sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Mistério Ancestral - Os Enigmas da Cidade mais Antiga do Mundo


Ocupando a Planície de Konya, na região da Anatólia, sudeste da Turquia e se espalhando por centenas de quilômetros por uma área remota e selvagem, encontramos a ancestral cidade de Çatalhöyük (pronuncia-se Cha-tal uy uk). Repousando às margens de um rio seco há mais de um milênio atrás, o misterioso assentamento é fonte de mistérios e enigmas insondáveis.

Desaparecida da face da história há tantos séculos, ela foi encontrada por acaso em 1958 quando o arqueólogo James Mellaart e sua equipe buscavam indícios de ocupação humana. As escavações motivadas pela descoberta de fragmentos de vasos sinalizavam com uma descoberta importante, mas eles não tinham ideia do que haviam encontrado até as primeiras ruínas serem desenterradas. O que foi removido do sítio se provou muito mais antigo e consideravelmente mais bizarro do que eles poderiam imaginar. Lentamente, a escavação revelou paredes, artefatos e os restos deixados por uma civilização que habitou aquele recanto isolado do planeta, quando a própria humanidade era jovem. A cidade desconhecida não apenas era uma joia da antiguidade e palco de um extraordinário passado, como desafiava tudo o que se presumia a respeito dos povos pré-históricos.

O primeiro aspecto intrigante de Çatalhöyük é sem dúvida a sua incrível idade, os arqueólogos estimaram que ela teria sido ocupada no Período Neolítico, em algum momento de 7500 a.C, fazendo as ruínas romanas erguidas nas proximidades, mais de 6 milênios depois, positivamente modernas em comparação. Para se ter uma ideia, as Pirâmides de Gizé, no Egito datam de 2700 a.C. Após sua descoberta a cidade foi imediatamente apontada como um dos mais antigos assentamentos organizados na face do planeta, merecendo o título de "Mais Antiga Cidade do Mundo". O que realmente impressiona é o fato de que nesse mesmo período a maior parte da humanidade se resumia a tribos esparsas de nômades e andarilhos. 

Desenho da cidade em seu auge
Fora dos limites da cidade, os pesquisadores encontraram evidências de campos usados para agricultura, um conceito revolucionário para esses caçadores-coletores, algo praticamente desconhecido no período. Mas não é só isso... além de campos de plantio, as escavações revelaram ossadas de milhares de ovelhas, cabras, cavalos, cães, porcos, coelhos e outros animais domésticos. Isso sugere que a população da cidade não apenas sabia como domesticar esses animais, um conhecimento notável, como sabia como reunir e tratá-los em cativeiro. Ao invés de caçar, os habitantes da cidade criavam animais para seu sustento. A cidade é um testemunho da transição do homem de uma condição de subsistência baseada em caça e coleta, para a habilidade no cultivo e domesticação de animais. Foi ali possivelmente se deu a transição do homem nômade para o colono, um momento marcante em nossa evolução.

Mas essas coisas não são o que mais impressionou os pesquisadores a respeito da cidade. Mellaart e outros arqueólogos ao longo dos anos descobriram que Çatalhöyük possuía uma estrutura social extremamente complexa. Para começar, a cidade não possuía ruas: os moradores transitavam por muros baixos de barro e sobre os telhados das casas. Estas eram construções de tijolos e gesso sem janelas, arregimentadas em grupos e com entradas no topo ao invés de portas. A planta da cidade, em formato de uma colmeia incluía uma rede de ladeiras e rampas que conectavam os prédios e permitiam aos moradores navegar pelo alto das construções onde também haviam áreas comunais. Não se sabe ao certo de que forma se dava o conceito de propriedade ou mesmo se ele existia. É um tipo de organização social diferente de tudo o que já foi encontrado e ainda não inteiramente compreendido pelos estudiosos.

Mas há outras coisas estranhas. As casas possuíam adornos e elementos artísticos que as diferenciam entre si, com características que deviam refletir o gosto pessoal de seus ocupantes. Várias das casas apresentavam pinturas adornando as paredes tanto dentro quanto fora, desenhos geométricos e glifos complexos que denotam uma sensibilidade para refletir o mundo e o que as pessoas viam. Além disso, crânios de animais, sobretudo touros e bodes ganhavam destaque, dispostos nas paredes em nichos. O interesse pelos crânios não é exatamente estranho em muitas culturas, mas em Çatalhöyük ele parece ser um elemento significativo. Crânios de animais eram colocados pelos habitantes em lugar de destaque nas casas. Além de crânios, ossos polidos e fragmentos de obsidiana talhada demonstram a inclinação artística dessas pessoas que gastavam tempo e se dedicavam a construir figuras e estatuetas. 

A Cidade de Çatalhöyük, ou como ela deve ter sido
Os arqueólogos se surpreenderam com a descoberta de objetos anômalos achados na cidade, como um mural que retrata uma vista aérea ou panorâmica da cidade e do vulcão Hasan Dagi localizado a cerca de 12 quilômetros de distância. O mural é tido como o mapa mais antigo do mundo, já que ele mostra a posição relativa da cidade e dos seus arredores. Os pesquisadores também ficaram maravilhados com a descoberta de uma obra de arte, a representação de uma cabeça humana feita de gesso e pedra, adornada com olhos de obsidiana. A peça não havia sido largada, mas colocada cuidadosamente em uma urna de pedra talhada que foi depositada em um nicho de uma das casas, quase como se tivesse sido guardada ali.

A maioria das casas era equipada com um tipo de rudimentar lareira usada para fornecer calor e também permitir o preparo de alimentos. Cada casa tinha ainda uma espécie de janela ou exaustor utilizado para ventilação que permitia manter o ambiente fresco, ainda que protegido de poeira. As pessoas em  Çatalhöyük tinham uma vida diferente de todos no mesmo período, com segurança e conforto único.

Outro aspecto exclusivo diz respeito a como os mortos eram tratados na cidade. Os arqueólogos à princípio não encontraram nenhum sinal de cemitérios comunais, o que os levou a acreditar num primeiro momento que os mortos eram enterrados no deserto ou queimados em algum local distante. Isso indicaria que as pessoas na cidade tinham pouco interesse em tratar os mortos com devoção. Contudo, as suposições dos estudioso não poderiam estar mais equivocadas! Os mortos em Çatalhöyük não eram colocados em cemitérios, mas sob os alicerces das casas, possivelmente para ficar o mais perto possível de seus parentes e amigos.

Sepultura na base das casas
O tratamento dispensado aos cadáveres também chama a atenção. Em vários casos o crânio era removido, possivelmente seguindo algum propósito ritualístico, e só enterrado posteriormente. Há indícios de que certos crânios desapareceram ou foram movidos para outros lugares, possivelmente até mesmo o interior das moradias. Seguindo o raciocínio de que crânios animais eram usados como adornos, é possível imaginar que as cabeças de entes queridos seriam decepadas e então dispostas no interior das casas. Lá ficariam, à vista de todos, até serem retornadas para as sepulturas com os demais restos.

Quem sabe o que significava esse costume ou a razão para ele ser seguido? Contudo, ao que parece, essa tradição fazia parte da vida das pessoas na cidade, sendo praticado ao longo de gerações. Talvez eles achassem que os entes queridos deveriam continuar de alguma forma participando de suas vidas. Ainda assim, é um conceito no mínimo bizarro de se imaginar.

A despeito desse estranho costume, a cidade de forma geral demostrava ser inusitadamente limpa, com indícios de que o lixo e os refugos fossem queimados ou enterrados. Além disso, os prédios possuem sinais claros de restauração e manutenção preventiva. Com efeito, as pessoas que residiam em Çatalhöyük eram incrivelmente saudáveis para os padrões neolíticos. Também graças à sua limpeza e asseio notáveis, a expectativa de vida era quase 15 anos maior do que qualquer outro local no período.

Vista de Çatalhöyük 
Em seu auge, a ancestral cidade de Çatalhöyük contou com uma população estimada em pelo menos 10,000 habitantes, fazendo dela não apenas a mais antiga das cidades, mas também a maior de seu período. Em termos neolíticos, um assentamento dessas proporções seria o equivalente a uma metrópole urbana atual.

Além de seu tamanho, a cidade também impressiona pela sua longevidade. As escavações revelaram ao menos 18 camadas de ocupação humana, tendo ela sido construída e reconstruída por milênios com acréscimos e melhorias. As suposições mais conservadoras sugerem que a cidade pode ter se mantido ocupada por ao menos um milênio, enquanto outros acreditam que sua ocupação pode ter perdurado por mais de dois mil anos.

Também impressiona a estrutura da sociedade em si. Embora não existam registros escritos, o estudo dos restos mostram muito pouca diferença na qualidade de vida entre homens e mulheres, sendo as casas bastante similares, em alguns casos quase idênticas. Também há poucas divisões sociais, apontando para um tipo de sociedade igualitária. Não foram encontrados indícios que apontem para qualquer tipo de governo ou centro administrativo responsável por regular a lei e a ordem na cidade. Todos os habitantes parecem ter a mesma importância com acesso aos produtos e o mesmo grau de saúde, o que seria uma verdadeira utopia atingida na pré-história.

Entretanto, embora os arqueólogos defendam a existência de uma igualdade social, há sinais de que em outros aspectos a sociedade não era inteiramente livre. Os moradores pareciam obrigados a se submeter a um controle social rígido - sendo que, aqueles que não se enquadravam neste eram presumivelmente forçados a partir. O que Çatalhöyük comprova é que para a sociedade funcionar havia a necessidade de certo grau de homogeneidade. Por gerações, os costumes foram preservados de forma ferrenha e qualquer desvio, era visto como inaceitável.

Representação da Deusa Mãe da Fecundidade
Mas se havia tanto equilíbrio, o que pode ter causado a derrocada de um lugar como Çatalhöyük? Como uma cidade de 2 mil anos de ocupação teria sido esvaziada e abandonada por famílias que ali residiram por gerações em total paz e tranquilidade?

Há mais de uma teoria, ainda que nenhuma pareça ser conclusiva. É possível que brigas internas, motivadas por acúmulo de riqueza tenha sido uma das causas de desentendimento entre setores da população. As moradias mais "novas" apresentam crescimento e ensejam a possibilidade de que alguns moradores se tornaram "mais importantes" ou "mais ricos" do que outros.

A outra teoria para a derrocada de Çatalhöyük envolve o surgimento de diferentes religiões, cada qual com os seus próprios princípios e dogmas. Os arqueólogos encontraram várias estatuetas de caráter religioso nas ruínas: as mais antigas envolvendo representações de uma Deusa da Fecundidade, englobada pela imagem da Grande Mãe que provê a vida. Essas imagens mais antigas parecem ter sido gradualmente abandonadas em favor de outras divindades, a maioria delas antropomórficas, sendo que uma divindade com Cabeça de Touro se tornou muito popular. É possível que o advento desses novos deuses tenha causado uma cisão na perfeita harmonia da cidade. A existência de pelo menos dois templos "recentes" desse Deus Touro aponta para o fato de que religiões começaram a surgir e demandar uma porção cada vez mais importante da cidade. Para reforçar essa teoria, os pesquisadores encontraram regalia e objetos luxuosos que faziam parte da indumentária de sacerdotes que aos poucos passaram a constituir uma classe social à parte.

Não há como dizer ao certo se esse foi o motivo principal para a queda da cidade, mas parece ser uma excelente suposição. Disputas motivadas por interesses pessoais e religiosos frequentemente se tornaram ao longo da história um fator de turbulência social, ao que parece, até mesmo no Neolítico.

É possível que um dia eventualmente acabemos descobrindo o que aconteceu com essa grande cidade à frente de seu tempo. Mesmo hoje, apenas uma pequena fração dela foi desenterrada e é possível que as respostas para tantos questionamentos ainda se encontrem ocultos sob a terra. Por enquanto, ninguém é capaz de saber e a queda de Çatalhöyük, bem como quase tudo ao seu respeito, permanece como um mistério ancestral.

*     *     *

Usando a história totalmente real dessa incrível cidade e do povo que a habitou, é possível encaixar facilmente elementos dos Mythos de Cthulhu e escrever um Cenário.

Dos estranhos costumes e tradições com os cadáveres cujas cabeças eram removidas e guardadas no interior das casas, até os Deuses Ancestrais para os quais eles prestavam homenagem, tudo aqui grita MYTHOS!

Daria uma excelente aventura tendo como pano de fundo uma Expedição Arqueológica na Anatólia Turca. Eu iria situá-la em algum ponto de 1930 e incluir mais algumas lendas locais e questões políticas - já que em 1930 a Turquia era um verdadeiro barril de pólvora de disputas. 

Se valendo dos elementos descritivos, temos uma "Deusa Mãe", figura clássica que representa Fertilidade e Fecundidade que se encaixa perfeitamente no etos de Shub-Niggurath e um Novo Deus com Cabeça de Touro que poderia ser o Touro Negro, um dos Avatares menos conhecidos de Nyarlathotep. Talvez a derrocada da cidade tivesse sido causada por uma disputa religiosa entre facções de cultistas.

O Touro Negro, avatar de Nyarlathotep
Uma equipe de arqueólogos poderia encontrar nas escavações de Çatalhöyük indícios dessa cisão e a disputa entre divindades, bem como registros a respeito do que aconteceu nesse lugar. Talvez pudessem achar câmaras ocultas onde artefatos e fragmentos da história ancestral estariam aguardando para revelar sua verdadeira (e aterrorizante) história. 

O material é tão bom e repleto de possibilidades que a aventura praticamente se escreve sozinha...

Um comentário:

  1. Tem um romance chamado O Segredo Do Gênesis de Tom Knox que é exatamente sobre isso e se encaixa perfeito nos Mythos.

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