quarta-feira, 21 de agosto de 2019

RPG do Mês: KULT - Divinity Lost - O mais soturno jogo de Horror está de volta (parte 1)


KULT é um RPG que obteve grande popularidade nos anos 1990 e que se tornou matéria para discussão e polêmica desde o seu surgimento.

Sabe aqueles livros que publicam um disclaimer na primeira página?

Pois bem, KULT ia além e reproduzia um texto no qual afirmava que o conteúdo do jogo servia apenas ao propósito de criar uma atmosfera de terror e entretenimento. De forma muito séria ele advertia que nada daquilo deveria ser tratado como real. Ele deixava bem claro que os leitores não deveriam levar os conceitos à sério e menos ainda tentar reproduzir qualquer noção descrita no livro.

Isso porque KULT ia além das noções básicas de um jogo de Horror. Ele buscava se aprofundar em questões filosóficas, espirituais e existenciais de uma maneira até então jamais vista em outros RPG. Fora o incômodo de certos textos e o caráter visceral de algumas descrições e desenhos, KULT não poupava o leitor de elementos desconfortáveis para criar uma experiência única de horror na mesa de jogo.


O resultado?

Muita polêmica! Com acusações de que os autores suecos teriam ido longe demais em seu intuito de chocar ele passou a ser criticado. O livro era repleto de "gatilhos". Houve inclusive um caso, nunca provado de suicídio envolvendo um jogador de KULT na Suécia. Mas é claro essa polêmica atraiu a curiosidade de muita gente e contribuiu para tornar o jogo ainda mais conhecido. 

KULT teve três edições, a primeira e mais conhecida é considerada o Santo Graal dos RPG de Horror, um livro publicado no início dos anos 1990 pela Metropolis Press e que dizem alguns, chegou a ser recolhido nas lojas e censurado em algumas parte sdos Estados Unidos. Não sei se essas histórias são inteiramente confiáveis, há muito exagero e boatos, mas é certo que KULT causou sensação. Tanto que a segunda edição, lançada alguns anos depois, teve o texto atenuado e diluído para se tornar menos chocante. A edição fez menos sucesso e se tornou o que alguns chamam de capa branca - a edição mais suave do livro. Foi necessário esperar mais uma década para que viesse uma nova releitura capaz de retomar o espírito original do jogo. A terceira edição é bastante fiel à primeira, reproduzindo trechos que haviam sido limados e juntando informações adicionais em um trabalho bem completo.

Mas que tipo de material podia causar tanta controvérsia?

Ao que estamos nos referindo quando falamos que esse livro era tão inflamável? Como curiosidade, eis aqui reproduzido dois trechos que sempre me chamaram a atenção no livro, sobretudo porque se refere a exemplos de personagem que podem ser escolhidos pelos jogadores:

"Quando comecei a estudar na escola, percebi que alguma coisa estava errada. Nenhuma das outras crianças na minha classe costumava acompanhar seus avós ao cemitério nas noites d elua cheia. Eles jamais viram cadáveres recentemente exumados ou membros serrados e levados para a cozinha. Nenhuma outra avó guardava um machado de cobre junto da despensa ou usava para cortar a carne. Elas nunca foram ensinadas a murmurar as palavras sagradas e mastigar a carne tenra agarrada aos ossos com seus próprios dentes. Quando comentei essas coisas, elas olharam para mim como se eu fosse um anormal. Então eu resolvi não falar mais sobre isso e assumi que famílias tem seus próprios segredos e que talvez seja melhor não falar deles em voz alta".


E esse é apenas um exemplo.

Outro? Lá vai:

"Keith e Kevin sempre foram cruéis comigo. Eles eram gêmeos e meus irmãos mais velhos, mas muito diferentes. Altos enquanto eu era baixa, morenos enquanto eu era loira. Algumas lembranças são mais dolorosas que outras, por exemplo, quando eles mataram meu cachorro Sparky e colocaram a sua cabeça na minha cama. Ou a vez em que eles me amarraram no estábulo e me bateram com o chicote. Ou ainda, quando cortaram a barriga de nossa gata que estava grávida e me forçaram a comer o que saiu dela. Eles me prenderam no porão com os restos do gato e deixaram os ratos virem.Quando eu fiquei mais velha, Kevin me forçou a fazer coisas com ele, que segundo suas palavras todas irmãs mais novas faziam. Eu fiquei muito confusa e envergonhada e pensei em me matar. Foi um alívio quando levaram Kevin e o trancafiaram em um lugar. Eu me mudei e meus tios cuidaram de mim. Eu voltei a sorrir. Semana passada fiquei sabendo que Keith ajudou Kevin a fugir daquele lugar. Eu não sei onde eles estão agora, mas tenho a sensação que é questão de tempo até descobrir". 

Esse é um exemplo do mundo de KULT, onde o terror visceral está prestes a acertar um soco na boca do seu estômago a qualquer momento.

Para maiores detalhes sobre as edições anteriores, em especial a primeira, convido os leitores a ler o artigo com a resenha dela, que pode ser encontrado AQUI

Mas aqui vamos tratar da resenha da versão mais recente de KULT, a Quarta edição que tem o subtítulo Divinity Lost (Divindade Perdida). Ela foi publicada pela Helmgast AB, após um bem sucedido Financiamento Coletivo ocorrido em 2016. O livro foi produzido e distribuído pela Modiphius e depois de vários percalços finalmente chegou às mãos dos financiadores e está à disposição do público em geral.

A pergunta que não quer calar é: "KULT manteve a sua proposta original ou ele foi de alguma forma suavizado em sua mais recente encarnação"?

Vou colocar da seguinte maneira: Até onde sei, esse livro é o único RPG que discute palavras de segurança e gestos que podem ser usados pelos jogadores para sinalizar ao Narrador que estão se sentindo desconfortáveis com alguma cena.

Esse é o nível da coisa!


O livro é voltado para o público adulto e demanda obviamente um certo grau de maturidade e entendimento entre jogadores e narrador. É facilmente um jogo que pode ser desvirtuado por um narrador que não compreende a proposta dele ou por jogadores incapazes de manter certo grau de seriedade.

Mas é preciso estabelecer algo: KULT não é um jogo para o público em geral.

Suas histórias não são aventuras no sentido que estamos habituados a reconhecer na maioria dos RPG. As narrativas envolvem medo e terror gráfico, muitas vezes sanguinolento e geralmente perturbador. Ele explora aspectos bastante sombrios da humanidade. Os heróis são indivíduos com problemas sérios que tem que lidar com dilemas morais e éticos, isso sem mencionar os vilões e os seres que permeiam essa ambientação que estão entre as coisas mais desprezíveis e aterradoras já vistas.

Além disso, o próprio livro de KULT constitui um desafio aos leitores mais sensíveis. Os textos são cuidadosamente trabalhados para atingir em certos momentos um ponto de equilíbrio entre bizarrice e choque. A arte, por sua vez, reflete esse caráter visceral sendo extremamente provocativa. Há um desfile de imagens de horrores deformados, criaturas com cicatrizes cirúrgicas, enxertadas com amálgamas de carne e metal e amputadas. Além disso o livro apresenta muita nudez e sexo. Há imagens hardcore de sexo, penis eretos, sexo oral, hermafroditismo, sadismo, masoquismo e outras coisas que não se costuma ver em livros de RPG.


Conforme dito, KULT não é um jogo para todos e recomenda-se certa cautela ao apresentá-lo à novas audiências. Alguns podem se sentir ofendidos ou incoodados, e nesse caso, melhor conversar a respeito.

Vou contar uma história a respeito d e KULT. Anos atrás, resolvi fazer uma pequena campanha com três jogadores, sendo um deles a minha esposa. Ela está habituada a jogar Chamado de Cthulhu e Mundo das Trevas e adora um bom horror, tolerando bem todo tipo de coisa estranha, monstros tentaculares e a descrição dos mais medonhos rituais. Mas aquela aventura de KULT em especial, foi demais pra ela. No meio do jogo ela me chamou no canto e disse: "Pra mim não dá!".

"Como assim?", eu quis saber. E ela explicou que havia algo naquela aventura em especial - que envolvia um grupo de investigadores tentando traçar o paradeiro de uma criança desaparecida que podia ou não ser vítima de um serial killer, que a incomodava e que a deixou positivamente amedrontada. Tudo bem, aceitei de boa. Em certos momentos, isso pode acontecer em algumas mesas, mas é bem provável que aconteça nesse jogo em especial.

A despeito de todas essas recomendações, KULT - Divinity Lost é um RPG com uma ambientação e proposta extremamente interessantes. E para os que se sentem fascinados pelos matizes mais escuras do horror ou estão dispostos a explorar essas áreas, ele se mostra imperdível.

Escrever a respeito da ambientação de KULT - Diviniy Lost é complexo, visto que muito dela deveria ser mantida em segredo. As revelações nesse jogo deveriam acontecer preferencialmente de forma gradual, com os segredos sendo revelados ao longo dos cenários, sessões e campanhas. Revelar antecipadamente muitos detalhes pode diminuir o impacto dessas revelações e funcionar como um enorme SPOILER que vai comprometer o choque pretendido.

O que posso revelar é que trata-se de um jogo sobre virtudes perdidas, mentiras e um esquema construído para enganar a humanidade e mantê-la eternamente escravizada. Participam desse esquema seres de incrível poder e influência que fazem de tudo para manter a raça humana presa em correntes que a impedem de atingir todo o seu potencial. Mesmo nossa carne e sangue não passam de uma ilusão, um invólucro para conter nosso espírito em um simulacro frágil e falho. O que está dentro é único e tem potencial para ascender rumo a um poder inimaginável.


O conceito de que vivemos em uma ilusão, cegos e incapazes de perceber o mundo real à nossa volta pode parecer familiar, e de fato é, já que os criadores da trilogia Matrix, dizem, se inspiraram em KULT para construir sua mitologia. Assim como acontece no filma, a humanidade habita uma espécie de ilusão construída para mantê-la contida e privada de suas habilidades. Um pequeno grupo de pessoas, no entanto, é capaz de ver além das aparências e começa a despertar esse potencial, desafiando os que construíram a Ilusão. Diferente de Matrix, não estamos falando de máquinas, mas de entidades pinçadas da tradição judaico-cristã: anjos, demônios, espíritos, criaturas e seres sobrenaturais de toda ordem, cuja função é trabalhar como feitores e guardas.

Quando um ser humano, começa a despertar, ele reclama parte de seus poderes de direito e essa compreensão acaba atraindo os carcereiros da Ilusão. Como uma espécie de polícia sobrenatural, eles verificam o perigo e tentam extirpar os despertos e evitar que eles usem o conhecimento para acordar outras pessoas.   

As aventuras de KULT envolvem esse tipo de revelação, às vezes de forma dramática. O despertar envolve enxergar o mundo além do preto e branco, contradizer crenças, explorar limites e ir além dos portões da consciência e percepção. Utilizando uma filosofia mística, os personagens de KULT se tornam peregrinos de terras estranhas, lançando-se em uma estrada de horror, pavimentada de dor e sofrimento. Se quiserem transcender eles precisam aprender magia, mergulhar em tradições e costumes bizarros, realizar rituais detestáveis, se desprender das limitações da carne e se envolver com coisas realmente incômodas.


Pense no filme Hellraiser (apenas o primeiro), que constitui uma das maiores inspirações para KULT. Nele, um dos protagonistas está disposto a ir até o Inferno (literalmente) para obter os segredos de um artefato que permite transcender a carne e comungar com o êxtase divino. Sua busca acaba atraindo a atenção de torturadores dispostos a destruí-lo, remontar sua carne inúmeras vezes e torturá-lo pela eternidade.

KULT segue essa mesma premissa, colocando os jogadores no papel de personagens com potencial para o despertar, mas que terão de comer o pão que o diabo amassou, para ter um vislumbre disso. E não se engane, as coisas vão ficar bem feias no decorrer das histórias.

Mas vamos fazer uma pequena pausa nesse ponto. Há muito ainda para falar desse fantástico RPG, até agora vimos apenas a ponta do iceberg.

Fiquem conosco.

7 comentários:

  1. Esse Rpg ja foi publicado alguma vez no brasil ? Fiquei curioso, parabéns pelo ótimo texto !

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    1. nunca.....mas vc pode importar a versão em Inglês na Amazon BR

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    2. Fiquem atentos as edições anteriores nunca foram traduzidas, mas a mais recente e que será resenhada em detalhes na continuação desse artigo, está confirmada para sair no Brasil em breve.

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    3. Acabei de descobrir que existe uma tradução do livro para o nosso português.

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  2. Legal. Kult é daqueles clássicos RPGs de terror dos anos 90 (poderia por In Nomine original e Witchcraft na lista?) que tem esse ar de mistério em volta. Nunca tinha lido um texto que fosse além do fato do jogo ter sido polêmico, parabéns pela matéria!

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  3. na espera da parte 2, eu adoraria jogar mais aventuras de Kult, porem temos pouquissimos mestres dele aqui no ES

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