domingo, 13 de dezembro de 2020

O Veneno do Basilisco - A Lenda do Animal mais perigoso da Era Medieval


Poucas criaturas ao longo da história causaram tanto terror no coração dos homens quando o lendário Basilisco, um monstro que assombrou por séculos a Europa e Norte da África. Como muitas maravilhas da antiguidade, ele era uma bizarra criatura híbrida: uma serpente escamosa, nascida do ovo de um galo e encubado por um sapo.

O Basilisco das lendas era afortunadamente bastante raro, mas decididamente mortal. As pessoas na Idade das Trevas acreditavam que ele era tão letal que um ambiente podia sofrer com sua presença nefasta: vegetação secava, animais definhavam e pessoas enlouqueciam. O mero vislumbre da besta seria suficiente para matar um homem. 

Figurando nos Bestiários do período, os estudiosos o definiam como a síntese da maldade e do terror contido na natureza. Uma fera que não respeitava nada e que impunha um regime de absoluto pânico, onde aparecesse. O Basilisco se tornou especialmente famoso na Idade Média, como um inimigo a ser derrotado por heróis e protagonistas dos romances de cavalaria, provável que apenas os Dragões fossem mais temidos que estes seres. 

Contudo, as mais antigas representações a respeito do monstro datam de séculos antes. Plínio, o Velho, famoso cronista do mundo antigo foi o pioneiro ao descrever a criatura em seu História Natural (do ano 79 d.C). Os 37 volumes de sua obra prima foram concluídos pouco antes do autor sufocar diante dos vapores tóxicos que ainda emanavam do Monte Vesúvio, quando ele decidiu investigar a erupção que devastou Pompéia.  

De acordo com o pesquisador romano, o Basilisco era um animal de pequeno porte, "não muito maior do que 12 dedos de comprimento", mas ainda assim horrivelmente mortal. "Ele não impele seu corpo como as demais serpentes, por uma flexão, mas avança ereto", dizia Plínio em sua explanação. Essa era uma descrição de acordo com a noção de que o Basilisco era o Rei das Serpentes, um réptil que não se conformava em rastejar pelo chão como os demais de sua espécie. Outra noção defendida por Plínio é que a besta era capaz de matar apenas com um olhar, podendo em suas palavras "matar os arbustos, sem ter com eles contato, meramente respirando sobre eles seu hálito letal".  Também seria tão terrível que poderia partir pedras com um simples sibilar.


Plínio afirmava que o Basilisco era nativo das terras do Norte da África, mais especificamente dos Desertos da Líbia. Os romanos acreditavam que o vasto Deserto do Saara no passado havia sido uma terra de selvas luxuriantes até que os Basiliscos contribuíram para torná-lo um deserto estéril de areia e dunas.

Outro poeta romano, Lucano foi responsável por propagar o mito do Basilisco. Seu trabalho mencionava repetidas vezes que o veneno do monstro era a substância mais letal do mundo e que uma simples gota dele seria suficiente para envenenar um poço inteiro e matar a população de uma aldeia.

Lucano ia mais além nas suas menções ao Basilisco. Ele afirmava que a criatura era tão venenosa que pássaros que voavam sobre ele podiam ser afetados pela sua aura tóxica, o que os fazia despencar do céu, já mortos antes mesmo de atingir o chão. Se um homem acertasse a criatura com uma lança, seu sangue exalava vapores tóxicos que poderiam causar morte em quem estivesse próximo. Armas derretiam quando tocavam esse sangue cáustico que, advertia ele de modo veemente, não devia ser estocado em lugar algum. Cavalos que haviam pisoteado a criatura sofriam morte horrenda, com os cascos derretendo e os ossos das pernas se partindo como giz tamanha a sua ação nociva. Ironicamente, Lucano salientava que o único animal capaz de lidar com o Basilisco e matá-lo sem sofrer com os efeitos de seu veneno era a doninha. Este animal podia entrar na toca do basilisco, matá-lo e ainda comer de sua carne.

O Basilisco permaneceu como um objeto de terror muito tempo depois da Queda do Império Romano e acabou sendo incorporado pela mitologia medieval. Foi nesse período que a lenda recebeu vários detalhes adicionais que fizeram o mito crescer e despontar como um dos mais difundidos no período. Em algumas versões, ele se tornou mais um galo do que uma serpente, sendo que em muitas representações ele era uma mistura dos dois. O historiador medieval Jan Bondeson lembra que o monstro foi "tema de diversos debates no século XIII" e rendeu um dos mais longos capítulos no Bestiário de Pierre de Beauvais, um dos maiores especialistas em animais de sua época. 


Segundo o celebrado autor, extremamente respeitado pelos estudiosos medievais, "um galo de idade avançada, que tenha perdido a sua virilidade, pode, em alguns casos colocar um ovo. Se este ovo for perdido e chocado por um sapo, uma criatura horrenda dele irá emergir. Esta terá a parte superior do corpo semelhante a um galo, asas de morcego e a cauda longa e delgada como uma serpente escamosa. Uma vez nascido, o jovem basilisco deixa a casca e se esconde em um covil escuro que só abandona depois do anoitecer. Ele caça primeiro pequenos animais, mas a medida que cresce passa a buscar presas maiores, até mesmo homens que tenham o azar de cruzar seu caminho. Para matar ele usa seu hálito que afeta homens e animais igualmente". 

A fama do temido Rei das Serpentes garantiu ao Basilisco um lugar de destaque nos Tratados Medievais que o viam não como uma mera lenda ou mito, mas como um animal presente na natureza e uma ameaça muitíssimo real. 

De fato, existem relatos que exemplificam casos de Basiliscos vistos por testemunhas:
  • De acordo com os Textos de Julius Scaliger (1484-1558), no século IX, durante o Pontificado de Leão IV (847-55), um Basilisco escondeu-se sob um arco próximo do Templo de Lucia em Roma. O odor nauseante da criatura segundo o cronista causou uma praga devastadora na cidade. A única maneira de destruir a influência maligna foi uma corrente de orações liderada pelo Papa em pessoa.
  • Outro cronista renomado, Bondeson relata que em 1202, em Viena, uma misteriosa epidemia de desmaios foi causada por um Basilisco que se escondeu no interior de uma cisterna. A criatura afortunadamente para seus caçadores, havia se afogado e morrido sem que ninguém tivesse de correr risco em eliminá-la. A água contaminada pelo corpo em decomposição do animal, foi a causa da crise, mas uma vez removido, esta cessou imediatamente. Uma estátua foi erguida no local como recordação da terrível ameaça. 

  • O estudioso holandês Levinus Lemnius (1505-68) escreveu as seguintes palavras sobre um caso ocorrido na cidade de Zierikzee, na Ilha de Zeeland: "Dois galos colocaram ovos que foram encontrados por cidadãos que os reconheceram como do tipo que uma vez chocados dariam origem a Basiliscos. Sabendo da fama de tais criaturas, eles os esmagaram quando ainda estavam sendo incubados por uma salamandra. Após quebrar os ovos, do interior que se derramou, surgiram duas criaturas de aspecto repugnante e escamoso que foram posteriormente incendiadas até que nada restasse delas".   
  • E.P. Evans, em sua compilação "The Criminal Prosecution and Capital Punishment of Animals" (O processo Criminal e Punição Capital de Animais), descreve um Processo Legal que ocorreu em Basle, Suíça em 1474. Nele, um galo de idade avançada havia colocado um ovo grande e de coloração esverdeada. O animal foi capturado, colocado em uma gaiola e levado até as autoridades que carregaram ainda consigo seu dono. Em seguida, um promotor da cidade realizou um julgamento da ave e do infeliz proprietário dela. O procedimento, minuciosamente descrito em documentos oficiais resultou na condenação de ambos. O galo foi estrangulado e depois aberto para que se pudesse verificar que ele ainda carregava três outros ovos que ainda não haviam sido postos. Já o dono foi executado em uma fogueira diante de uma multidão em praça pública. Os magistrados apuraram que o homem tinha propensão a realizar bruxedos e que desejava criar um Basilisco. O ovo também foi destruído.
  • Em Copenhagen no ano de 1651, o funcionário de uma granja observou que no galinheiro que atendia, havia surgido um ovo de tamanho e coloração diferentes dos demais. Muitos começaram a dizer que se tratava de um ovo colocado por um galo e que portanto poderia gerar um Basilisco. A notícia chegou aos ouvidos do Rei Frederico III, que ordenou que o ovo fosse recolhido e vigiado por vários dias por soldados. Se ele chocasse, a criatura em seu interior deveria ser morta imediatamente. Nenhum Basilisco emergiu de seu interior. Ainda assim, o monarca ordenou que o ovo fosse colocado em uma caixa de vidro para ser adicionado ao seu Cabinet de Curiosidades.
Historiadores e Medievalistas acreditam que o mito do Basilisco se manteve ativo por toda Era Medieval, como um dos seres fantásticos mais conhecidos (e temidos) do período. Para alguns estudiosos, a lenda dos galos que punham ovos pode estar ligada a uma condição que faz com que galinhas desenvolvam características semelhantes aos machos da espécie. Tal doença é uma descompensação hormonal ocorrida em animais mais velhos, praticamente erradicada nos dias atuais, mas que estava presente no período. Ainda que tivessem óbvias características de galos, estas aves eram capazes de por ovos o que contribuiu para estabelecer o mito.

O mais conhecido relato a respeito de basiliscos, entretanto, é uma estranha história que data do ano de 1587, ocorrida em Varsóvia, na Polônia. Trata-se de uma empolgante narrativa a respeito de uma grande caçada ao Basilisco. O que essa história tem de tão especial é que vários elementos são historicamente precisos. 


Segundo a narrativa a filha de cinco anos de um senhor havia desaparecido de forma misteriosa junto com outra menina com quem brincava regularmente. A esposa e uma serviçal saíram para procurar as crianças, mas não as encontravam em lugar nenhum. A mulher então desconfiou que elas poderiam estar escondidas no porão da casa que não era usado há muitos anos e que geralmente ficava fechado. Lá encontraram as duas meninas estiradas no chão. A serviçal correu para tentar ajudá-las, mas não conseguiu sequer alcança-las. Na metade da escadaria, ela levou as mãos aos olhos, perdeu o equilíbrio e rolou pelos degraus como se tivesse sido atingida por algum ataque invisível. A esposa sabiamente não tentou seguir a outra, fechou a porta e retornou em disparada para pedir ajuda.

O rumor se espalhou rapidamente por Varsóvia. Muitas pessoas diziam que o ar no porão estava empesteado com um cheiro ocre e que o culpado por aquilo só podia ser um Basilisco. A criatura venenosa devia ter se escondido em algum lugar do porão. Confrontado com essa grave ameaça, o Senado se reuniu para uma reunião emergencial. Um homem chamado Benedictus, ex-médico do Rei, foi consultado para dar seu parecer sobre o ocorrido. 

Primeiro, os corpos foram recuperados com grandes varas de madeira com ganchos na ponta. Benedictus então examinou os corpos cuidadosamente em busca de sinais. Seu laudo foi preocupante: os cadáveres apresentavam uma aparência terrível, inchados e pálidos, os olhos arregalados e com uma coloração baça. Benedictus que conhecia muitas doenças e que era visto como um sábio foi categórico em seu diagnóstico, as três haviam morrido pelo efeito de um poderoso veneno produzido por um Basilisco. Quando questionado pelos senadores o que poderia ser feito contra uma besta tão terrível, o velho médico recomendou que um homem descesse no porão com uma rede, que serviria para capturar o Basilisco e arrastá-lo para a superfície. Para se proteger do veneno mortal, este homem teria de vestir uma armadura impenetrável com espelhos voltados para todas as direções. Os espelhos serviriam para neutralizar o olhar mortal da criatura. Para se proteger do hálito infernal, era preciso usar uma máscara conectada a uma mangueira que bombearia ar para o indivíduo.

Benedictus é claro, não foi voluntário para a tarefa. Ele alegou que não se sentia preparado para fazê-lo, já que tinha idade e não suportaria carregar uma armadura ou respirar através de uma mangueira. O Senado pediu que os cidadãos, os militares e a polícia indicassem alguém para o serviço, mas é claro, ninguém se apresentou para tão perigosa missão. A despeito de uma grande recompensa oferecida pelo tesouro real, ninguém estava interessado em penetrar no covil da mais perigosa das criaturas viventes.

Finalmente, um prisioneiro da região da Silésia chamado Johan Faurer, que havia sido sentenciado à morte por roubo, se ofereceu para fazer uma tentativa. Sua condição era que recebesse perdão completo se sobrevivesse ao encontro com a terrível besta. De mãos atadas, a cidade concordou com os termos.


Faurer vestiu uma antiquada armadura pesada na qual foram presos espelhos. Ele colocou uma máscara no rosto e uma mangueira foi conectada a uma bomba para enviar a ele ar puro. O prisioneiro dispensou a rede e disse que ao invés de buscar qualquer captura simplesmente mataria o monstro. Para isso usaria um porrete coberto de pregos, arma de sua escolha. 

Na entrada da casa, o valente prisioneiro foi saudado por uma multidão (segundo registros do período, mais de 2 mil pessoas) que vieram de todos os cantos para ver o desfecho da caçada. Após vasculhar o porão em busca da criatura por mais de uma hora, o herói de ocasião localizou o esconderijo do Basilisco em um nicho escavado na parede atrás de uma antiga adega. Tomando coragem, ele arrastou o móvel para revelar o covil do monstro.

Segundo os relatos da época, quando enfim a porta da casa se abriu, Faurer emergiu carregando pelo pescoço uma estranha criatura que ainda se debatia apesar de ferida mortalmente. Conforme as instruções do Dr. Benedictus, a criatura foi colocada no sol, pois uma vez exposta à luz direta, seus poderes tóxicos eram diminuídos. O iminente médico declarou que realmente se tratava de um Basilisco: "ele tinha a cabeça de um galo, os olhos de um sapo, uma crista semelhante a uma coroa, pele escamosa, cauda e uma coloração estranha para qualquer animal conhecido da natureza".

A estranha e inexplicável história do Basilisco de Varsóvia se encerra dessa maneira, o que é no mínimo frustrante.

Nenhum dos cronistas que dedicaram enorme importância para o incidente, lembrado como um dos acontecimentos mais significativos daquele ano, detalharam o destino final dos envolvidos. Não é mencionado se o Senado cumpriu a sua parte no acordo estabelecido com Johan Faurer, mas considerando que ele passou a ser visto como um herói, dificilmente teria sido devolvido à prisão. Também não há nenhuma menção sobre o que se fez com o animal capturado, uma vez que as narrativas atestam que ele ainda estava vivo quando foi retirado da casa. Parece pouco provável, que ele tenha sido simplesmente descartado em algum lugar. O versátil Dr. Benedictus provavelmente teria alguma sugestão a respeito de como se livrar da carcaça da maneira mais adequada. 


Toda essa história parece incrivelmente bizarra e absolutamente inacreditável. Há muitas lacunas nas narrativas escritas na época e algumas delas se diferem bastante ao descrever os acontecimentos. No total, há quatro documentos de época narrando a história do Basilisco de Varsóvia o que sugere que alguma coisa importante de fato aconteceu naquele local no ano de 1587. Alguns dos personagens citados nos documentos parecem ter de fato existido, em especial membros do Senado, o Prefeito da época e um chefe da milícia local. Contudo, não existe qualquer menção histórica feita a Johan Faurer antes ou depois da caçada por ele conduzida. Tampouco há registros sobre o Dr. Benedictus que é tratado como um indivíduo importante e figura central no transcorrer dos eventos.

Um panfleto datado de 1691, impresso em Nuremberg e presente na Biblioteca daquela cidade, descreve a história do Basilisco de Varsóvia, mas não menciona em lugar algum o envolvimento do Dr. Benedictus. O panfleto rodado mais de um século depois, fornece detalhes sobre um prisioneiro usando armadura pesada que foi responsável pela captura do monstro. Este teria sido removido com vida do porão onde estava escondido e posteriormente queimado numa pira. Numa gravura presente no panfleto pode ser visto uma estranha criatura ardendo em chamas diante de uma multidão que observa fascinada. Depois disso, vários documentos e panfletos foram escritos relatando a incrível caçada do Basilisco de Varsóvia, incidente que contribuiu muito para estabelecer a fama do animal peçonhento.

De fato, Basiliscos continuaram sendo vistos regularmente até meados do século XVII quando naturalistas e estudiosos começaram a contestar a existência da criatura. A descoberta de diferentes víboras na natureza, reveladas através de expedições e viagens cada vez mais comuns para outros continentes contribuiu de maneira decisiva para desmistificar as histórias a respeito do Rei das Serpentes que começou a perder credibilidade.

Já no século XVII, o Basilisco foi relegado ao Reino dos Mitos e das Criaturas lendárias, passando a figurar como animal mitológico, uma das célebres bestas criadas pela imaginação e aflições do ser humano.


Mas se realmente é assim, como explicar um relato tão completo como o do Basilisco de Varsóvia e todos os demais encontros com  a terrível criatura? Teria existido no passado um monstro capaz de matar com o olhar e de envenenar pessoas com seu hálito tóxico? Seriam estas narrativas fruto da imaginação ou de fato as pessoas encontraram algo que não podiam explicar e que não se encaixava na ordem natural conhecida por elas? 

A verdade definitiva, provavelmente jamais venhamos a conhecer, mas o fato é que o Basilisco, a criatura que aterrorizou os Antigos e que foi uma das presas mais temidas da Idade Média, hoje é encontrado apenas nas páginas da ficção e nos romances.

6 comentários:

  1. Excelente postagem. Parabéns e obrigado pelas idéias

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  2. Fabuloso, mano queria ver mais postagens assim mas sempre ficam o pé na nós mitos se realmente exitiam ou não mas fatos tão detalhados assim nos instigam a pensar que talvez as criaturas foram mudando com o passar dos anos e algumas se extinguido como os dinossauros. Perfeita publicação. Parabéns .

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  3. As descrições parecem mais com a de um Cocatriz do q com a de um Basilisco. Às vezes parecem misturadas.

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