam para fora, acavalados uns sobre os outros como pontas de faca. De sua garganta emergem baforadas nebulosas de cristais de gelo. Os cabelos no topo de sua cabeça são compridos e caem por cima dos ombros largos como uma cascata branca como giz. Os olhos possuem uma coloração azulada pálida, estranhamente embaçados e sem iris. Quando furioso, esses olhos selvagens ganham um tom avermelhado. O Deus não parece perceber os arredores, sendo possível dele ser cego, ou ter visão limitada. Supõe-se entretanto, que ele tenha um faro apurado, sendo capaz de perceber presas à distâncias consideráveis. Itaqua é descrito como um predador contumaz, dedicado ao prazer da caçada que o leva a abater suas presas e devora-las por inteiro. Estritamente carnívoro, sua voracidade é bem documentada.      

O gigante é coberto por uma pelagem áspera de coloração branca acinzentada ou bege pardacenta. Esse cabelo que cresce em chumaços parece oferecer uma proteção natural, acumulando-se em maior quantidade no pescoço, peito, costas e genitais. Por baixo da pelagem, sua pele é pálida e rígida, revestindo uma musculatura sólida dotada de tecidos que se assemelham a tendões. Não é fácil romper essa pele resistente que tem a textura de couro batido. Armas humanas convencionais encontram enorme dificuldade em atravessar as barreiras impostas por pelo, pele e músculo. Disparos de armas de fogo geralmente são desviados, exceto por projéteis com grande poder de penetração, que podem varar essas defesas, sem no entanto, produzir grandes danos. O mais provável é que um disparo de espingarda meramente o irrite.

    
O corpo de Itaqua se sustenta em duas pernas, assumindo uma postura totalmente ereta. Ele se move com passadas longas que cobrem um arco de pelo menos 15 metros a cada passo. Seus pés são palmados, dotados de seis dedos, com uma sola grossa e áspera que lhe garante aderência na neve ou gelo. Para alguns, o Deus não toca realmente o solo, contudo essa noção parece ser falsa visto que ele frequentemente deixa rastros sulcados na neve fofa. Suas passadas são poderosas e a criatura não parece se importar com o que quer que esteja em seu caminho. Uma vez traçando uma rota, ela não se desvia dela. Apesar de seu tamanho colossal, Itaqua consegue flutuar no ar, cobrindo centenas de metros entre uma passada e outra. A Entidade também é capaz de voar, desde que haja uma tempestade ou nevasca nos arredores. Para alçar voo, Itaqua simplesmente flutua na direção da tempestade e se deixa engolir pelas nuvens. Ele é capaz de se locomover velozmente dessa maneira, perfazendo o espaço de quilômetros em poucos segundos.

Uma aura congelante parece emanar de seu corpo e indivíduos que chegaram perto o bastante do Deus descreveram uma sensação de congelamento que remete a hipotermia. De fato, todos os que estiveram próximos suficiente, e sobreviveram à experiência, afirmam que o frio emanando do Deus beira o insuportável. A perda de dedos, membros inteiros e mucosas é um triste troféu carregado por estes pobres diabos. Alguns acreditam que ao redor de Itaqua existe uma espécie de névoa gélida que parece acompanhá-lo e que é responsável por esse frio álgido. Em geral, o Deus escolhe se manifestar fisicamente apenas quando existe uma forte tempestade ou nevasca, sendo raro encontrá-lo em um ambiente de céu limpo. 

De todas as horrendas características de Itaqua, uma merece destaque. Trata-se de uma peculiaridade descrita por muitos dos que cruzaram seu caminho e que se converteu em uma espécie de marca registrada. Itaqua é capaz de produzir um ruído próprio, que na falta de uma interpretação melhor, soa como um uivo. O Uivo do Caçador, como ele é conhecido entre seus cultistas, parece causar um efeito pungente naqueles que o escutam pela primeira vez. O Uivo é descrito como um ríspido rosnado, mas ele não pode ser comparado a nenhum som produzido por animais da natureza. Esse som exasperante parece afetar suas vítimas com um temor primal tão monumental que muitos simplesmente perdem a razão após ouvi-lo. Desmaios, histeria e um pânico incontrolável são reações frequentes. Há casos de indivíduos que jamais se recuperam  da experiência; acabam se deixando consumir por um sentimento esmagador de desespero e desolação que invariavelmente os conduz à ruína física e mental. Não são poucos os que terminam por enlouquecer cometendo suicídio ou simplesmente se põem a andar rumo ao norte para se entregar ao Deus.

Itaqua não conhece piedade, não oferece consolo e é cruel em seu desinteresse por tudo que está ao seu redor. Verdadeira força da natureza, ele não se atém a questões menores, como a vida de seres frágeis que são esmagados aos seus pés.

De muitas maneiras, Itaqua é como o próprio inverno.

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Ithaqua (o Andarilho do Vento ou Wendigo) faz parte do Mythos idealizado por H. P. Lovecraft. A criatura e si foi apresentada por August Derleth, no conto curto "Ithaqua", que por sua vez se baseia na história "The Wendigo" por Algernon Blackwood. Mais recentemente Brian Lunley foi responsável por construir o Ciclo de Itaqua e criar uma mitologia própria para a entidade. Esse artigo se baseia nessas contribuições e em noções definidas no RPG Call of Cthulhu.

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