quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Da treva à treva - O dia em que Zé do Caixão morreu


Num dia como outro qualquer, uma quarta feira de fevereiro, morreu Zé do Caixão.

Se tinha alguém que eu achava que ia viver para sempre, esse alguém, era o senhor José Mojica Marins, que se tornou alter ego de seu personagem mais famoso.  

Acabei de saber do falecimento dele, e como tenho um Blog de Horror pensei em escrever um resumo sobre a sua carreira. Mas acho que seria mais do mesmo... imagino que muitos já vão fazer isso e soaria repetitivo. Ao invés de ir por esse caminho, prefiro contar uma história do Zé do Caixão e do que ele representou para mim, enquanto fã do gênero terror.

A primeira coisa que tenho que deixar claro é que quando era criança, eu tinha um medo profundo  do Zé do Caixão. Não sei exatamente o que causava esse sentimento; se era a imagem do sujeito, com sua indumentária de coveiro com direito a cartola, capa e roupa preta. Se era a barba muito escura, a expressão de fúria com olhos injetados ou ainda, o sorriso maquiavélico. Mas é bem provável que fosse por conta das unhas! Ah, as unhas compridas e amareladas, retorcidas dando voltas. Aquilo era assustador! Ao menos parecia extremamente assustador, quando eu tinha 8 ou 9 anos de idade.

Eu lembro de ter visto Zé do Caixão em algum programa de TV e o cara positivamente me aterrorizou. Lembro que não consegui dormir, tamanha a impressão que o sujeito causou. Fiquei acordado temendo que Zé do Caixão se materializasse nas sombras do meu quarto, disposto a me retalhar com aquelas unhas torcidas que eu imaginava seriam afiadas como navalhas. 

Meus pais que falavam de Zé do Caixão com indisfarçável desprezo, contextualizaram a coisa. Disseram que ele fazia filmes horríveis e que eu era bobo de ter medo dele. Eram tempos em que o medo infantil de monstro era curado na base da frase "deixa de besteira, moleque". 


Quando fui entrando na adolescência a mística do Zé do Caixão continuava. 

Como fã de terror, conheci coisas que eram muito mais assustadoras do que aquele sujeito pitoresco de cartola e capa. Os filmes dele, entretanto, ainda eram um mistério já que não se achava em lugar nenhum para assistir. Na minha mente se criou o mito de que os filmes do personagem eram aterrorizantes demais e por isso não tinham permissão de serem exibidos em lugar nenhum. Nem em fitas, menos ainda na televisão.

Certo dia, visitando uma locadora famosa aqui no Rio, a Cavídeo de Botafogo, me deparei com uma descoberta notável. Eles dispunham em seu acervo de todos os filmes do Zé do Caixão. Aluguei quatro ou cinco deles de uma vez só. Carreguei os VHS para casa, escondidos numa mochila como se fosse um tesouro profano arrancado de um templo maldito. Um artefato maligno que precisava ficar oculto de olhos curiosos. Não queria que meus pais, meus amigos ou qualquer um visse que eu tinha alugado aquilo, queria assistir sozinho durante a madrugada e ter a minha impressão particular. 

Mais do que qualquer outra coisa, eu queria encarar o sujeito, olho no olho e saber se ainda sentiria medo daquele personagem que um dia me tirou o sono.

Numa espécie de ritual macabro, esperei que todos fossem dormir e coloquei para rodar o primeiro filme, o lendário "À Meia Noite Levarei sua Alma". Assisti ao filme cheio de expectativa. Mas na metade já estava incomodado. É difícil explicar o que senti na ocasião: Zé do Caixão talvez tenha sido meu primeiro choque entre expectativa e realidade.


Os filmes que eu, do alto de minha certeza de adolescente, chamei de lixo, me irritaram muito. Me perguntei porque ainda falavam daquele cara, se os filmes dele eram aquele arremedo de cinema. O negócio aos meus olhos era tão mal produzido, tão mal encenado, tão horrivelmente engendrado que cheguei a ficar com raiva. Era disso que eu tinha medo? Era aquilo ali a razão para ter perdido o sono? Eu devolvi os filmes, pondo em cima do balcão da locadora, como quem coloca o lixo pra fora de casa. Não queria ver mais nada desse cara.

Passou um tempo e eu esqueci do Zé do Caixão. Quando ele aparecia em algum programa, eu grunhia algum adjetivo: "tosco", "medonho", "ridículo"... 

Levou um tempinho até Zé do Caixão ressurgir apresentando sessões de filmes de terror meia-boca na televisão, numa sessão adequadamente chamada de Cine Trash. O cara encarava a câmera e entoava: "Você que está olhando, eu te amaldiçoo!" e disparava um monte de bobagens repletas de erros de português embaladas num sotaque indecifrável. Zé do Caixão pra mim estava morto, só faltava alguém o jogar num buraco e enterrar.

Mas como todos que amam terror sabem, nem tudo que está morto, descansa para sempre.

Minha redescoberta de Zé do Caixão veio quando eu estava com uns 25 anos.

Certa noite, voltando de um boteco, cheguei em casa tarde da noite e liguei a televisão. Estava passando justamente um filme do sujeito - "O Despertar da Besta". Não sei por qual motivo, contive o primeiro impulso de trocar de canal. Ao invés disso, olhei com mais cuidado, dedicando atenção ao esforço daquele sujeito de parecer assustador. Talvez ali eu tenha finalmente entendido... os filmes podiam ser toscos, mal feitos e em certos momentos constrangedores, mas eles tinham algo que os credenciava. Algo que demorei a identificar, mas que hoje compreendo como sendo legítima paixão pelo cinema e coragem de dar a cara à tapa.


Os filmes do Mojica sempre foram criticados, tratados como sub-arte, universalmente desprezados pelos críticos. Mas o público ainda assim lotava as salas de cinema para assistir aquelas produções baratas. O motivo talvez fosse o gosto pelo proibido, pelo estranho, pelo bizarro... mas eu tenho minha própria teoria.

O personagem Zé do Caixão conjurava uma aura de terror barroco típica de cidade do interior. Ele era a encarnação de tudo que a gente quando criança tem medo e é aconselhado a evitar pelos nossos pais. Ele era o vizinho de má fama que vivia no final da rua, o sujeito que morava perto do cemitério , de quem contavam histórias escabrosas, o velho com fama de feiticeiro que todos olhavam torto... seu personagem conseguia reunir tudo de que a gente, quando criança, aprendia a temer. Sua presença tocava uma corda esquecida de nossa memória afetiva.  

Lembro que pouco tempo depois, assisti os três primeiros e mais emblemáticos filmes do Zé do Caixão: "À Meia Noite Levarei sua Alma", "Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver" e "O Estranho Mundo do Zé do Caixão". Justo os que eu tinha visto e detestado uns 10 anos antes. Resolvi dar uma nova chance, e surpreendentemente vendo os filmes novamente, descobri que a tosqueira contida neles poderia vir a se transformar em seu maior atrativo.

Não vou forçar a barra dizendo que me tornei um fã da noite para o dia, mas com certeza fui aprendendo a apreciar sua arte de forma lenta, porém gradual. Zé do Caixão tinha algo de folclórico, um personagem proibido. Como mais tarde definiram com maestria, ele era "Maldito" por natureza.

Em 2008 por ocasião do lançamento do filme "A Encarnação do Demônio", Zé do Caixão voltou a ser relevante, sob o status de diretor cult. Os filmes dele foram remasterizados e  lançados em uma coleção de DVD (que eu comprei) e uma excelente biografia ("Maldito" editado pela Darkside) escrita por André Barcinski e Ivan Finotti, que tratou de dissecar em detalhes sua carreira.


A estréia de "Encarnação" aqui no Rio foi no lendário Cinema Odeon. Tive a sorte de conseguir um ingresso para assistir na pré-estréia, ocasião em que o próprio Mojica esteve presente ao lançamento. Lembro bem dele entrando na sala e sendo ovacionado pela multidão. Simpático e claramente tocado pelo carinho dos fãs, tirou a cartola e fez uma reverência, depois colocou de volta na cabeça e começou a amaldiçoar a todos apontando o dedo e dizendo: "Voceiz vão todos pros infernos, por ver esse filme... aqueles entre voceiz que tem juízo, saiam agora, pois depois, será tarde demais".

O velho Mojica beirando os 70 anos ainda tinha energia de sobra para encarar o personagem que o tornou famoso no Brasil e objeto de culto lá fora.

[Só um adendo: Confesso que sempre achei essa história dele ser famoso no exterior papo furado, ao menos até trocar palavras com algumas pessoas que realmente reverenciavam a obra do sujeito. Coffin Joe era bem conhecido entre os fãs de terror, principalmente americanos que venciam o obstáculo da legenda para assistir suas produções].

Terminada a sessão, tive a chance de encontrar o sujeito cara a cara.

Mojica, ou melhor Zé do Caixão, estava sentado numa mesa no lobby do cinema, distribuindo autógrafos para os fãs: usava a cartola, a capa e declamava alguma coisa para os que se aproximavam. Quando chegou minha vez, apertei a mão dele, sem desgrudar os olhos da unha do polegar, comprida, amarela e retorcida. Enquanto ele assinava um pedaço de papel (nunca vou me perdoar por não ter levado um DVD ou meu exemplar do livro para ele autografar), comentei meio sem graça.

"Quando era criança eu morria de medo do senhor". 


O velho terminou de assinar e me encarou, subitamente encarnando o personagem: "E eu não te assusto mais?"

Fiquei meio sem jeito, sorrindo amarelo e ele continuou:

"Eu te amaldiçoo, com todas as forças, mil vezes por ousar dizer que não sente medo de mim".

As palavras foram tão enfáticas que espocaram flashes de câmera de quem estava por perto e alguns chegaram a aplaudir o desempenho repentino. Sorri de novo, apertei a mão mais uma vez e me despedi agradecendo por ter sido alvo de sua temida maldição. Ganhei até um tapinha nas costas e um "até a próxima, querido".

Mojica era uma figura, o Zé uma figuraça... onde terminava um e começava o outro é difícil dizer.

Foi esse Ser que nos deixou nessa quarta.

Cansado e disposto a embarcar em uma derradeira viagem trevosa rumo a alguma outra realidade, dimensão ou plano de existência, decidiu partir. Imagino o espírito desencarnado do Zé do Caixão, vestido com indumentária completa contemplando os portões do Céu e os abismos do Inferno, tentando decidir o que faria primeiro: Cuspir na cara do Diabo ou gargalhar diante da Obra de Deus.

Tinhoso como era, provável que consiga entrar onde bem entender.

Descanse em paz e aproveite o que vem pela frente.


2 comentários:

  1. Fabuloso Zé do Caixão. Acho que todos que gostam do terror, invariavelmente se sentem atraídos pela persona macabra dele.

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  2. Também tive a sorte de conhece-lo pessoalmente. Figuraça mesmo!

    Ele e suas ideias deveriam ter sido mais valorizado nos anos 60 e 70, quem sabe assim a produção de cinema nacional teria crescido além do embuste de telenovelas globais transportadas para as telonas hoje em dia.

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