quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Anatomia Alienígena: Um novo olhar sobre a Raça Ancestral


Com base no artigo do artista gráfico Kurt Komoda, responsável por esses impressionantes desenhos da anatomia da Raça Ancestral.

Os monstros criados por H.P. Lovecraft, sejam eles imensos Deuses das profundezas insondáveis dos oceanos ou algo estranho habitando um porão abandonado, tem povoado nossa imaginação desde que seus primeiros trabalhos foram publicados. Lovecraft tinha o dom de implantar em nossa mente imagens tenebrosas de coisas absurdamente alienígenas. Monstros no sentido mais bizarro do termo, seres que desafiavam concepções e que causavam um misto de fascinação e repulsa.

Em geral suas descrições eram primorosas, com detalhes quanto a cores, cheiros, padrões, texturas... mas em ao menos um caso, Lovecraft se excedeu e concedeu detalhes tão assustadoramente precisos e criteriosos que é quase possível sentir a criatura como algo vivo e real. Estamos nos referindo, obviamente aos representantes da célebre Raça Ancestral, os Elder Things, da clássica novela "Nas Montanhas da Loucura", escrita em 1936 num dos momentos mais criativos da carreira do autor. 

No conto, Lovecraft descreve a descoberta realizada pelos membros da Expedição Miskatonic na Antártida entre os anos de 1930-1931. Eles encontram os restos de criaturas chamadas, na ausência de um nome mais adequado, de "Antigos", seres que teriam vivido naquela localização remota há milhões de anos. No roteiro, temos o prazer de ler a descrição dos espécimes achados, tanto os parcialmente deteriorados, quanto os intactos que foram removidos de uma caverna que os preservou ao longo de eras. O relatório é feito pelo biólogo Lake, que faz as anotações ao longo de seu exame necroscópico.
 

O que nós temos é uma descrição completa, com medidas, distâncias e extensões de cada pormenor que constituía a estranha anatomia da criatura. Sabemos que Lovecraft estudou relatórios científicos de exames periciais realizados por biólogos e se espelhou nesses documentos para compor sua descrição. Seu objetivo era fazer com que o relatório do seu personagem fosse o mais fidedigno possível e que realmente parecesse o relatório de um especialista analisando uma forma de vida até então desconhecida.

É curioso, mas analisando a descrição completa da Raça Ancestral, surpreende a forma como vários artistas, dada a quantidade de detalhes, cometem tantos erros. Não estou dizendo que minha interpretação é perfeita, mas nos desenhos que vemos a cabeça é representada grande demais, o corpo muito pequeno, as asas estendidas são muito curtas e outros pontos que de acordo com a descrição criteriosa parecem completamente equivocados. A maioria dos artistas também parece ignorar que a Raça Ancestral possui 5 asas cobertas de pelos, uma em cada extremidade do seu torso. O número de asas é mencionado mais de uma vez e soa realmente estranho que ele esteja quase sempre errado.    
  
No conto, o primeiro espécime encontrado na caverna parecia uma mistura de algum tipo de ser vegetal e uma espécie desconhecida de vida marinha. O espécime estava muito avariado, sendo que o pescoço bulboso estava ausente, bem como porções inteiras que constituíam seu corpo abarrilado. Da mesma forma a cabeça e as pernas haviam se perdido, bem como parte de seus braços crinoides. As asas estavam bastante avariadas, mas ainda presentes de modo que a sua forma original podia ser presumida. 

A representação desse primeiro espécime, bastante mutilado, deveria ser algo semelhante ao desenho abaixo:


Através dele é perfeitamente compreensível a dúvida surgida entre seus descobridores a respeito de sua origem e onde encaixá-lo na cadeia biológica. Com tantos membros ausentes era difícil categorizar a criatura no reino vegetal ou animal. 

O desenho seguinte representa um dos espécimes encontrados intactos e com as dimensões conforme descritas no texto, com base nele foi possível determinar se tratar de uma criatura viva, provavelmente do reino animal, ainda que diferente de tudo já visto até então.

O texto descreve algo semelhante ao desenho que se segue:


A altura total da criatura é de 2,40 metros, com o torso cinza escuro, em formato de barril medindo 1,80 da extremidade inferior até o pescoço. Em cada extremidade desse tórax, se destaca uma espécie de pescoço bulboso de coloração cinza clara. Ambos dotados de guelras que não são descritas em detalhes, mas que provavelmente auxiliam na respiração submarina. 

No pescoço superior encontramos uma estrutura em formato de estrela do mar que corresponde à cabeça. Cada braço dessa cabeça estrelada possui 60 centímetros de comprimento e é coberta de cílios prismáticos com até 5 centímetros de comprimento. Estes possivelmente tem propósito sensorial possivelmente captando calor e odores. Na ponta de cada braço da cabeça estrelada pode ser encontrado um caule flexível que se estende até 7,5 centímetros e que termina num globo iridescente de coloração vermelha que corresponde aos olhos. Também em cada extremidade dos braços da estrela encontram-se tubos em formato de sino que abrem e fecham. Estes possuem pequenos dentes brancos afiados responsáveis por cortar alimentos despejados nessas bocas. Ainda no topo da cabeça, ocupando o centro da estrela há um orifício em forma de fissura latitudinal que faz as vezes de aparato de comunicação.
     
O torso em forma de barril possui cristas externas de onde despontam cinco varas finas que correspondem a braços crinoides. Cada um desses braços se estende por 15 centímetros aproximadamente, até se dividir em outras cinco ramificações de igual diâmetro com 20 centímetros de comprimento. No final de cada um destes braços há um conjunto de cinco tentáculos com outros 5 centímetros de comprimento. Estes seriam os dedos das criaturas, capazes de realizar diferentes tarefas tácteis, desde erguer objetos pesados até segurar um item delicado com cuidado.

No torso abarrilado existem sulcos onde se encaixam as 5 asas cinza escuras compostas de material membranoso, que se abrem como um leque e que se estendem até um total de 2,10 metros de envergadura. As asas são suportadas por uma estrutura tubular ou glandular de coloração cinza escura que tem por função conceder rigidez ao aparato de voo e fazê-lo se mover. A formação desses tubos não é descrita.     

Na extremidade inversa do torso em relação à cabeça, encontra-se um segundo pescoço cinza claro que se abre em uma estrutura verde escura de onde se projetam as pernas da criatura. Estas medem 15 centímetros de largura e tem 1,20 metros de comprimento, terminando em estruturas triangulares espalmadas semelhantes a nadadeiras de focas. Ao redor da estrutura verde escura podem ser vistos tubos avermelhados com 5 centímetros de diâmetro que servem como sistema excretor.  

Um total de 14 espécimes foram retirados do gelo na caverna, sendo que 6 estavam avariados e 8 perfeitamente intactos. Os oito aparentemente se encontravam em algum tipo de rigor mortis, com olhos e bocas dobrados e fechados, com as pernas recolhidas e o sistema excretor lacrado, conforme se vê no desenho abaixo:


Mas vamos nos concentrar na cabeça em forma de estrela-do-mar da Raça Ancestral. 

O conjunto de pequenos cílios que recobrem o topo da cabeça desses seres raramente aparece nos desenhos representando a espécie. Esses cílios, descritos claramente por Lovecraft no conto, teriam grande importância sensorial. Vários animais na Terra possuem conjuntos similares de cílios espalhados pelo corpo que os auxiliam a interagir com o ambiente à sua volta e melhor percebê-lo. Esses cílios no topo da cabeça lembram um tipo de grama prismática, cercando a boca no topo da cabeça.

A boca no topo da cabeça não serve à função de alimentação, sendo um orifício exclusivamente utilizado para comunicação. Ele produz sons que são soprados e sua modulação depende da extensão da abertura. o famoso som "Tiki-li-li" (curiosamente mais associado aos Shoggoth do que com a Raça Ancestral) é produzido com a contração de sopros através desse orifício, como se fosse ele uma flauta.

As bocas responsáveis pela alimentação ficam distribuídas ao redor dos braços da cabeça e parecem tubos avermelhados em forma de sino. Essas bocas tubulares agem como esfíncteres abrindo e fechando para empurrar alimentos sólidos pelo tubo. No processo de alimentação, dentes afiados distribuídos nas paredes do tubo, cortam e fatiam o alimento a medida que ele é empurrado através dele. A absorção de líquidos também é feita através desses tubos. Pouco se sabe a respeito da alimentação da Raça Ancestral, mas é perfeitamente possível que eles produzissem seus alimentos num primeiro momento. Posteriormente, com o surgimento de formas de vida, por eles criadas, a alimentação da Raça Ancestral pode ter se alterado para incluir animais e vegetais. Não há dados a respeito de como se dá a absorção de energia e o processo de deglutição desses seres.


Os olhos da Raça Ancestral não são descritos no conto além da expressão "globos vítreos vermelhos". Eles podem ser sem pupilas, mas a maioria dos desenhos os mostra com pequenas pupilas negras, embora o texto seja bastante claro a respeito da coloração escarlate.

Embora Lovecraft não diga, os globos oculares ocupam a extremidade de caules flexíveis móveis, conforme ele desenhou em um cartão na época em que estava escrevendo Nas Montanhas da Loucura. Isso concede às criaturas uma visão de 360 graus que garante a eles uma enorme percepção do mundo à sua volta.

Os olhos são desenhados comumente pelos artistas de três maneiras: com uma pálpebra completa que recobre todo olho e se recolhe em determinados momentos expondo o globo, como um globo vítreo totalmente exposto e finalmente, com uma semi pálpebra protetora. Não há um consenso de qual deles seria o mais fiel e nesse caso, aparentemente o conceito depende apenas do gosto dos artistas.


Seguindo para uma análise do pescoço (ou dos pescoços), o que chama atenção a respeito dessas estruturas é a presença de guelras. Infelizmente, a descrição de Lovecraft a respeito dessas estruturas vitais para a respiração dos animais marinhos, é bastante simplória. Ele se limita a dizer "sugestão de estruturas como guelras".

A maior parte dos desenhos tende a ignorar esse detalhe, mas quando ele aparece nos desenhos surge na forma de 5 fendas ou ranhuras horizontais que se abririam e fechariam recolhendo água e filtrando o ar para absorção respiratória. O formato das guelras parece associado à de animais da Terra, embora geralmente as guelras surjam em número de 3. O detalhe do desenho abaixo mostra as guelras em conjuntos de três, distribuídas ao redor do pescoço bulboso da criatura.     


Sobre os braços, Lovecraft escreveu que eles seriam de origem crinoide, o que significa que eles são mais "penugentos" e delicados do que a representação vista na maioria dos desenhos. Eles deveriam ser bastante fortes, o bastante para erguer objetos pesados e ágeis a ponto de permitir a manipulação de itens delicados. 

Na maioria dos desenhos as proporções são desenhadas de modo errado, com os braços na maioria das vezes parecendo menores do que realmente são. Os grupos de braços se dividem em outros braços e estes em tentáculos resultando em um total de 25 braços. É possível que individualmente esses braços não fossem tão fortes, mas isso seria compensado pelo uso de vários deles para a realização das tarefas. Por exemplo, para erguer uma ferramenta pesada, os dedos tentaculares envolveriam o cabo da ferramenta e dois ou três braços seriam responsáveis por erguer o instrumento simultaneamente. esta especialização dos membros e seu uso conjunto denota uma enorme capacidade de coordenação motora.

No conto ficamos sabendo que a grande raça é capaz de manipular objetos delicados como palitos de fósforo e bisturis cirúrgicos com firmeza e presteza. Os tentáculos que servem como dedos envolvem os objetos e os seguram de maneira bastante habilidosa.

No desenho abaixo é possível ver os dedos tentaculares habilmente manipulando as extremidades de um cubo mágico. Realizando movimentos com facilidade de uma maneira até mais rápida que os dedos de um ser humano. 


Quanto às asas.

As asas em geral são um problema nas representações da Raça Ancestral. Lovecraft as descreve como cristas ou asas dobradas sobre si mesmas que se estendem como leques. Ele não diz onde exatamente elas estão fixadas, mas parece ser consenso que estruturas tão grandes devem estar presas ao torso abarrilado. 

As asas seriam preenchidas por um tecido membranoso mais fino pendendo em estruturas tubulares. O relatório de Lake cita que essas estruturas seriam similares a veias que dividem as asas e esta é a forma mais comum delas serem representadas. A questão de como as asas se dobram e como elas são "guardadas" em fendas nas laterais do tórax também levanta questionamentos. Elas não poderiam simplesmente abrir e fechar como leques de papel e ainda assim atingir uma envergadura de 2,10 metros.  


Para que asas tão grandes fossem guardadas nessas fendas deveríamos considerar que elas se dobrassem não apenas no sentido latitudinal, mas também longitudinal. Nos desenhos abaixo estão representações de como as asas ficariam acondicionadas nessas fendas em posição de descanso. 

Nessa representação, as asas se abrem como leques de papel (fig. A), e se estendem em seguida através das estruturas tubulares que se esticam (fig. B) e permitem que as membranas se prolonguem, tornando-se rígidas o bastante para garantir a capacidade de voo (fig. C).  


Entretanto, a descrição de Lovecraft cita que a Raça Anciã teria nada menos do que cinco asas. A questão que se põe, envolve como essas cinco asas, cada qual com 2,10 de envergadura seriam usadas na prática para alçar voo. Existe a sugestão de que cada par de asas seria usada para diferentes manobras e dificilmente usadas simultaneamente. De fato, ter cinco asas não parece ser algo prático do ponto de vista de nosso planeta: nenhum animal terrestre possui tal combinação. 

Segundo o conto, milhões e milhões de anos de adaptação à atmosfera terrestre fez com que a espécie perdesse sua capacidade de realizar viagens interestelares. Com isso, as asas deveriam ter sofrido alguma modificação, possivelmente uma atrofia. Lake em seu relato afirma que as asas parecem ter se adaptado ao ambiente marinho. Elas seriam usadas como nadadeiras para impulsionar o deslocamento submarino com lufadas capazes de propelir seu corpo.   


As pernas: "Fortes e musculosas, com 1,20 metros de comprimento", permitiam o deslocamento em terra e eram usados para sustentação quando eles desejavam ficar imóveis, em posição ereta de observação e alerta.

O movimento das pernas permitiria uma locomoção adequada em terra, ainda que a Raça Ancestral pareça muito mais à vontade na água. Ao se deslocar em terra, eles deveriam ser mais lentos e um bocado desajeitados em seus movimentos. 

Na extremidade de cada perna, a Raça Ancestral tinha uma espécie de nadadeira triangular que também foi se adaptando ao ambiente marinho. No ambiente terrestre, essa nadadeira seria bem menos prática, precisando ser arrastada como fazem as focas, lontras e morsas. Foram essas nadadeiras que deixaram os curiosos rastros fossilizados no interior da caverna descoberta pela Expedição Miskatonic.  
 
O método de deslocamento em terra da Raça Ancestral envolve o arrastar de seu corpo com as pernas distribuídas cada qual para um lado o impulsionando.

Já num ambiente aquático, o movimento comparativamente é bem mais rápido e elegante. 


Inspirado pelo movimento dos cefalópodes terrestres, aqui temos um exemplo de como se daria o deslocamento da Raça Ancestral utilizando as pernas e as asas para impulsão submarina.

Esse artigo é meramente um exercício criativo a respeito de um monstro que foi fartamente descrito pelo seu criador. Ele não se propõe a ser uma diretriz de como a criatura deve ou não deve ser representada mas constitui uma versão fiel ao texto.

Abaixo temos uma ilustração perfeitamente fiel da Raça Ancestral com base nos detalhes do texto e conforme o conceito idealizado por H.P. Lovecraft. 

NOTA: O desenho que emoldura o topo do artigo é bem diferente do conceito original. Embora ele seja oficial (pertence ao RPG Chamado de Cthulhu em sua versão francesa) é possível perceber que se trata de uma interpretação do artista responsável pela obra. Bem diferente do conceito apreciado nesse artigo.

5 comentários:

  1. Um artigo primoroso!Por favor,façam o mesmo com os ancient ones e os mi-go.

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  2. Os Mi-Go estão em uma série de artigos aqui no blog. Aqui está um deles especificamente sobre sua anatomia:

    http://mundotentacular.blogspot.com/2011/01/parte-animal-parte-fungo-anatomia-dos.html

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  3. Agradeço pela pronta resposta,e também pelo link.Por acaso vocês fizeram um post do tipo a respeito dos ancient ones?

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