quarta-feira, 15 de julho de 2020

Panteão do Horror - Quando os Mythos faziam parte de D&D



Com base no artigo de Zach Howard

O RPG Call of Cthulhu, publicado no distante ano de 1981, não foi a primeira tentativa de trazer os Mythos Lovecraftianos para o universo os RPGs de mesa. Alguns anos antes disso, os Mythos serviram como um Panteão comum (ainda que perigoso) na primeira versão de Dungeons and Dragons. Isso se deve principalmente aos esforços do Dr. J. Eric Holmes. Mais conhecido por ter trabalhado na edição da primeira caixa básica de D&D em 1977, Holmes se tornou um fã dos RPG através de seus filhos adolescentes que jogavam a edição publicada em 1974. Ele gostou tanto do jogo que acabou se tornando DM, narrando uma extensa campanha não apenas para seus dois garotos, mas para os amigos deles que vinham se reunir nas sexta feiras à noite para animadas explorações de masmorras e ruínas abandonadas.

A Campanha de Holmes tinha tudo aquilo que tornou D&D um sucesso: Batalhas épicas, magias explosivas e monstros aterrorizantes. Mas a campanha do Mestre Holmes tinha um importante diferencial, algo que a tornava única! Elas estavam repleta de Horrores Lovecraftianos.

Holmes era um fã de longa data das histórias de Lovecraft desde os tempos de adolescente quando descobriu o gênero através de revistas pulp. Ele cresceu lendo aqueles contos de horror cósmico e compreendeu que seria perfeitamente natural inserir aquilo no universo de D&D, Inventou assim uma sinergia especial para sua campanha e os contos que tanto amava. Seus magos e guerreiros, elfos e anões, enfrentavam orcs e goblins, mas de vez em quando, tinham de usar suas armas e magias para dar cabo de Shoggoths e Abissais. Holmes também temperava os cultos de seu mundo com um toque de loucura típico dos Mythos. Então, em algumas aventuras o grupo de heróis podia cruzar com cultistas de Cthulhu ou feiticeiros devotados a Shub-Niggurath.


Suas campanhas deviam ser ótimas! Em março de 1977, na edição do fanzine Alarums & Excursions, ele descreve um cenário em que o grupo encontrava páginas do Necronomicon e tinha de impedir que um bando de cultistas degenerados invocasse uma Cria Estelar de Cthulhu. Pouco depois em um artigo publicado em 1980 na revista Psychology Today, com o título "Confissões de um Mestre de Masmorra", Holmes relata uma aventura onde um cavaleiro é teleportado por Mi-Gos para uma cidade negra e ciclópica no Planeta Yuggoth. No mesmo artigo, ele comenta que seus jogadores exploravam os recantos de Barsoom e da Hiperbórea, encontrando lugares inspirados pelas obras de Edgar Rice Burroughs, Robert E. Howard, H. Rider Haggard, A. Merritt, Clark Ashton Smith e é claro, seu favorito, H.P. Lovecraft. "Algumas vezes os jogadores reconheciam onde se passava a aventura, em outras vezes, não. E essa era a graça". 

Holmes, um professor de medicina da Universidade de Santa Cruz (USC), eventualmente escreveu para a TSR (empresa que publicava o D&D) e se ofereceu para editar o livro de regras do sistema. Sua contribuição foi notável, com a inserção de várias de suas ideias que tornaram o jogo mais fácil para iniciantes compreenderem. Gary Gygax um dos chefes da TSR gostou tanto do trabalho que chamou Holmes para fazer outros ajustes no que se tornaria o segundo Livro de Regras Básicas publicado no verão de 1978.

Holmes não esqueceu de inserir nas regras alguns dos elementos que tornavam sua mesa diferenciada. Através dele, referências ao Mythos de Cthulhu "acidentalmente" escorregaram para a ambientação, ele escreveu por exemplo que "quando os personagens xingam e amaldiçoam seus inimigos clamam pela fúria de deuses e entidades apropriadas como Zeus, Crom e Cthulhu".

Os primeiros suplementos do D&D original foram lançados em seguida e um deles tinha um título que interessava particularmente ao Dr. Holmes: "Gods, Demi-Gods and Heroes" (1978). O livro introduzia uma série de Panteões para os personagens interagirem, fosse para venerar essas estranhas divindades ou para se opor a elas. O livro incluía mitologias como a Hiperbórea de Robert E. Howard, apresentando inclusive o terrível Deus Sapo "Tsathoggus", mas não trazia ainda referências específicas a obra de Lovecraft.

Mais tarde naquele mesmo ano, Holmes conheceria um dos autores de D&D na Gen Con X, Rob Kunz com quem ele debateu animadamente a possibilidade de inserir os Mythos numa futura revisão para o "Gods, Demi-Gods and Heroes". Holmes e Kuntz se tornaram parceiros de correspondência (sim, isso foi muito antes da internet) e a troca de cartas se tornou base para um artigo publicado na edição de número 12 da Dragon Magazine. O título não poderia ser mais direto ao ponto: "Os Mythos Lovecraftianos em Dungeons and Dragons". 

O manuscrito original do trabalho demonstra que Holmes escreveu a maior parte do artigo, incluindo a introdução e todas as descrições e estatísticas das divindades, com exceção de Cthugha, Itaqua e Yig, que foram contribuições de Kuntz na revisão. Holmes apresentou os Mythos em duas partes distintas. A primeira tratava de "Deuses Lovecraftianos, os Grandes Antigos" e incluía colossos poderosos e indizíveis como Azathoth, Cthulhu, Hastur, Nyarlathotep, Shub-Niggurath, Cthugha, Ithaqua, Yig, e Yog Sothoth, além de descrições do Necronomicon e do Símbolo Ancestral. Ser um seguidor dessas entidades apavorantes era algo extremamente perigoso, alardeava o texto: "Clérigos malignos ou utilizadores de magia que clamam pelo poder dos Grandes Antigos, usando as perigosas magias contidas no Necronomicon ou outros livros de conhecimento profano, tem 25% de chance de invocar acidentalmente os deuses ou alguns de seus serviçais."

Os horrores lovecraftianos eram portanto, um elemento aleatório de caos primal, terrível, incompreensível, incontrolável... fica bem claro que desde o início Holmes conseguiu captar e traduzir para D&D as principais características do Horror Cósmico. Ninguém comanda esses seres hediondos, ele estão acima dos mais poderosos feiticeiros que sussurram seus nomes proibidos com um misto de terror e reverência.

 A segunda parte do artigo se referia a "Raças não humanas ou parcialmente humanas" e cobria entre outras coisas as estatísticas dos Byakhee, Abissais, da Grande Raça de Yith, da Raça Ancestral, Mi-Gos e é claro, Shoggoths. O artigo apresentava uma lista considerável de horrores que se juntavam ao bestiário convencional dos mundos de espada e magia, adicionando adversários verdadeiramente aterrorizantes. Infelizmente não haviam ilustrações dessas criaturas e os leitores tinham de imaginar, num grande exercício de criatividade o que eram aquelas criaturas cheias de tentáculos e dentes pontiagudos.

Uma carta de um leitor na edição #14 da Revista Dragon demonstrou enorme interesse nos Mythos e pediu por mais criaturas. Holmes respondeu a ele com uma continuação do artigo na edição #16 da Dragon. Lá ele descrevia que "os Deuses Lovecraftianos eram praticamente imunes aos ataques de mortais e que uma campanha que visasse destruí-los "precisaria contar com o apoio de poderosos NPCs, como Thor ou Ra, que concederiam armas e poderes aos heróis para equilibrar uma eventual confrontação".

Numa carta respondida posteriormente ele explica o seguinte pormenor: "Eu espero que qualquer DM interessado em usar o Grande Cthulhu em seu jogo leia o conto Chamado de Cthulhu e tenha uma boa ideia do quão terrível ele é". Em outra resposta a uma carta ele escreveu "se um dia Cthulhu escapar de sua prisão em R'Lyeh, todos os persoagens do mundo teriam de testar um Saving Throw para não enlouquecer".

Além de seus trabalhos na TSR, Holmes também foi chamado para escrever para a editora Arkham House. Ele foi o autor de "The Cthulhu Mythos: A Glossary" em conjunto com Francis Laney e "H.P. Lovecraft: The Gods" na ilustre companhia de Lin Carter.


Em 1979 o Advanced Dungeons & Dragons despontava no horizonte como uma evolução natural do D&D e quando o Manual do Mestre, o Dungeon Masters Guide chegou às lojas trazia a lista de leitura para inspirações formulada por Gary Gygax, o lendário Apêndice N. Entre os nomes incluídos nessa lista estão H.P. Lovecraft e August Derleth, ainda que nenhum conto em especial tenha sido mencionado. Pouco depois disso, "Gods, Demi-Gods and Heroes" foi revisado por James Ward e Rob Kuntz e publicado no verão de 1980 com o título "Deities & Demigods", o quarto suplemento para Advanced Dungeons & Dragons.

Naturalmente o material dos Mythos Lovecraftianos havia sido incluído nessa edição. Ele recebeu um novo título "The Cthulhu Mythos", junto com fantásticas ilustrações de um dos principais artistas da TSR na época Erol Otus

Muitos jogadores old school conhecem essa história. Alguns lembram dela como a primeira aparição das criaturas dos Cthulhu Mythos em um livro oficial de Dungeons and Dragons. Mas o que pouca gente sabe é que esse capítulo era uma revisão direta dos artigos escritos por Eric Holmes para a Dragon Magazine. Muito se comenta que Holmes não recebeu os devidos créditos como co-autor desse material e que ele foi lembrado apenas em uma nota de rodapé pela sua "ajuda com os Mythos de Cthulhu" na sessão de créditos e agradecimentos. Uma análise do artigo original da revista e do "Deities and Demigods" mostra claramente que o segundo decorre diretamente do primeiro, com algumas pequenas mudanças para conformar as entidades dentro dos mundos de D&D.

Por exemplo, o texto de Holmes dizia que Alhazred havia sido morto por demônios invisíveis nas ruas lotadas de Damasco, diante de inúmeras testemunhas. Já no Livro oficial, ele havia sido morto em uma cidade à beira de um deserto por demônios invisíveis, diante das mesmas testemunhas.

Haviam outros trechos revisados, mas todos guardavam grande semelhança com os textos escritos por Holmes em seu artigo original. Uma das entidades, Yig, por alguma razão havia sido completamente esquecido no Livro. Ironicamente, uma entidade serpente daquele tipo funcionaria perfeitamente em um mundo de fantasia como D&D.

Os Mythos de Cthulhu estariam presentes na primeira e segunda edições do Deities and Demigods, sendo que na segunda havia uma nota de agradecimento a Chaosium pela permissão concedida para usá-los no livro. Entretanto, os Mythos seriam removidos pela TSR na terceira edição em diante, junto com a Mitologia de Melnibononé (da Saga de Elric de Melniboné criada pelo autor britânico Michael Moorcock). Isso reduziu o livro das 144 páginas originais para 128.

Muitos rumores circularam nos bastidores a respeito da razão para isso ter acontecido, mas Jim Ward recentemente confirmou que isso foi feito à pedido da Chaosium ainda que a Arkham House e MIchael Moorcock tivesse dado permissão para continuar com o uso. Essa remoção, é claro, coincidiu com o lançamento do RPG Call of Cthulhu em 1981, que marcou o início do primeiro jogo diretamente inspirado pela obra de H.P. Lovecraft. Pouco depois, o Universo de Moorcock também seria adaptado pela Chaosium em outra ambientação com o selo da editora chamada "Stormbringer" (o nome da lendária espada de Elric).

Mas apesar de Lovecraft deixar de estar presente explicitamente em D&D era inevitável que algumas criaturas fossem adaptadas. Os Shoggoth assim se transformaram nos Black Pudins e Gibbering Mouthers, os Abissais viraram os Kuo-Toa e os horrores tentaculares marcaram presença como os temidos Mind Flayers (Devoradores de Mentes, que guardam notável semelhança com o próprio Cthulhu). É uma pena, mas a presença dos Horrores Lovecraftianos tiveram uma curta existência nos mundos pontilhados de masmorra e povoados por dragões do mais popular RPG do mundo. Posteriormente eles fariam aparições pontuais aqui e ali, até surgirem novamente na quinta edição, com os horrores os Mythos referenciados como abominações de um lugar insano chamado "Far Realm" (Reino Distante).

O uso de Holmes para o Panteão Lovecraftiano não terminou ali.

Ele escreveu várias obras de ficção se passando nos mundos de D&D em que narrava e que possuía óbvia inspiração lovecraftiana. As histórias eram protagonizadas pelo halfling Boinger e o Elfo Zereth, personagens de seus filhos. A mais conhecida dessas histórias "O Labirinto do Perigo", apresenta os Dagonitas (essencialmente Abissais) como os principais inimigos. Essas histórias, junto com o popular artigo "Confissões de um Mestre de Masmorra" se tornaram as mais conhecidas contribuições de Holmes para o hobby e foram republicadas na coleção Tales of Peril, disponível pela Black Blade Publishing. 

3 comentários:

  1. Muito bom... interessante esse uso dos Mythos no universo de D&D.

    ResponderExcluir
  2. HUAUHAHUA Saving throw de insanidade, olha as ideias desses leitores rsrsrs Fantástico! Parabéns! Que saudades do meu AD&D rsrsrrs

    ResponderExcluir
  3. CURIOSAMENTE em Pathfinder usa os Mythos de Cthulhu diretamente, inclusive muitos dos monstros como os Shoggoth, Night Gaunts e tal aparecem como criaturas em Bestiários básicos do sistema. Uma das "Adventure Paths" do jogo é toda baseada em Hastur e Corcosa, desde a primeira aventura, que tem o criativo nome de Strange Aeons, vale a pena conferir.

    ResponderExcluir