terça-feira, 19 de novembro de 2019

Sobre a Natureza do Mythos e Insanidade em Cenários de Horror Cósmico


A coisa mais misericordiosa do mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana correlacionar tudo que ela contém. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares tenebrosos de infinidade, e não estávamos destinados a chegar longe. As ciências, cada uma puxando para seu próprio lado, nos causaram poucos danos até agora, mas algum dia a junção das peças do conhecimento disperso descortinará visões tão terríveis da realidade e de nossa pavorosa posição dentro dela que só nos restará enlouquecer com a revelação ou fugir da iluminação mortal para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.

H.P. Lovecraft - 
O Chamado de Cthulhu

Esses tempos um jogador iniciante numa mesa em que eu estava narrando perguntou por que seu personagem devia enlouquecer depois de ver uma criatura. Por que ele não poderia simplesmente reagir e atacar o monstro? Por que ao invés de lutar, seu personagem caiu no chão balbuciando e chorando? 

Eu expliquei a ele o básico sobre Horror Cósmico, mas não sei se fui convincente. Nada pior do que ter um jogador frustrado... eu senti que ele queria algo mais, uma explicação melhor do que "é essa a reação de uma pessoa comum diante do abismo".

Pensando que outros jogadores iniciantes possam ter os mesmos questionamentos, resolvi escrever esse artigo cujo título, reconheço, é bem pomposo "Sobre a Natureza do Mythos e Insanidade em Cenários de Horror Cósmico". Não sei se ele vai dirimir as dúvidas existentes, mas é dessa maneira que eu vejo como o Horror atinge os personagens e por qual motivo eles agem da maneira que agem.

Sem mais, vamos em frente... 

Um dos princípios fundamentais do Horror Cósmico é que a natureza da realidade se mostra incompreensível para a mente humana. Nos acostumamos a viver num estado de satisfatória ignorância e deixar esse estado para descobrir o que realmente existe além do horizonte da dita "normalidade", resulta em uma catastrófica revelação capaz de arruinar nossa razão. Ser confrontado com evidências do real, fere a nossa psique de tal forma que o mais ponderado dos homens se vê transformado em uma pilha de nervos, incapaz de agir e funcionar em sociedade. 


No dogma do Horror Cósmico, o que humanos percebem como o "mundo real" é apenas uma fina camada de verniz sobre uma verdade muito mais profunda e escura - e essa verdade é tão alienígena e incompreensível que a mente humana não é capaz de contemplar os detalhes sem um grave risco. A noção de que conhecimento é poder, no cânone do Horror Cósmico é absurda. Conhecimento aqui é perigo, risco e dano. Quanto mais dele for acumulado pelo indivíduo, maior será o seu fardo e sofrimento.  

Essa realidade tão aterrorizante tem um nome e ela é o que convencionamos chamar de Mythos.

O Mythos é tudo aquilo que nos é mais estranho, horrivelmente bizarro e está incompreensivelmente além de nossa aceitação conceitual. É tudo aquilo que nos escapa à percepção e transborda para o reino do imponderável.  Uma excelente comparação do poder do Mythos, exercido sobre o homem é entendê-lo como um tipo de radiação letal. Uma força invisível e praticamente imperceptível, mas cuja ação se faz presente tão logo nos atinge, desencadeando efeitos que não podem ser ignorados. O Mythos tem esse mesmo poder insidioso: ele é praticamente imperceptível, até que nos atinge e começa a provocar danos maciços. Assim como a radiação atua sobre os tecidos do organismo necrosando, queimando e provocando a ruína física, o saber dos Mythos atua sobre a mente, erodindo a sanidade e pulverizando a razão.

Por vezes a mente humana sob ataque dessas verdades tenebrosas lida com elas da única forma possível: recorrendo a um mecanismo de proteção ilusório. Na incapacidade de correlacionar os fatos, nos iludimos em busca de uma explicação cabível para o que vemos, ouvimos ou sentimos. Qualquer coisa que nos permita nos isolar da horrível verdade. "Não pode ser, deve haver uma explicação razoável", dizemos a nós mesmos para amenizar o choque e o terror. A Ciência, a Teologia ou mesmo a Filosofia concedem alguns pequenos alentos na forma de uma visão minimamente racional do universo, mas elas são transitórias e pouco ajudam no fim das contas. Quando a revelação é compreendida e registrada, o dano já foi causado.  


No Horror Cósmico a ilusão máxima é a Loucura, que se torna a única maneira de lidar com as revelações. A mente do indivíduo é fraturada para proteger sua existência desse ataque. Em um universo caótico e esmagador, que outra solução a frágil mente humana encontraria além de abraçar esse caos e abandonar qualquer noção de realidade. Diante do colossal poder do sobrenatural - o estado além do natural, que outra medida poderia ser adotada? Para alguns, os que perdem a razão seriam os mais afortunados pois se desconectar da realidade seria o bálsamo para todas as aflições.

Outros tem muito menos sorte. 

O que dizer daqueles que tentam equilibrar os fatos e mergulhar cada vez mais fundo nas revelações? Estes passam a integrar a verdade do Mythos e são alterados em sua própria essência a medida que passam a ver o mundo como ele realmente é. Uma coisa é inquestionável, os que tem um vislumbre da Natureza do Universo são para sempre mudados.  

Um indivíduo exposto ao Mythos acaba afetado pela experiência transcendental. Sua percepção da realidade é alterada à medida que ele percebe o mundo à sua volta diferentemente do que sempre sentiu. Ele ouve coisas que outros humanos são incapazes de captar: os sons das esferas, os ruídos das dimensões se estreitando, a cacofonia distorcida de flautas que ressoam do Centro do Universo. Ele vê coisas que normalmente não eram perceptíveis, o mundo invisível revela seus contornos, as criaturas que habitam as dimensões vizinhas - normalmente imperceptíveis se apresentam e no canto dos olhos ele vislumbra coisas se arrastando. Uma miríade de odores fragrantes e pungentes são percebidos pela primeira vez, o fedor da campa, da corrupção e da estagnação, assomado por cheiros almiscarados e convidativos, de lugares jamais visitados preenche seu olfato com perfumes misteriosos. O sentido do tato é bombardeado por estímulos súbitos que a pele é incapaz de compreender, a carícia do mistério, o afago do secreto e o arrepio do proibido se derramam sobre ele. Como insetos rastejando sobre a pele nua, eles deixam um rastro limoso e gotejante. O paladar é igualmente afetado, torna-se por vezes apurado, capaz de detectar as mais sutis notas de amargo e doce, captadas no próprio ar carregado de miasmas. Em outras vezes o palato sensitivo desaparece por completo, tornando-se uma lembrança distante.

Mas os meros cinco sentidos são incapazes de registrar todos esses estímulos sensoriais despertados pelo toque do Mythos. O ser humano, a medida que se vê exposto a essa influência, começa a desenvolver outras percepções sensoriais até então adormecidas. Isso começa discretamente com pequenos arrepios e sensações até então inexistentes. O sexto sentido fomentado pelo Mythos é como um despertar. Um olho que tudo vê se abre e passa a registrar o sobrenatural e perceber sua ação nas pequenas coisas, bem como sua conexão com as grandes engrenagens do universo. É como uma presciência para o incompreensível. Dádiva para alguns, é a mais atroz maldição para outros.


Mas é claro, cada pessoa responde de modo diferente à exposição aos Mythos.

No Horror Cósmico a completa e total Insanidade se oferece como um recanto final. Aqueles que sondam demais as verdades e são por elas contaminados acabam buscando na loucura seu derradeiro porto seguro. Não faltam exemplos de personagens que reagem a exposição ao Mythos com uma loucura delirante (o que na língua inglesa equivale ao termo "Stark Raving Mad") - eles gritam, choram, berram, babam, ficam catatônicos, furiosos, tem crises e são tomados por fobias irracionais. Outros jamais despertam dessa experiência, se convertendo em cascas vazias.

Essas são as maneiras como a mente reage ao "veneno" do Mythos. 

Não é algo do qual se possa eximir ou escapar recorrendo à força de vontade ou auto-controle. A exposição ao horror cobra seu preço e ele tende a ser alto, não há como frear suas consequências. Por vezes, mesmo um sujeito cheio de bravura e coragem desaba. Muito embora alguns indivíduos ainda consigam mantém um aparente controle e serenidade, ninguém exposto ao Mythos sai incólume da confrontação. Mesmo os que absorvem o dano, tem que lidar com essa tempestade.  

Antes de ter contato com o Mythos cada indivíduo tem uma sanidade mais ou menos equilibrada. Sua estabilidade, senso e razão ainda não foram afetados pela experiência medonha. Quando eles são confrontados pelas evidências da insignificância do ser humano diante do universo ou pela existência desses horrores, a sanidade é pela primeira vez maculada. A reação em geral é traumática resultando em um stress capaz de deformar, torcer e finalmente quebrar a mente. 

No RPG Chamado de Cthulhu - e de fato, na maioria dos jogos com temática lovecraftiana, a maneira de representar o efeito do Mythos nos personagens é através de Pontos de Sanidade. Esses Pontos expressam quanto o personagem ainda mantém de controle sobre suas faculdades mentais. A medida que ele experimenta situações de horror, pavor e medo esse controle vai diminuindo e ele passa a ficar sujeito às condições extremas refletindo-se em fobias, loucura temporária, crises e outros efeitos. 

Há uma triste constatação nisso: quanto mais contato seu personagem tiver com o Mythos, mais provável será ele ficar completamente louco. Essa noção perversa vai no sentido inverso da maioria dos RPG onde a experiência enseja melhorias na capacidade dos heróis interpretados. Nos jogos lovecraftianos quanto mais experiente for o personagem, mais alquebrado ele será. 


Quando o grau de sanidade do personagem se altera os jogadores são convidados a interpretar a mudança de sanidade para insanidade. O choque, o temor, a angústia, o desconforto e a náusea... tudo isso se torna mais importante que o livre arbítrio do personagem. Ele age sob influência dessas sensações e se vê tomado por elas, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Cada sistema de regras possui sua própria mecânica que ajuda a interpretar o que está acontecendo, mas todos tem em essência o mesmo conceito: a loucura acompanha o Mythos e ela é a consequência direta dessa exposição. Não há como controlar o que é incontrolável. 

Para quem quer começar a jogar cenários que exploram o Horror Cósmico é preciso entender algo importante. Embora as aventuras envolvam lutas desesperadas contra cultos, conspirações e monstros, há um fator a mais na trama. Um mais discreto que diz respeito a luta interna dos personagens para preservar sua razão. Serão eles capazes de escapar das depredações do Mythos? Conseguirão lidar com o surgimento do Grande Cthulhu? Serão capazes de perseverar diante dos traumas sofridos? 

É bem possível que essas pobres almas eventualmente se verão reduzidas a lunáticos delirantes trancafiados em algum manicômio. É bem capaz que a última cena de um personagem veterano seja ele colocando o cano de uma arma na boca e apertando o gatilho, saltando de um precipício ou se lançando na garganta de um horror para que seus colegas escapem. As narrativas tendem a ser cruéis e em geral não se deve esperar um final feliz. 


Jogar Chamado de Cthulhu (ou Rastro, Cthulhu Dark, Tremullus, Cthulhu Dark e tantos outros) permite explorar mais fundo as mudanças dos personagens e tornar a sina deles algo bastante interessante de se acompanhar. A diferença entre a primeira e a última aventura de um personagem é sempre notável e é possível registrar cada passo desse percurso em especial onde ele foi tocado pelo horror. 

Algumas pessoas dizem que se sentem desmotivadas a jogar com tais personagens, pois sabem que o destino deles será trágico. Eu prefiro encarar isso como um bônus! Nenhuma outra ambientação permite ir tão fundo na psique de um personagem quanto aqueles que tratam do Horror Cósmico. 

Eu convido a todos que acham isso um demérito a encarar as inúmeras possibilidades dessas ambientações de mente aberta. E tenho certeza, no momento que você começar a perceber como isso pode ser interessante, você não vai querer outra coisa.

2 comentários:

  1. Genial!
    Interpretar a Loucura como resultado do contato com os Horrores Cósmicos e sendo um processo similar ao da Radioatividade, foi a cereja do bolo. Usar isso como qualquer narrativa, seja em RPG ou em contos faz as minhas células criativas borbulharem de excitação! =D
    Nunca me canso de ler este Blog!
    Mergulhei nos "Mythos" e adquiri um D20+2 de insanidade. kkkkk

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