terça-feira, 30 de julho de 2019

O Desaparecimento do Gringo Velho - O Misterioso destino de Ambrose Bierce


Alguns desaparecimentos misteriosos conseguem atingir o perfeito equilíbrio entre estranheza, ausência de explicação e a vida da vítima. Em alguns casos, esses desaparecimentos parecem incrivelmente adequados, como se eles estivessem fadados a acontecer e como se eles não pudessem ser evitados. Um desses casos, inclui o desaparecimento de um talentoso escritor que escreveu muito a respeito do mundo do sobrenatural e é claro, desaparecimentos, antes dele próprio sumir sem deixar vestígios. De fato, seu desaparecimento sem solução se tornou um mistério persistente que se sobrepôs a sua própria carreira literária, tornando-o mais famoso pelas estranhas circunstâncias de seu fim do que pelas suas histórias horripilantes.

No final do século XIX um dos mais populares autores dos Estados Unidos era um homem chamado Ambrose Bierce. Ele era um veterano condecorado da Guerra Civil além de jornalista e cronista, não apenas de livros e contos, mas de uma série de artigos e ensaios publicados no New York Journal, no New York American e no San Francisco Chronicle. Tamanha era a sua popularidade que ele serviu de inspiração para outros grandes escritores, incluindo Jack London e Joaquin Miller. Embora seus trabalhos hoje sejam um tanto obscuros, ele foi muitíssimo conhecido, particularmente na Costa Oeste da América, especialmente no que tange aos seus trabalhos nos reinos do bizarro e sobrenatural. Bierce era obcecado pelo oculto, pela morte e pelo paranormal, temas que apareciam repetidas vezes em seus contos, com inúmeras aparições, fantasmas e assombrações. Apesar de muitas de suas histórias terem um tom realista, uma bagagem trazida de seu trabalho como repórter, ele se sobressaia em contos de ficção e assombro. Talvez o fato dele escrever sobre o fantástico de maneira tão realista é que constituía o diferencial de suas obras.


É provável que o melhor exemplo disso seja um conto curto com o título "A Trilha de Charles Ashmore"  (Charles Ashmore’s Trail), que foi publicada em uma coleção de 1893, sob o nome "Pode tal coisa existir"? (Can Such Things Be?). A narrativa é construída como se fosse um relato verdadeiro de algo que havia ocorrido, e envolve um jovem homem chamado Charles Ashmore, que em uma noite gélida de novembro de 1878 deixa a casa de sua família, em Quincy, Illinois para apanhar água em um velho poço. Charles não retorna, e sua família, dando pela sua falta sai a procura. Uma vez que na noite anterior havia nevado, haviam pegadas facilmente perceptíveis levando até o poço, mas elas abruptamente somem em determinado ponto. Acreditando que ele pudesse ter caído, os parentes de Charles gritam, mas não obtém resposta. Não há sinal do rapaz, não há pegadas, nem um traço sequer na neve que não parece ter sido perturbada. Ele simplesmente sumiu da existência a cerca de dois metros do poço. O pai e a irmã mais velha, verificam o buraco e descobrem que ele tem uma crosta de gelo que não poderia ter se formado se o rapaz tivesse caído nele. Tornando tudo ainda mais esquisito, a mãe de Charles, quatro dias mais tarde vai até o mesmo poço para apanhar água e ouve um sussurro chamando seu nome. O som fantasmagórico continua a chamá-la, mas ela sai correndo antes que algo pior - e que provavelmente aconteceu com seu filho, possa acontecer.

A história é interessante para qualquer pessoa que goste de mistérios. A maneira como Bierce relata os fatos e a forma como ele fornece à narrativa um verniz jornalístico influenciou muitos outros escritores. Não é exagero dizer que ele foi um dos primeiros a criar esse estilo de literatura, amparada pela prosa jornalística. Outra história dele, "O Caso de Oliver Larch", também envolve um jovem rapaz, dessa vez de de Indiana, que na véspera do Natal desaparece no ar depois que um forte brilho é testemunhado por pessoas que passavam pelos arredores. Quando a  família tenta traçar seus passos, ouve uma voz que parece ser de Oliver vindo de lugar nenhum e cuja origem parece incerta. Oliver teria sido transportado para outra realidade e se via impedido de retornar. Por vezes mencionada como se fosse uma história real, o conto parece ser uma espécie de continuação da primeira.

Há também o famoso "Caso de David Lang", que é parcialmente adaptada em cima de outra história de Bierce intitulada "A Dificuldade de Cruzar um Campo" (The Difficulty of Crossing a Field), e que muitos consideravam como uma narrativa de fatos inexplicáveis e ainda assim reais. Ela relata um incidente envolvendo um tal David Lang que também desaparece, dessa vez diante dos olhos de várias testemunhas embasbacadas. Passando-se no Tennessee, o conto tem lugar em 1880. Um fazendeiro chamado David cruza um campo aberto, quando repentinamente desaparece no ar deixando sua família e um grupo de amigos horrorizados. No lugar em que ele estava, surge um círculo de grama amarelada, e assim como ocorre nos casos de Ashmore as pessoas afirmam escutar vozes que parecem suspensas no ar por dias. No conto, um estudioso chamado Dr. Maximilian Hern, teoriza a respeito de tais desaparecimentos, afirmando que estes são causados por "um vazio no éter universal", que ele especula ser uma falha no tecido da realidade que dura apenas uns poucos segundos. Contudo, toda matéria que está em contato com essa falha acaba sendo vaporizada e destruída, bem como qualquer pessoa que tenha o azar de estar sobre ela. 

Bierce dizia ter entrevistado cientistas e metafísicos que afirmavam ser esse fenômeno causado por campos magnéticos, capazes de abrir buracos para outras realidades e dimensões, onde as vítimas colhidas ficavam presas. O curioso é que o escritor afirmava que essas histórias tinham base em incidentes verídicos. Ele dizia que embora os nomes tivessem sido trocados, as circunstâncias narradas tinham como base acontecimentos dos quais ele havia investigado em seus tempos de repórter. 


Muitas pessoas passaram a entender os contos de Bierce como narrativas oficiais sobre acontecimentos que de fato haviam ocorrido. Essa era a extensão de seu poder de convencimento: transformar situações fictícias em reais, fosse ou não, a sua intenção original. Bierce era conhecido não apenas por escrever com uma autoridade impressionante e uma forte capacidade de convencimento, mas por conceder às suas narrativas realismo.

Outro famoso trabalho de Ambrose Bierce, por vezes considerado como verídico, é a história curta "Casa Esquisita" (Spook House), que foi publicada no Jornal "The Advocate" na forma de artigos. O conto é a respeito de uma velha casa no Kentuck de onde uma família inteira supostamente desapareceu sem deixar rastro em 1858. Seus objetos pessoais, roupas, comida, cavalos e até mesmo escravos ficaram para trás. Na história, um ano depois do desaparecimento, dois viajantes acabam se abrigando na casa durante uma tempestade e um deles também acaba sumindo. O sobrevivente passa a se dedicar a descobrir o mistério da casa que envolve uma sinistra força sobrenatural habitando um aposento secreto. A história, considerada aterrorizante na época foi escrita no formato de reportagem, inclusive com entrevistas, o que concedia a ela uma ar de realismo impressionante.


Ainda que a história fosse fantástica e absurdamente estranha, a forma como ela foi apresentada originou um debate duradouro sobre sua veracidade. Bierce era capaz de habilmente transitar na tênue linha entre verdade e ficção, ao ponto de tornar as duas praticamente a mesma coisa.  

Como é possível perceber facilmente através de seus contos, Bierce era fascinado por mistérios, sobretudo aqueles envolvendo estranhos desaparecimentos. Para criar suas histórias ele conduzia pesquisas sobre o assunto. Ele tinha um profundo interesse nas teorias do teórico alemão Hern Leipzig, que especulava a respeito de "buracos" na nossa realidade, através do qual objetos animados e inanimados poderiam desaparecer, sendo tragados por uma realidade invisível de onde jamais conseguiriam escapar. Esse lugar era tratado como uma espécie de limbo, no qual a vítima deixava de existir, mas onde continuava existindo simultâneamente, invisível ao mundo à sua volta e incapaz de interagir com ele. Bierce concluiu que esses buracos, espaços vazios ou recessos como ele chamava, algumas vezes eram uma das causas para os inúmeros casos de pessoas desaparecidas. Ele elaborava:

"Vamos supor que esses espaços vazios existam em nosso mundo, como cavernas existem na terra, ou buracos existem em um queijo suíço. Em tais espaços vazios não existe absolutamente nada. Trata-se de um vazio completo, uma espécie de éter. Nem mesmo a luz pode penetrar nesse espaço. O som não pode vir de dentro dele, nada pode determinar a sua existência. Ele não é percebido ou captado pelos nossos sentidos e para todos os efeitos não há como determinar a sua existência. Nesse vazio, não há sequer a passagem de tempo. De quado em quando, contudo, algum fenômeno desconhecido é capaz de abrir esse vazio e permitir o acesso ao seu interior. Infelizmente tal fenômeno tem curta duração e quando terminado, aqueles que são tragados para esse vazio se vêem presos nele, para sempre. Não existem mais em nosso mundo, não estão vivos e nem mortos, mas em uma realidade que os devorou".     

Com uma fascinação tão grande por desaparecimentos e com tamanho talento para escrever a respeito deles, parece irônico e sinistramente apropriado que o próprio Ambrose Bierce tenha um dia desaparecido sem deixar qualquer sinal. E seu desaparecimento é, ainda hoje, considerado um dos mais estranhos da história.

Tudo ocorreu em 1913, quando Bierce, que já havia completado 70 anos de idade, decidiu enveredar uma vez mais pelo caminho da guerra e do caos. Em busca de aventura e excitação ele planejou cruzar a fronteira até o México, em plena Guerra Civil para encontrar as forças de Pancho Villa e testemunhar pessoalmente sua luta contra as tropas federais do General Huerta. Bierce não escondia de ninguém que considerava sua experiência como oficial na Guerra da Secessão o momento mais importante de sua existência. Embora ele tivesse lutado com distinção, havia sido ferido duas vezes. Sua participação no conflito serviu para obter inspiração para suas histórias e assunto suficiente para incontáveis narrativas. No final da vida, Bierce desejava experimentar tudo aquilo novamente e convencido que haviam histórias a serem contadas, ignorou os avisos de não se envolver na Guerra que devastava o país vizinho. Bierce escreveu em sua cara de despedida: "Eu estou a caminho do México por que é lá que está a excitação. Eu gosto desse jogo. Eu gosto da luta. E eu quero ver isso novamente".


Tudo se encaixava perfeitamente com a personalidade inquieta de Bierce, que adorava falar a respeito de seus tempos na guerra e como aquilo ajudou a moldar seu caráter. O escritor parecia enxergar a guerra sob um prisma particular: via beleza em meio ao Caos, poesia no horror. Sabe-se que Bierce antes de seguir para o Sul da Fronteira, visitou uma vez mais os antigos campos de batalha da Guerra Civil, inclusive os lugares onde foi ferido. Pouco depois, em dezembro de 1913, escreveu uma carta a sobrinha avisando que estava prestes a cruzar a fronteira próximo de Laredo, no Texas. Ele ficaria alguns dias na cidade de Juarez, para se equipar e traçar seus planos. Essa seria uma de suas últimas correspondências, e de fato, a última vez que se ouviria falar dele, exceto por um cartão postal que ele enviou de Chihuahua, México em 26 de dezembro no qual ele escrevia apenas uma frase: "Jornada de Juarez concluída, à caminho de Ojinaga, está tudo bem".

Dali em diante não se teve nenhuma outra notícia de Bierce. Assim como muitos de seus personagens, ele simplesmente desapareceu da face da terra. Até onde se sabe, ele jamais expressou planos de retornar aos Estados Unidos e chamava sua aventura derradeira de "Jornada de la Muerte", sua Jornada Mortal. Em sua carta derradeira para a sobrinha ele escreveu:

"Adeus - se você ouvir que fui amarrado e colocado diante de um pelotão de fuzilamento por mexicanos, não fique triste. Essa seria uma bela forma de morrer! Muito melhor que morrer de idade avançada, de doença ou caindo de uma escada. Ser um gringo no México, isso sim é vida!"

Em 1919, um amigo próximo de Bierce chamado George F. Weeks partiu para o México com o objetivo de traçar os últimos passos de seu amigo e descobrir o que teria acontecido com ele. Para a maioria das pessoas ele teria sido morto por revolucionários ou tropas federais, pego em alguma emboscada ou se tornado vítima de bandoleiros. Sem dúvida, a Revolução Mexicana foi um tempo de grande violência e brutalidade. Weeks planejava colocar um ponto final nas especulações de que Bierce teria perdido a memória e que passou a viver no México com uma identidade falsa. Durante sua viagem, Weeks encontrou um oficial mexicano que relatou como Bierce teria morrido em uma batalha em Ojinaga, contudo, havia muitos rumores.

Desde seu desaparecimento, teorias sobre o destino final do famoso escritor floresceram. Além da possibilidade mais óbvia e provável dele ter sido morto em uma batalha, haviam os que imaginavam que ele jamais teria ido para o México. Que havia cometido suicídio em virtude de seu estado de saúde. Esses afirmam que as cartas de Bierce e seu estado de ânimo geral demonstravam o quanto ele detestava a noção de ficar velho e inválido. Ele também pode ter cometido suicídio por achar que sua existência havia se estagnado. Outra teoria é que ele teria ficado nos Estados Unidos, mas fabricado a história do México afim de perpetuar sua própria lenda. Nesse caso, ele teria construído a narrativa de seu desaparecimento misterioso. Assim, ele se juntaria aos seus personagens, nublando as linhas da realidade e da ficção para sempre.


Outros afirmavam que ele continuou a viver no México, país que o cativou. Ele teria assumido a identidade de um americano chamado Jack Robinson, indivíduo de quem se sabe muito pouco, mas que teria acompanhado os rebeldes de Pancho Villa por meses antes de também sumir. Robinson se tornou uma espécie de consultor e conselheiro dos rebeldes, afirmando que tinha farta experiência militar, sendo ele próprio um veterano. Aqueles que conheceram Robinson, afirmam que ele era um homem de idade extremamente articulado.

Finalmente ele poderia ter sido assassinado por bandidos de estrada ou capturado por tribos nativas e sacrificado por eles. Essa triste possibilidade contempla que ele simplesmente adoeceu ou foi ferido e terminou morrendo numa cama em algum lugarejo perdido. Posteriormente, ele foi enterrado numa cova sem nome e lá permanecem seus ossos pela eternidade.

No fim das contas, Weeks não conseguiu as provas que buscava, mas descobriu que em sua curta passagem pela Guerra Civil, o Gringo Velho colecionou amigos e histórias. É de se imaginar que narrativas ele teria para contar se tivesse retornado dessa viagem.

Mas existem ainda os que procuram uma explicação metafísica para o ocorrido. Estes defendem que Bierce foi vítima do fenômeno sobre o qual escreveu de maneira tão competente. Talvez ele tenha caído em um "espaço vazio" na realidade e desaparecido para sempre em um limbo do qual não existe retorno. Sobre esse ponto, existe uma narrativa (sem dúvida minha favorita!) sobre o que poderia ter acontecido com o inquieto autor.


Nesta, o Gringo Velho teria sido capturado por rebeldes e levado diante do próprio Pancho Villa. O Comandante rebelde o interrogou e acabou confundindo o homem com algum tipo de espião ou observador enviado pelos americanos para comunicar o curso da revolução. Alegando que havia sido um veterano da Guerra Civil, Villa ponderou que então o velho deveria ser executado como soldado, encarando um pelotão de fuzilamento. Ele concedeu inclusive a honra de ser o oficial presente na execução que daria a ordem de "preparar, apontar, fogo".

Bierce concordou e até teria sorrido diante da honra: "Melhor isso do que viver como prisioneiro".

O velho foi colocado diante de um paredão onde muitos outros haviam sido baleados. Antes entregou uma carta a um rapaz com instruções para faze-la chegar às mãos da sobrinha do Gringo, na Califórnia. Pancho Villa em pessoa contou até três e ordenou que disparassem. Mas então algo inesperado aconteceu! Antes que as balas o atingissem, o alvo simplesmente desapareceu no ar, como se outra realidade o tivesse engolido. Os soldados ficaram tão apavorados que fugiram e mesmo o lendário Pancho Villa não soube explicar o estranho acontecimento. Ele mandou que ninguém jamais mencionasse o incidente para não alimentar histórias de fantasmas. O rapaz incumbido de entregar a carta foi instruído a queimá-la e dessa forma, ninguém saberia o que havia acontecido com o Gringo Velho. Para todos os efeitos ele teria desaparecido durante a Guerra e o Caos que tanto desejava assistir.

O certo é que o desaparecimento de Ambrose Bierce continua sendo um enigma, e seu destino permanece em aberto. Como diziam muitos de seus amigos que o conheceram: "não iria me espantar se um belo dia Bierce aparecesse cheio de histórias e narrativas para contar".

No fim das contas, não importa o que realmente aconteceu com ele, mas que ele provavelmente ficaria satisfeito com o mistério de jamais sabermos ao certo.

2 comentários:

  1. A história é interessante. Bierce era muito imaginativo. Acho que ele criou mentiras ao longo da vida para fugir do tédio.

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  2. Estava mestrando uma mesa de Rastros de Cthulhu usando a figura de Bierce como parte do enredo.
    Que coincidência achar o material aqui.
    Esse escritor era fantástico! Engraçado o destino que Alan Moore deu para o desaparecimento dele na obra Providence.

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