segunda-feira, 31 de maio de 2021

BIBLIOTECA LOVECRAFTIANA - Volume Quatro


E esse é o Volume Quatro de nossa Biblioteca Lovecraftiana.

Regularmente no grupo Mundo Tentacular do Facebook colocamos algum livro que tenha ligação com o Universo dos Mythos de Cthulhu com uma pequena descrição.

Com o objetivo de preservar esse material, vamos transcrever os textos para cá. espero que gostem.

BOOKHOUNDS OF LONDON


A Cidade de Londres tem uma longa e rica tradição como lugar de mistério misticismo e segredo. Faz sentido pois é uma cidade antiga, com incontáveis lendas, um passado tumultuado e até pouco tempo a capital de um vasto Império.

Embora Lovecraft tenha usado pouco Londres como background de suas histórias, é natural que ela tenha se tornado uma das preferidas entre os fãs de investigações lovecraftianas atrás apenas da Nova Inglaterra - por definição a região Lovecraftiana.

Bookhounds of London (algo como Farejadores de Livros de Londres) é uma ambientação para Rastro de Cthulhu se passando na Londres dos anos 1930. Nela os jogadores assumem o papel de indivíduos envolvidos com o mercado de livros raros na cidade. Um negócio complexo que movimenta altas somas e que envolve subterfúgio, lábia e conhecimento.

Bookhounds funciona como um suplemento duplo, com detalhes extensivos sobre a cidade e sobre esse ramo de atividade que no Universo dos Mythos é especialmente perigoso. É um material excelente com fartura de detalhes possibilitando uma campanha inteira se passando no submundo dos livros raros onde colecionadores e agentes disputam com cultos e ocultistas tomos com saber arcano autêntico.

A aventura que acompanha o suplemento também é muito boa, sem falar nas ilustrações e mapas coloridos da cidade, tudo de primeira. Eu considero esse um dos melhores livros de Rastro de Cthulhu. Um recurso valioso para qualquer ambientação se passando em Londres.

4,5/5 Tentáculos

TERROR AUSTRALIS


Terror Australis foi lançado na época da quarta edição de Chamado de Cthulhu lá no final dos anos 80. Sua reedição para a sétima edição não deixa de ser uma surpresa tantos anos depois, porque embora a edição seja boa, nunca foi considerada um clássico.

O suplemento é inteiramente dedicado a Austrália com uma incrível quantidade de informações e ideias para centrar uma campanha inteira no país. A Austrália apresentada no livro é um lugar estranho, exótico, repleto de perigos e oportunidades para investigações é aventuras. E é claro, terreno fértil para os Mythos de Cthulhu.

Presente em um conto notável da obra de Lovecraft (A Sombra fora do Tempo), a Austrália recebeu um tratamento de luxo, inserindo em seu vasto território vários horrores inomináveis, sendo a Cidade de Pnakotus o ponto central.

O suplemento fornece ideias, ganchos de campanha, criaturas do folclore, um capítulo inteiro sobre mitos aborígenes , além de três longas aventuras prontas se passando nos desertos e cidades.

Tudo muito bem feito e pesquisado, ilustrado com fotografias de época e mapas que tornam esse suplemento um dos melhores da atual edição.

4,5/5 Tentáculos

FORENSIC, PROFILING & SERIAL KILLERS


Crimes e assassinatos são uma parte recorrente em cenário de investigação e horror. Muitas histórias começam exatamente com a descoberta de um corpo ou com uma série de estranhos assassinatos que precisam ser elucidados.

Esse livro, FORENSIC, PROFILING & SERIAL KILLERS (algo como Medicina Forense, Perfil e Assassinos em Série) oferece uma visão completa e bastante detalhada do trabalho de reconhecer, catalogar e capturar criminosos perigosos, em especial homicidas. Com capítulos bem amplos e perfeitamente adaptados a mecânica do BRP (sistema de Chamado de Cthulhu), esse material é muito bom.

Quer saber como separar os diferentes tipos de assassinos conforme o método do FBI? Quais os termos usados por especialistas? Como processar uma cena de crime reconhecendo padrões de respingos de sangue ou ainda interpretar as reações emocionais de uma testemunha, então esse é seu livro.

Tudo muito completo, até didático para ser utilizado em jogo. Esse suplemento francês exclusivo da Sans Detour tem tudo o que um investigador pode precisar para encontrar pistas e não deixar nada escapar. Informa ainda quando e como diferentes métodos de investigação surgiram e passaram a ser adotados pelas forças policiais. Finalmente trás fichas de assassinos famosos, detalhes sobre seus casos e como eles foram capturados com base na perícia forense. Não é apenas um excelente suplemento, mas um livro sobre um tema muito interessante.

4,5/ 5 Tentáculos
ATOMIC-AGE CTHULHU


Os anos 1950 foram uma época muito estranha. Os Estados Unidos se erguiam após a segunda guerra, como super potência econômica, militar e cultural ditando tendências e costumes. Após um conflito mundial devastador, o mundo precisava de um alento, mas apesar da aura de candura os anos 1950 foram uma época de contrastes. Se por um lado tivemos avanços em vários campos, por outro, testemunhamos uma guerra feroz na Coréia, violência racial, caça às bruxas, o início da guerra fria contra a URSS e o temor da aniquilação nuclear.

Com toda essa paranoia e temor no ar, os anos 1950 criam um belo pano de fundo para os Mythos de Cthulhu. A proposta de Atomic Age é exatamente essa, trazer os horrores lovecraftianos para um tempo em que as coisas pareciam (apenas pareciam) mais puras.

O livro é muito mais uma antologia de aventuras do que um suplemento sobre a década de 50. Embora ele conte com um capítulo sobre o tema, o grosso dele é destinado a aventuras prontas. Como sempre a seleção é marcada por altos e baixos. A melhor história brinca com o gênero Noir, outra trata de experimentos científicos, do medo nuclear, de uma equipe de tanque na Coréia e de perigosas inovações tecnológicas.

De modo geral, o material é bom... Mas fica a sensação de que um tema tão amplo e cheio de possibilidades poderia ter rendido um pouco mais. A arte é mediana, mas o que incomoda mesmo é a diagramação feia dessa fase da Chaosium. Ainda assim, é divertido de ler e tem algumas histórias que valem a pena serem jogadas.

3/5 Tentáculos.

THE COMPLETE FICTION of H.P. LOVECRAFT


Há muitas publicações que se propõem a ser a "obra completa" de H.P. Lovecraft, mas poucas cumprem isso. Tanto aqui quanto lá fora, não são poucas as que dizem trazer todos contos, novelas e poesias, mas acabam deixando de fora alguma coisa.

Bem, essa edição da Knickebocker Classics é uma das que fazem exatamente aquilo que se propõem. A edição é realmente completa!

Nessa edição especial em padrão luxuoso, temos de tudo. Das mais obscuras poesias, ensaios e fragmentos, até os grandes clássicos de sua bibliografia. A edição é realmente muito caprichada, em capa dura, num estojo reforçado. Tudo muito bonito, ficando lindo na estante ou prateleira. As edições Knickebocker são famosas pela sua qualidade e aqui não é diferente: Lovecraft recebe um tratamento condizente com a importância da sua obra.

Talvez o único senão seja a página frágil, no que alguns chamam de papel bíblia, mesmo assim é um excelente volume com tudo que se pode querer do Cavalheiro de Providence.

4,5/5 Tentáculos

SECRETS OF TIBET


Esse foi o último livro da Chaosium dentro da popular série "Secrets of...". Estes suplementos forneciam um background a respeito de um determinado lugar com seus segredos, mistérios, história, personagens e sua ligação com o universo do Mythos.

A série teve seus altos e baixos, alguns suplementos são muito bons e úteis, outros nem tanto. Infelizmente SECRETS OF TIBET está no segundo caso. Embora o Tibet seja um lugar interessante e repleto de misticismo, perfeito para enquadrar os Mythos e rolar aventuras, a maneira como o autor escolheu apresentar o país ficou sem graça. O texto não empolga e tudo foi escrito com uma mão extremamente pesada. As descrições são um tanto sem sal e a associação com a mitologia lovecraftiana não rende o que poderia. É uma pena pois o Tibet dos anos 1920 tinha tudo para ser uma ótima opção de ambientação.

Mesmo as duas aventuras prontas que acompanham o suplemento sofrem desse mesmo problema, não empolgam. O prego no caixão é a diagramação tosca da Chaosium que remete à época da sexta edição que faz o material parecer algo saído dos anos 80. A arte e os mapas são passáveis, mas longe de serem algo digno de nota. A capa ao menos é razoável.

No geral, o resultado é um suplemento bastante decepcionante. Não li ainda a nova campanha Children of Terror, que também se passa no Tibet, mas espero que ela tenha bem pouco a ver com esse material.

1,5/5 Tentáculos

TERRA CTHULHIANA


A editora francesa Sans Detour foi responsável pelos títulos de Call of Cthulhu, ou como eles chamavam, L'Apell de Cthulhu, até 2019. Nesse período eles não apenas reeditaram o material da Chaosium com um formato diferente e muito mais bonito, como publicaram seus próprios títulos.

Terra Cthulhiana é um material exclusivo lançado apenas na França, mas bem que poderia ser traduzido para outros idiomas. Esse livro funciona como uma espécie de guia para sítios arqueológicos, ruínas e lugares históricos ao redor do mundo. Os textos contam a história de cada lugar, como foi sua descoberta, seu significado e principais interesses. Em seguida, ele relaciona o local com os Mythos, fornecendo ideias que podem ser usadas em cenários e investigações.

Cada capítulo é dedicado a um continente e apresenta lugares óbvios como as Pirâmides de Gizé e Machu Pichu, junto com outros mais obscuros, como a cidadela dos Anazazis e as ruínas de Malta. Além de lugares reais, ele também se dedica a sítios fantásticos como Pnakotus, Kadath, Iranon, R'Lyeh, entre outros.

E que livro bom de ler e tirar ideias. Com desenhos, gráficos e fotografias de época, esse material é simplesmente incrível. Eu realmente gostaria de saber melhor o idioma em que ele foi escrito para aproveitar todas as informações, mas até para ler com um dicionário do lado, vale o sacrifício.

Excelente material, um dos melhores da Sans Detour, que poderia ser reeditado na 7a edição.

5/5 Tentáculos

* * *

Esse foi o Volume Quatro, fiquem conosco para os próximas.

Resolvemos transformar em Volume ao invés de semana, pois nem sempre é possível acompanhar dia a dia as atualizações. Mas a Biblioteca Lovecraftiana continua, pois tem muita coisa esperando na fila.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

"O Diabo me obrigou a fazer" - O Bizarro caso em que o réu culpou o sobrenatural por um assassinato


"O Diabo me obrigou a fazer"!

Ao longo da história, esse argumento estapafúrdio foi usado como desculpa para muitas pessoas apanhadas após cometer atos terríveis distantes de seu comportamento normal. Na maioria das vezes, nós assumimos que as palavras são ditas apenas em sentido figurado, mas em alguns casos, o significado é bastante literal.

Em 1981, um brutal assassinato aconteceu em uma tranquila cidade da Costa Leste dos Estados Unidos, um crime hediondo que o autor alegava não ter cometido por vontade própria, mas por imposição de demônios que possuíram seu corpo e perverteram sua vontade. A alegação chegou a ser invocada diante de um tribunal de justiça, criando um caso emblemático que se tornou o primeiro da era moderna a envolver possessão demoníaca. O espetacular julgamento que se seguiu incendiou a opinião pública, causou sensação e gerou incrível controvérsia.

A estranha história tem início na tranquila e rica vizinhança de Brookfield, estado de Connecticut, para onde uma família comum, os Glatzel haviam se mudado. Eles pretendiam reformar e ocupar um imóvel recém adquirido na pitoresca cidadezinha de 13.000 habitantes. Pouco depois de chegarem, uma série de incidentes bizarros começaram a se desenrolar ao seu redor, criando uma aura de estranheza e ameaça. Os Glatzel não podiam imaginar o terrível pesadelo no qual estavam entrando.

Certo dia, cerca de um mês depois de terem se estabelecido, a Sra. Judy Glatzel relatou um incidente estranho ocorrido com seu filho mais novo, David de 11 anos. O menino havia repentina e inexplicavelmente sofrido um acidente. Ele caiu com bastante força da cama onde estava dormindo, sofrendo ferimentos leves. Quando questionado sobre a ocorrência, David começou a chorar. Ele contou à mãe que havia sido empurrado pelo que descreveu ser um homem velho com a "pele de aparência queimada". O homem estranho apontou o dedo para ele e rosnou a palavra "Cuidado" antes de empurrá-lo violentamente.


Parecia uma história sem fundamento e no início os Glatzels imaginaram que ela não passava da imaginação hiperativa de uma criança, mas David sempre foi um menino muito honesto que nunca havia inventado algo semelhante. Esse seria apenas o prenúncio de uma situação que viria a piorar progressivamente. David começou a acordar várias vezes durante a noite chorando incontrolavelmente. Quando questionado sobre o que tinha acontecido, ele descrevia a visita de um homem velho com olhos escuros, feições animalescas, dentes afiados e irregulares, orelhas pontudas e cascos no lugar de pés. David alegava que a entidade estava continuamente alertando-o de que, se a família permanecesse na casa sofreria um destino terrível .

Essa visitas continuaram e em pouco tempo começaram a acontecer também em pleno dia. A aparição era capaz de mudar de forma e David afirmava que a criatura assumia a aparência de um homem velho de barba branca, vestido com camisa de flanela e jeans. David disse que às vezes a aparição rosnava em alguma língua estrangeira ou ameaçava roubar sua alma. As visitas assustadoras também começaram a ser acompanhadas por fenômenos inexplicáveis ​​por toda a casa: coisas se movendo sozinhas, sons inexplicáveis, portas batendo e vozes vindas de lugar nenhum.

A estranheza não terminava aí. David começou a exibir feridas estranhas: arranhões, cortes e hematomas pelo corpo todo. Os terrores noturnos pioraram gradualmente a ponto do garoto acordar uivando praticamente todas as noites. A mãe afirmou ter visto seu filho ser sufocado por mãos invisíveis e se debatendo na cama como "uma boneca de pano". David também engordou muito em um curto período de tempo, supostamente ganhando 27 quilos em alguns poucos meses. 

À luz dos eventos estranhos e aparentemente paranormais que se desenrolavam ao seu redor, a Família Glatzel se convenceu que o caso era muito mais sério do que eles podiam imaginar. E que precisariam de ajuda. Eles pediram a um padre católico da Igreja de St. Joseph em Brookfield orientação. O padre concordou em visitar a casa e realizar um ritual de limpeza do lugar. Ele disse sentir uma estranha presença, mas que esta se dissipou. Infelizmente, na mesma noite, os fenômenos agourentos retornaram ainda mais fortes. David foi atacado pela entidade invisível, furiosa com a tentativa de esconjurá-la. O menino foi jogado contra a parede e seriamente ferido no braço.
 

A família Glatzel cada vez mais desesperada implorou à igreja por ajuda e foi encaminhada a dois demonologistas e exorcistas que serviam como consultores. Eles eram Ed e Lorraine Warren, um casal que ganhara fama ajudando pessoas com dificuldades semelhantes. A chegada dos Warren parecia coincidir com um aumento nos eventos bizarros e comportamento aberrante ao redor de David. Ele começou a ter ataques repentinos e sofrer convulsões que às vezes exigiam que ele fosse amarrado e contido. Ele também ocasionalmente rosnava, mordia e cuspia nas pessoas, e isso chegou ao ponto em alguém precisava ficar de guarda enquanto o menino dormia, para o caso de ele ter um de seus bizarros acessos de raiva ou convulsão. 

O garoto também citava repentinamente passagens da Bíblia e do livro "Paraíso Perdido" de John Milton, em especial as frases atribuídas a Lúcifer. Nessas ocasiões ele falava com uma voz gutural, muito diferente da sua. Foi até relatado que ele repetia trechos inteiros em latim, uma língua com a qual não tinha nenhuma familiaridade. Lorraine Warren, uma vidente experiente, contaria mais tarde que em mais de uma ocasião viu uma estranha névoa negra surgir ao lado de David - materializando-se na forma de um ser demoníaco. O menino continuava reclamando de ser atacado, empurrado ou sufocado por mãos invisíveis. Esses eventos bizarros continuaram em um crescendo tamanho que os Warren temiam o pior, que o menino fosse morto pelas forças das trevas. Eles chegaram à conclusão que havia uma ou mais presenças demoníacas habitando a casa e que David era usado como uma espécie de portal para elas se manifestarem. 
Foi nessa época que a filha de Glatzel, Deborah, de 26 anos, implorou ao noivo, Arne Cheyenne Johnson, que viesse morar na casa para que todos se sentissem mais seguros. À luz do que eles viam como possessão demoníaca, os Warren realizaram uma série de exorcismos em um esforço para livrar o garoto de quaisquer entidades malignas que o acompanhavam. Três exorcismos envolvendo a ajuda de quatro padres católicos foram conduzidos, durante os quais David rosnava, amaldiçoava, mordia, chutava e arranhava as pessoas como um louco. Os Warren também afirmavam que, durante os exorcismos, David parava de respirar por longos períodos, produzia sons bizarros, contorcia o corpo em posições não naturais e até levitava. O menino normalmente quieto e pacífico também começou a falar de assassinato e esfaqueamento, o que alarmou ainda mais a todos. 

Por fim, os exorcistas descobriram que havia uma verdadeira Legião de Demônios entrando e saindo de David, possuindo seu corpo intermitentemente. Eles se revezavam, como se disputassem quem era capaz de manter o controle por mais tempo. Os Warren conseguiram se comunicar com várias das entidades e estabeleceram que eram nada menos que 43 demônios envolvidos na possessão. 

Os exorcismos não pareciam estar surtindo qualquer efeito. As presenças malignas dentro de David se referiam a si mesmos como "A Besta", "O Mestre", "O Faminto", entre outros nomes medonhos. Cada uma dotada de personalidade própria, voz e comportamento distinto. A família contatou a polícia de Brookfield em outubro de 1980 para relatar que a situação estava se tornando perigosa uma vez que o menino representava uma ameaça em potencial. Em certa ocasião ele conseguiu arranjar uma faca e a usou para tentar ferir os Warren. Infelizmente, a polícia ignorou o caso e a família continuou por conta própria. 


O noivo de Debbie, Arne Johnson, estava ficando exausto com toda a provação e começou a insultar os demônios que atormentavam David. Em dado momento ele gritou com eles e os desafiou a deixar o corpo do menino e possuir o seu corpo se fossem capazes. Os Warren tentaram dissuadi-lo de fazer esse tipo de desafio, salientando o perigo que ele próprio corria ao propor tal coisa. De nada adiantou! Johnson disse em várias ocasiões: "Entrem em mim! Deixem o garotinho em paz, seus bastardos". Durante uma dessas ocasiões, ele ficou apavorado quando afirmou ter visto os demônios se materializando ao redor de David. Não muito tempo depois disso, Johnson bateu com o carro em uma árvore e, embora não tenha se ferido, alegou que os demônios o controlaram por alguns segundos e causaram o acidente.

Em novembro de 1980, Judy e Carl Glatzel levaram seu filho a um psiquiatra para ver se havia algo que pudesse ser feito para ajudar o menino cada vez mais perturbado. Talvez alguma solução para sua condição pudesse ser oferecida pala comunidade médica. O psiquiatra disse à família que David era normal, exibindo apenas uma pequena dificuldade de aprendizado, certamente nada que explicasse seu crescente comportamento bizarro. Resolveram matricular o filho em uma escola especial para crianças com problemas emocionais, na esperança de que isso de alguma forma o ajudasse.
Nesse ínterim, Debbie e Johnson mudaram-se de casa para morar em um apartamento perto do Brookfield Pet Hotel, onde Debbie conseguiu um emprego como tratadora de cães. O gerente e proprietário do hotel para animais, era Alan Bono, que se tornaria amigo do casal. Nas semanas seguintes, Debbie Glatzel ficou cada vez mais preocupada, à medida que Johnson começou a apresentar um comportamento estranho e atípico. O normalmente educado e temperado Johnson ficava muito irritado com as menores coisas e de repente entrava em transes bizarros durante os quais rosnava ou convulsionava, e dos quais posteriormente afirmava não se lembrar. Durante vários desses episódios, ele gritava em desespero ao ver "A Besta" olhando para ele. Esses transes se tornaram mais frequentes, e seu comportamento errático, até que Debbie começou a temer que talvez seu noivo tivesse sido possuída pelos mesmos demônios que habitavam seu irmão. 
Em 16 de fevereiro de 1981, aconteceu a tragédia. Johnson ligou dizendo que estava doente e que não poderia trabalhar. Ele se juntou a Debbie e Bono para um almoço, durante o qual todos beberam muito. Depois eles voltaram ao apartamento e, em algum ponto durante a conversa, Johnson e Bono começaram uma discussão acalorada por alguma bobagem qualquer. Durante o confronto, Johnson entrou em um de seus transes, após o qual começou a rosnar como um animal. Ele puxou um canivete e o usou para esfaquear cruel e repetidamente Bono, que morreria em um hospital devido aos múltiplos ferimentos. 

Johnson, que não tinha antecedentes criminais e era um cidadão modelo fugiu do local mas foi detido pela polícia a vários quilômetros da cena do crime. Ele foi acusado de homicídio em primeiro grau e não ofereceu nenhuma resistência ao ser conduzido para a delegacia. Em seguida, alegou que não conseguia se lembrar de nada do incidente e que não tinha certeza se era ou não o responsável pela morte de Bono.

O caso já seria excepcional, uma vez que ele foi o primeiro assassinato ocorrido na história da pequena Brookfield, mas as coisas se tornariam ainda mais bizarras rapidamente. Apenas um dia após o assassinato, Lorraine Warren fez a alegação de que Johnson estava possuído por demônios quando o assassinato foi cometido, e que David Glatzel disse que tinha visto os demônios irem dele para o corpo de Johnson. A família apoiou essas afirmações, dizendo que o assassinato tinha sido "Obra do Diabo" e que a Besta havia se transferido para o corpo de Johnson durante os exorcismos quando ele os provocou a fazê-lo. Essas alegações de possessão demoníaca e assassinato numa cidade tranquila como Brookfield levaram a mídia ao frenesi, e a história foi amplamente divulgada em vários veículos de comunicação.
Para tornar todo o caso ainda mais misterioso, embora os Glatzel e Warren falassem sobre os exorcismos que haviam sido conduzidos contra David, a própria igreja fez um grande esforço para se distanciar dessas afirmações. A diocese local declarou que, embora o padre Virgulak e três outros sacerdotes tivessem de fato se envolvido para ajudar o menino, negava veementemente que se tratasse de exorcismos reais. O porta-voz da diocese, Rev. Nicholas V. Grieco, explicou que a aprovação do Bispo seria necessária para a realização de um exorcismo e que essa aprovação nunca foi solicitada. Isso era exatamente o oposto do que os Glatzel e Warren estavam dizendo, e eles alegaram que tal aprovação de fato fora concedida depois que dois dos padres mais jovens abordaram o Bispo pessoalmente. Para complicar ainda mais as coisas, nenhum dos padres que supostamente estiveram envolvidos nos exorcismos foi autorizado a comentar o incidente para repórteres ou investigadores, e todos eles foram misteriosamente transferidos para outras paróquias.

Quando o julgamento de Johnson enfim teve início, seu advogado de defesa, Martin Minnella, decidiu usar a alegada possessão demoníaca como defesa legal para seu cliente. Seria a primeira vez na história dos Estados Unidos em que a defesa procuraria provar a inocência de um réu argumentando possessão demoníaca e, portanto, a falta de responsabilidade da pessoa. A atenção da mídia para o caso atingiu um pico febril, e o julgamento ficou conhecido como o "Julgamento do Assassinato do Demônio" e o "Julgamento do Diabo me obrigou a fazer". O advogado pesquisou exaustivamente a viabilidade de tal argumento e descobriu que tal defesa não era sem precedentes no mundo. Minella apresentou dois casos da Inglaterra em que a alegação de possessão foi permitida; um envolvendo um incendiário que foi absolvido e outro em que um estuprador recebeu pena suspensa pelo mesmo motivo. O advogado até fez arranjos para que exorcistas da Europa fossem levados para o julgamento. Além disso, ele estava preparado para intimar os sacerdotes que supostamente haviam realizado os exorcismos em David Glatzel se eles não cooperassem. 
Minella disse em suas alegações iniciais:
"Vou mostrar que esse rapaz não é um louco e que o que está acontecendo aqui não é uma ilusão. Os tribunais lidaram com a existência de Deus desde o início, e agora eles serão chamados a lidar com a sua contraparte, reconhecendo a existência de um espírito demoníaco."
O julgamento começou em 28 de outubro de 1981, no Tribunal Superior de Connecticut em Danbury. Como esperado, Minella entrou com uma alegação de inocência com o fundamento de que seu cliente havia sido possuído por demônios que haviam passado para ele de David e, como tal, não estava no controle de si mesmo, liberando-o, portanto, da responsabilidade de qualquer delito. Durante o processo, supostas evidências gravadas dos padres confirmando a aprovação de um exorcismo foram apresentadas, bem como fotografias lúgubres que retratam cenas como Johnson ajoelhado sobre David no chão com um crucifixo pressionado em sua testa, e outra em que Johnson está segurando o menino caído enquanto o crucifixo está quebrado no chão ao lado dele. 
Apesar disso, o juiz Robert Callahan não se convenceu e rejeitou o argumento, afirmando que nada daquilo poderia ser objetivamente ou cientificamente verificado por meio das evidências disponíveis. Como resultado, todos os depoimentos relacionados à defesa de possessão demoníaca foram anulados e o júri instruído a desconsiderá-los. Minella foi forçado a mudar sua tática, alegando então legítima defesa . Após 3 dias de deliberações, o júri chegou à conclusão de que Johnson era culpado de homicídio culposo em primeiro grau, e ele foi sentenciado a uma pena de 10 à 20 anos de prisão, dos quais ele acabaria cumprindo apenas 5.
Johnson durante o julgamento de assassinato

Após o julgamento, o interesse da mídia no caso diminuiu, mas a provação da família Gratzel ainda não havia acabado. Em 1983, Lorraine Warren ajudou Gerald Brittle a escrever um livro sobre o incidente intitulado "The Devil in Connecticut" (O Diabo em Connecticut), que muitos viram como uma tentativa barata de lucrar com o sofrimento da família Gratzel. Warren, entretanto insistiu que os rendimentos do livro seriam doados para os membros da família. O livro foi relançado em 2006, época em que David Glatzel, agora um adulto, e seu irmão Carl Glatzel Jr. processaram a editora alegando que o material causava sofrimento emocional à família, violava sua privacidade e continha uma boa quantidade de difamação. Carl disse ainda que os Warren mentiram sobre os eventos que aconteceram e que a história do exorcismo era uma farsa; um conto que eles inventaram para tirar proveito e lucrar com a doença mental de David. Carl também reclamou que o livro o fez parecer o vilão da história, porque ele nunca concordou com as explicações sobrenaturais para o que havia acontecido.
Por sua vez, os Warren se apegaram a sua versão dos eventos. Lorraine Warren insistiu repetidamente que os fenômenos sobrenaturais que ocorreram eram reais e que todos os sacerdotes envolvidos concordaram que o menino estava possuído por demônios. Além disso, a próprio Debbie Glatzel e Arne Cheyenne Johnson continuam a afirmar que a versão dos Warren dos eventos correspondia à verdade, dizendo ainda que a família Glatzel estava movendo um processo puramente por ganho monetário. Os padres envolvidos com os supostos exorcismos nunca se apresentaram para apoiar oficialmente nenhum dos lados da história e continuaram calados sobre o assunto.
Então, o que podemos concluir dessa história fantástica? Teriam demônios feito Johnson cometer o assassinato, usando para isso seu corpo? Considerando a quantidade de versões dos eventos e as explicações de todos os envolvidos, é difícil saber ao certo. Entretanto, o simples  potencial de que alguma força obscura poderia compelir uma pessoa racional a cometer atos malignos constitui algo aterrorizante. E se tal coisa é possível, a pessoa afligida deveria ser responsabilizada pelos seus atos? Seria o diabo capaz de compelir uma pessoa a agir? 
A lei sempre teve que lidar com uma linha tênue entre sanidade e insanidade, responsabilidade e absolvição. Existiria outra linha em que oscilamos; a linha entre as ações de nossa própria vontade e as de outra "coisa"? É pouco provável que a defesa usada no Julgamento de Arne Cheyenne Johnson algum dia seja admissível no tribunal, mas mesmo assim, ela nos faz refletir sobre a natureza do mal que reside dentro de cada um de nós, seja ele sobrenatural, ou não.
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O artigo foi obviamente motivado pelo lançamento do filme "Invocação do Mal 3 - A Ordem do Demônio" cujo roteiro é baseado nos acontecimentos aqui descritos.
O filme tem estreia prevista nos cinemas em breve e é uma versão do ocorrido sob a ótica do casal Warren.    

terça-feira, 25 de maio de 2021

As Orbes de Skara Brae - Os Mistérios de um fascinante vilarejo Neolítico


No inverno de 1850, uma feroz tempestade atingiu o arquipélago das Ilhas de Orkney na costa da Escócia. Os danos foram extensivos, sobretudo no entorno da Baía de Skaill, na costa oeste. Quando a terrível tempestade passou, deixou um rastro de devastação e morte, com mais de 200 vítimas fatais, muitas delas afogadas pelas cheias produzidas.

Além da tragédia humana e dos danos materiais, as chuvas torrenciais e descargas elétricas revelaram um mistério oculto sob a superfície da terra há milhares de anos. Quando os habitantes da ilha estavam contabilizando os danos no topo do monte chamado Skara Brae, descobriram as ruínas de um até então desconhecido assentamento do Período Neolítico, um vilarejo que ofereceria enigmas que até hoje permanecem sem uma explicação razoável. 

As primeiras tentativas de escavar o vilarejo enterrado foram amadorísticas, realizadas pelos cidadãos locais usando pás e picaretas. Apesar da boa vontade das pessoas, os trabalhos causaram mais dano do que benefícios, com artefatos sendo descartados como lixo e objetos sendo removidos indiscriminadamente. Finalmente em 1868, o lugar foi abandonado novamente, tendo revelado pelo menos quatro casas antigas que foram escavadas entusiasticamente. Seriam necessárias várias décadas e uma nova tempestade para que o sítio chamasse a atenção da Universidade de Edimburgo. A instituição enviou o renomado Professor V. Gordon Childe para avaliar o local em 1917. Quando o especialista começou analisar o sítio, ele encontrou indícios de que o lugar já era habitado entre 3200 e 2500 anos antes de Cristo, tornando-o mais antigo que Stonehenge e que as Pirâmides do Egito. Além disso, ele descobriu que o vilarejo era composto de dez casas bastante próximas umas das outras, com represas e montes artificiais erguidos para promover proteção, calor e sustentação aos habitantes. 


As casas eram construídas com lajes de pedra e possuíam lareiras, camas, chaminés e várias peças de mobiliário primitivo, incluindo armários, cadeiras e caixas. Mais impressionante, o vilarejo tinha um sistema de esgoto através do qual, cada casa podia despejar seus dejetos e fazer com que eles fossem removidos por intermédio de drenos até o mar. O sistema, ainda que rudimentar funcionava muito bem e continuou preservado e completo.    

O padrão do vilarejo que foi chamado Skara Brae era incrivelmente engenhoso, algo jamais visto em um assentamento do período neolítico. O estilo de construção, com a distribuição das casas é algo que só seria visto milênios mais tarde, já com grandes avanços consolidados. 

O outro grande mistério era tentar compreender porque um lugar tão avançado, bem construído e seguro teria sido inexplicavelmente abandonado em determinado momento. Os últimos habitantes a ocupar o assentamento deixaram marcas de sua passagem que evidenciam a época em que ocuparam o lugar. Fica claro que nenhum outro povo posteriormente viveu no local. Mais curioso ainda, seja lá qual foi a razão para deixar o vilarejo, tudo parece ter ocorrido com grande pressa, uma vez que objetos valiosos foram abandonados. Também há sinais de que alimentos foram deixados nas despensas rudimentares, algo impensável para povos que dependiam do que podiam preservar para sobreviver.      


Teorias para explicar os motivos para essas pessoas terem deixado a segurança de Skara Brae incluem algum tipo de catástrofe como uma tempestade ou quem sabe doença, mas a verdade é que ninguém sabe ao certo. Seja qual for o motivo para esse êxodo repentino, o povo que um dia residiu ali, deixou muito para trás. Ao longo dessa pequena vila, que deve ter servido de lar para pelo menos 50 pessoas, foram achados fragmentos de pedra, osso e chifre utilizados como ferramentas, bem como numerosos artefatos feitos de animais, como peixes e pássaros, além de marfim extraído de mamutes e enormes dentes de morsa e baleia. Tudo isso foi usado para criar agulhas, facas, contas, enfeites, pulseiras, pratos e bacias usados no dia a dia. Também havia incontáveis pedaços de cerâmica, contas e os retalhos de corda trançada mais antigos achados na história. Tudo isso deveria ser visto como objetos incrivelmente valiosos, mas eles foram simplesmente descartados, sem nenhuma intensão de serem guardados, escondidos ou levados junto. 

Entretanto, o mais estranho ainda estava por vir, quando o centro do vilarejo começou a ser escavado e inexplicáveis pedras arredondadas, perfeitamente polidas, começaram a aparecer.

Espalhadas em lugares de destaque as pedras arredondadas, do tamanho de bolas de baseball e adornadas com complexos entalhes em padrões de espiral, círculos e linhas imediatamente chamaram a atenção dos pesquisadores. Como elas foram moldadas e como os elaborados entalhes foram feitos com tamanha precisão, usando para isso simples ferramentas de pedra, era um mistério quase tão grande quanto o seu propósito original. Pesquisadores tentaram reproduzir maneiras de criar algo similar usando para tanto os mesmos materiais à disposição na época. Nada chegou sequer remotamente próximo do acabamento atingido pelos habitantes de Skara Brae. De fato, mesmo com toda nossa tecnologia não foi fácil atingir o mesmo grau de detalhe. 


As teorias a respeito dessas misteriosas orbes são numerosas. 

Ideias incluem que elas poderiam ser usadas para atividades simples como pesos para redes de pesca ou em balanças primitivas para aferir o peso em relações comerciais, ou em situações especiais como peças centrais em rituais de previsão do futuro ou ainda determinar o clima. Poderiam ainda ser símbolos de status empunhadas apenas pelos chefes tribais ou xamãs religiosos que teriam direito de falar apenas quando tivessem tais objetos em sua mão.

Hugo Anderson-Whymark, curador do Museu Nacional da Escócia, tem a sua própria teoria:

"Eu acredito que as orbes sejam símbolos estilizados de liderança, usados em cerimonias de caráter religioso. Coisas que poderiam ser usadas até mesmo como armas, para ferir as pessoas que desagradassem ao líder e suas decisões. Na maioria das vezes elas representariam um objeto de liderança, status e poder. Aquele que tivesse uma pedra dessas em suas mãos deveria ser ouvido, respeitado e temido pelos demais". 


Outra ideia é que as pedras poderiam representar algo chamado "Sólidos Platônicos", que são poliedros propostos pela primeira vez pelo matemático e filósofo grego Platão, para representar os elementos clássicos da natureza: terra, ar, água e fogo. Se essa teoria for verdadeira seria uma incrível descoberta, uma vez que significaria que povos do Neolítico compreendiam princípios avançados de geometria e matemática mais de mil anos antes de Platão os colocar em uso. Com o intuito de trazer alguma compreensão a seu misterioso propósito, cientistas criaram modelos 3D das orbes encontradas no sítio arqueológico de Skara Brae e embora isso não tenha fornecido nenhuma resposta concreta uma coisa que eles determinaram é que as peças parecem ter sido trabalhadas e retrabalhadas ao longo de várias gerações.   

"É como se as peças tivessem atendido a um propósito em uma geração, mas em outra, tenham sido utilizadas por outros indivíduos que as trabalharam polindo e moldando até que assumissem uma função diferente. Todas as orbes possuem essa mesma característica, a de terem sido remodeladas, e tudo leva a crer que algumas foram passadas de geração em geração ao longo de séculos".

A função religiosa também não pode ser descartada. Os povos do Neolítico tinham uma relação bastante íntima com a natureza e poderiam moldar as pedras para representar as forças que os cercavam. Uma poderia ser o Sol, outra a Lua, outra ainda a água, o fogo etc... Em rituais religiosos as pedras seriam usadas para invocar o poder daquilo que elas representavam. Para abençoar os campos na época das colheitas, a pedra da Terra seria celebrada, já para aplacar uma seca, a do fogo ou da água poderiam ser trazidas diante da tribo. É possível ainda que as pedras simbolizassem divindades antigas próprias. Círculos e Orbes estão presentes em várias culturas e civilizações, como elementos simbólicos de deuses e entidades superiores veneradas.


Os habitantes locais acreditavam que as Orbes de alguma forma estavam relacionadas às fortes tempestades que caíam sobre as Ilhas Orkney. Alguns supunham que as pedras atraíam poderosas descargas elétricas e que a remoção delas da terra diminuiu a frequência e potência dessas tempestades. Havia até mesmo a crença de que as pedras haviam causado a grande tempestade que resultou na descoberta das ruínas neolíticas. Estudiosos não encontraram qualquer relação entre as pedras e tempestades, mas a superstição se manteve por muito tempo. 

Cerca de 500 artefatos no formato de orbes de pedra foram encontradas em sítios arqueológicos nas Ilhas Britânicas e Irlanda. Ninguém realmente sabe mais a respeito deles hoje do que sabiam há um século. Qual seria a utilidade dessas pedras ou por qual razão povos da antiguidade as criaram permanece um mistério. As orbes de pedra causam perplexidade nos especialistas há anos, sem que ninguém se aproxime de uma resposta definitiva e considerando que não existiam registros, é provável  que jamais saibamos.

*          *          *

Hmmmm...

Deuses Antigos glorificados através de Orbes? 

Não estou dizendo que pode ter ligação com os Mythos de Cthulhu, em especial Yog-Sothoth, mas é incrível como algumas coisas, acabam se encaixando.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O Gigante de Cardiff - Uma das maiores farsas da história da arqueologia


A semente do que se tornaria um dos casos de fraude mais elaborados do século XIX foi plantada na mente de George Hull em 1867. Um plantador de fumo por profissão, Hull era também um ateu e cético, que durante uma visita de trabalho a Iowa, entrou numa acalorada discussão com um pastor. Hull contou mais tarde que ficou estarrecido pela interpretação literal da Bíblia feita pelo religioso, em especial do Livro do Gênesis que definia: "haviam gigantes na Terra naqueles tempos". Deitado em sua cama naquela noite, Hull imaginou se as pessoas realmente acreditariam em tal coisa se os restos de um gigante fossem um dia encontrados. Mais interessante, ele imaginou se as pessoas estariam interessadas em pagar para ver tal coisa.

Nos dois anos que se seguiram Hull gastou cerca de 3 mil dólares para construir um gigante que deveria se passar por um corpo humano de proporções exageradas petrificado. Ele viajou para Fort Dodge, Iowa, onde adquiriu um bloco de granito de cinco toneladas. Para o vendedor, ele disse que o material seria usado para erigir uma estátua do Presidente Abraham Lincoln. Hull enviou o grande pedaço de pedra para Chicago para que um de seus comparsas que havia concordado em participar do esquema desse prosseguimento no plano. Uma dupla de escultores contratados passaram o verão de 1868 talhando o bloco até ele se tornar a maravilha antropológica que eles desejavam. 

A estátua tomou a forma de um homem nu deitado sobre as costas com o braço direito lançado sobre o estômago, uma perna cruzada sobre a outra e a face apresentando um meio-sorriso. Os escultores derramaram sobre ela ácido sulfúrico para dar um ar de antiguidade erodida e Hull providenciou os detalhes finais para que ela ficasse autêntica. Uma vez terminada, a obra media mais de 3 metros de comprimento e tinha quase 1,5 toneladas      

Os operários que desenterraram o gigante prestam a ele seus respeitos

Hull precisava apenas de um lugar para enterrar o seu gigante e eventualmente ele se decidiu pelos arredores da cidade de Cardiff, no interior de Nova York. O pequeno assentamento era o lar de um parente distante chamado William "Stub" Newell que concordou em ajudar o parente em troca de uma parte dos lucros. O gigante de pedra foi enviado para a fazenda de Newell em uma grande caixa selada para que ninguém soubesse o que estava ali dentro.

Numa noite fria de novembro, os homens enterraram a estátua nas terras de Newell tomando o cuidado de colocar raízes entrelaçadas nela para criar a ilusão de que a coisa estaria ali há séculos. Hull retornou então para sua casa e esperou. Cerca de um ano se passou até que Newell recebeu uma carta dizendo que havia chegado a hora de desenterrar o gigante. Em 16 de outubro de 1869, o plano foi colocado em ação com a contratação de uma equipe de escavadores que deveriam começar a obra de um poço nas fazenda. O lugar definido era justamente onde o gigante estava escondido. Os homens não tiveram de cavar muito até que suas pás bateram em algo escondido sobre a terra. Era um enorme pé feito de pedra. Em poucas horas, os surpresos operários escavaram o restante do enorme corpo. Um deles disse ao ver a coisa: "É o maior homem que já existiu, um verdadeiro gigante". 

Não demorou para que a notícia fosse levada até Cardiff. As pessoas deixaram o trabalho, correram de suas casas e uma verdadeira multidão convergiu para as terras de Newell para ver o que passou a ser chamado "Gigante de Cardiff". Uma vez que a cidadezinha já era conhecida como um enorme depósito de fósseis, muitos acreditavam que o gigante havia vivido milhares de anos atrás e que havia sido petrificado pela ação de águas salobras que formavam um pântano na área naqueles tempos ancestrais. Embora estudos do período confirmassem essa teoria, estudiosos logo foram categóricos ao dizer que a o corpo não pertencia a um homem de carne e osso, mas era provavelmente uma estátua esculpida por Jesuítas franceses e abandonada ali por razões desconhecidas. 

O Gigante sendo removido de sua sepultura

A medida que as especulações continuavam, Stub Newell desempenhava o papel de humilde fazendeiro com enorme habilidade. Ele até disse que iria enterrar uma vez mais o gigante e esquecer todo o assunto, uma vez que sua descoberta havia trazido apenas confusão para suas terras. Um coro de pessoas então se apressou em dissuadi-lo de fazê-lo pois o achado deveria certamente ter algum valor histórico. 

O achado do homem pré-histórico de Cardiff causou um estardalhaço como nunca antes visto na zona rural de Nova York: "Uma Nova Maravilha", estampavam as manchetes dos principais jornais da região. Outros jornais saudavam o achado como uma "descoberta singular". Enquanto isso, a multidão de curiosos apenas aumentava, e Newell tomou uma providência. Armou uma grande tenda sobre a estátua e passou a cobrar 50 centavos para aqueles que desejavam ver a figura. Cerca de 2500 pessoas estiveram presentes na tenda, apenas na primeira semana. 

Newell recusou ofertas de empresários que queriam comprar o colosso de pedra, até que George Hull chegou à Cardiff alguns dias mais tarde. Após algumas discussões sob como agir em seguida, os golpistas decidiram que estava na hora de lucrar pesado com sua fraude. Quando um empresário ofereceu 30 mil dólares por 3/4 dos lucros obtidos com apresentações da estátua, Newell aceitou.


Nas seis semanas que se seguiram, mais experts convergiram para Cardiff afim de inspecionar a "nova maravilha". O geólogo de Nova York James Hall e o Professor da Universidade de Rochester Henry Ward estavam entre as muitas pessoas que tiveram acesso à peça e puderam analisá-la. Surpreendentemente eles consideraram o item autêntico, com Hall afirmando ser ele "o mais incrível achado arqueológico da história do país". Entre seus defensores mais ferrenhos estavam vários religiosos que viam na estátua a comprovação das passagens bíblicas que menciona os lendários gigantes. A existência de um ser humano daquelas proporções era a comprovação do texto sagrado, cuja interpretação estrita vinha sendo duramente contestada nas últimas décadas.

Mais do que representar um achado significativo e uma descoberta bíblica importante, o Gigante de Cardiff mexia com a imaginação das pessoas. Alguns afirmavam que a peça exercia estranhos "poderes" sobre os que a observavam. Muitos afirmavam que tocá-la ou simplesmente observá-la por muito tempo conferia a certos indivíduos visões de um tempo antigo, possivelmente a época em que o gigante viveu. Outros afirmavam ter sonhos bastante claros desse período, simplesmente porque tiveram contato com o Gigante. Em determinado momento, celebrados médiuns e conhecidos charlatões que usavam a crença das pessoas para promover suas "habilidades psíquicas" visitaram a tenda erguida por Newell. Mais de um desses "especialistas" se disse surpreso pelas emanações psíquicas que ainda vinham da "criatura". Aventou-se a possibilidade de se realizar uma cerimônia de contato com o espírito do Gigante para compreender sua história.

Na mesma época, alguns mais supersticiosos (e criativos) passaram a acreditar que o Gigante ainda estaria vivo e que despertaria à qualquer momento de seu sono comatoso. Se livraria da camada rochosa que cobria sua carne e músculos para andar novamente pela Terra. O que ele faria em seguida dividia opiniões, com alguns acreditando piamente que seu despertar traia sérias repercussões para o mundo. Como acontece com alarmante frequente, as pessoas quando confrontadas com algo inexplicável, tendem a reagir de maneiras absurdas. Acreditando e estando dispostas a acreditar em qualquer coisa!


Mas ao menos algumas pessoas tentavam racionalizar a descoberta e começaram a suspeitar de sua autenticidade. Alguns habitantes locais lembravam de George Hull transportando um enorme caixote um ano antes para aquelas paragens. Repórteres também descobriram que Newell não apenas era parente de Hull, como este havia transferido a ele uma parte dos lucros obtidos com a venda do Gigante. Um engenheiro deu uma entrevista na qual afirmava que o tipo de granito que compunha o corpo do colosso jamais sobreviveria por séculos no solo da fazenda de Newell, quanto mais milhares de anos como sugeriam os crentes. Além disso, o paleontologista Othniel Charles Marsh, após examinar brevemente a peça declarou que "a origem dela era muito mais recente e que provavelmente não passava de uma fraude grosseira". 

Os questionamentos começaram a se empilhar até que em Novembro, os novos donos da estátua decidiram embarcá-la para uma exibição em outras paragens. Diante das suspeitas levantadas por estudiosos e testemunhas, ações na justiça alegando calúnia foram movidas pelos proprietários que pretendiam manter a aura de mistério sobre a atração.  

Ainda assim, onde alguns viam uma fraude, outros enxergavam oportunidade. Apenas alguns dias depois de uma lucrativa apresentação em Albany, o famoso empresário circense P.T. Barnum viu o Gigante e tentou comprá-lo. Quando os donos se negaram a fazer negócio, Barnun, mandou que um escultor esculpisse uma réplica perfeita dele e começou a apresentá-la em Manhattan como algo real encontrado no interior do estado. 

P.T. Barnum o Empresário Circense

"O que seria isso?" alardeavam as propagandas do show de Barnum. "Será uma estátua? Uma Petrificação? Uma Estupenda Fraude ou os resquícios de uma Civilização perdida?" O Gigante de Barnum atraiu verdadeira multidão de curiosos e quando a peça original chegou para sua turnê na capital de Nova York em dezembro, ninguém deu a ela muita atenção. Barnum, era um conhecido pilantra, usava desse tipo de deslealdade em seu ramo, mas ele não era o único. No ano seguinte, ao menos meia dúzia de Gigantes Petrificados surgiram em diferentes partes do país, todos eles "casualmente descobertos" na mesma época.

Por volta de 1870, o Gigante de Cardiff passou de objeto de fascínio para item de ridículo. Ninguém mais acreditava na sua origem e mesmo religiosos consagrados que defendiam sua linhagem bíblica deixaram de citá-lo em seus discursos. Alguns ainda mencionavam sua alegada antiguidade, mas com o tempo ele foi sendo esquecido. O próprio Hull se gabava para amigos de ter conduzido um golpe que lhe rendeu fama e riqueza. 

O esquema ruiu por completo em fevereiro quando um jornal imprimiu a história contada por um dos escultores de Chicago que haviam talhado o colosso de pedra. O homem não apenas produziu provas, como mostrou fotografias tiradas ao lado da estátua, datadas de um ano antes de sua descoberta. Com isso, tudo foi por água abaixo e as turnês foram canceladas. Por volta de 1880, a estátua já havia sido transferida para um depósito em Massachusetts. O gigante ainda foi negociado com várias pessoas e figurou no circuito de parques itinerantes antes de ser vendido para um Museu de Curiosidades em Cooperstown, Nova York.

Tendo lucrado pelo menos 20 mil dólares com o esquema do Gigante de Cardiff, George Hull tentaria o golpe mais uma vez em 1877. Dessa vez ele buscou enganar uma comunidade do Colorado afirmando ter encontrado um gigante de 4 metros enterrado no deserto. A farsa foi desmascarada e após um processo, ele perdeu um bom dinheiro. Hull faleceu na obscuridade em 1902, supostamente ainda orgulhoso de ter enganado à todos com seu incrível Gigante. Muitos creditavam a ele o ditado "todo dia, nasce um otário".

Ele sabia bem do que estava falando.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Gigantes Impuros - A Conclusão da anatomia dos Gug

Continuando o artigo a respeito dos Gug.

Em raríssimas ocasiões um Gug pode chegar ao Mundo Desperto através de túneis, portais ou passagens dimensionais abertas por feiticeiros ou outros exploradores oníricos capazes de tal coisa. Alguns bruxos acreditavam ser possível domesticar ou transformar essas criaturas em seus servos, mas até onde se sabe tal plano se mostrou inviável e muitos destes feiticeiros terminaram seus dias nas garras de um destes monstros.

Para todos efeitos, Gug são seres indomáveis e não obedecem ordens, o que os tornam péssimos serviçais. Nem é preciso dizer que manter tais criaturas sob controle constitui um grande desafio. Ademais o Gug é uma ameaça para qualquer forma de vida que tenha o azar de ficar ao alcance de seus braços. Essas criaturas não são afeitas à realidade desperta, encontrando uma série de dificuldades no processo de adaptação. É possível que os problemas tenham relação com seu tamanho descomunal e o nível de oxigenação no sangue da criatura. Fica evidente que os Gug transladados das Terras do Sonho para o mundo real sofrem com essa mudança. Na maioria das vezes eles acabam morrendo em poucas semanas. 

Uma vez que não pertencem ao nosso mundo, o material de seus corpos, carne, músculos e ossos, deterioram rapidamente após o cessar das funções vitais, até se desfazerem por inteiro, sem deixar nenhum sinal de sua existência. É possível, contudo, que existam métodos mágicos para preservar um Gug em nossa realidade, ainda que estes sejam complexos.

Ao longo da história, registram-se narrativas a respeito da presença dessas criaturas em nosso mundo. Uma das mais antigas narrativas dá conta de que uma Legião Romana estacionada na Gália no século primeiro, enfrentou uma criatura cuja descrição se assemelha muito a de um Gug. O monstro foi morto pelos legionários, depois destes sofrerem pesadas baixas. O cronista da tropa, Caducius, escreveu a respeito do incidente e este relato sobreviveu ao tempo.


Na África, no Império do Mali (no ano 1300 dC), guerreiros da dinastia Manden Kurufaba contam lendas sobre o enfrentamento de uma criatura fabulosa, um gigante com a descrição condizente de um Gug. O monstro foi invocado por feiticeiros inimigos do Grande Rei que planejavam derrubá-lo do poder. A criatura foi morta por guerreiros. O incidente mais conhecido e amplamente registrado data da Civilização Khmer (em 1460 dC, no atual Camboja) que possui documentos que não apenas descrevem, mas incluem desenhos de vários Gug enfrentando guerreiros.

Mais recentemente casos envolvendo o mítico Pé Grande ou o Yeti podem estar de alguma forma relacionado ao avistamento de um Gug desgarrado. O mesmo pode ser verdade a respeito dos lendários trolls dos povos nórdicos. O assustador Grendel, o demônio da famosa saga de Beowolf pode muito bem ser inspirado por um Gug. Em outras partes do mundo, há seres folclóricos que guardam alguma semelhança com a descrição das criaturas. O Mapinguari, aberração presente no folclore das tribos tupi-guarani da Amazônia, parece ter sua origem ligada a tais seres.

Fisicamente os Gug são humanoides, com um corpo ereto que se divide em cabeça, tronco e membros. Sua aparência geral, é tão assombrosa quanto abominável para os humanos que os veem pela primeira vez. A presença de um Gug não apenas é intimidante, como ameaçadora. O primeiro ponto é que eles são Gigantes, com o adulto macho tendo em média 14 metros de altura distribuídos em um corpo musculoso e longilíneo pesando mais de duas toneladas. Os Chefes de Caça podem ser ainda maiores, com espécimes atingindo 18 metros. Já as fêmeas são um pouco menores, com as mais altas não passando dos 12 metros de altura.


Os Gug possuem um tórax amplo, pernas compridas e braços que se dividem na altura do cotovelo para gerar dois antebraços cada, com suas respectivas mãos. Eles possuem pés e mãos com quatro dedos e polegares opositores similares aos dos símios que lhes permitem manipulação. As mãos são fortes e ágeis, adaptadas para escalar e agarrar, embora as unhas não sejam especialmente afiadas. Os Gug tem o corpo inteiro coberto de cabelos espessos e crespos, quase sempre pretos e muito escuros. Ambos os gêneros tem uma concentração maior de cabelos no tórax, genitais, braços e pernas que protegem essas áreas como uma defesa natural. Os fios emaranhados similares a arame chegam a 3 centímetros de diâmetro e podem ter vários metros de comprimento. Eles são cobertos por um sebo de odor nauseante produzido pela criatura.

Apesar de seu tamanho descomunal, os Gug conseguem ser furtivos, principalmente quando estão caçando. Eles são capazes de se esgueirar e atacar suas presas de surpresa ou empreender perseguição em alta velocidade. A brutalidade desses monstros também é digna de nota, os Gug usam as mãos para arrancar membros e os pés para esmagar os oponentes. Quando furiosos, apenas a destruição completa do inimigo pode diminuir seu ímpeto assassino. Um único gigante pode devastar um exército e não por acaso, esses monstros são muito temidos em toda Terra dos Sonhos. Mesmo os ghasts, que são seus inimigos naturais, ousam enfrentá-los apenas quando se encontram em vantagem numérica. Enfrentamentos entre os Gug e Ghasts tendem a ser frequentes e especialmente mortais.

A característica mais bizarra dos Gug diz respeito ao seu rosto. A face da criatura é dividida por um longo rasgo que se abre para revelar uma boca vertical estendendo-se do que seria a testa até o queixo. Essa boca é guarnecida de grandes presas amareladas que podem destroçar uma vítima com facilidade. A força da mandíbula, equiparada a uma prensa hidráulica, é tamanha, que consegue facilmente dividir um homem adulto num único movimento. A mordida é uma de suas armas principais e um Gug tende a morder e devorar vorazmente o que consegue agarrar.


A língua do monstro é relativamente curta, usada para empurrar os alimentos garganta abaixo. Seu pescoço musculoso se dilata para permitir a passagem do alimentos pela goela. Os pequenos olhos rosados do gug, destituídos de íris, se posicionam um de cada lado da cabeça. Os gigantes enxergam perfeitamente na escuridão dos subterrâneos, mas seus olhos não são muito úteis na claridade. Eles se incomodam com fontes luminosas, ainda que não sejam cegados por elas. Seu sentido mais desenvolvido, sem dúvida, é o olfato. Eles são capazes de farejar alimentos à uma distância de 500 metros, localizando presas em potencial antes mesmo de vê-las. Exploradores dos subterrâneos são alertados a jamais levar consigo comidas que exalem cheiro, pois isso atrai os Gug. 

A face do Gug é bastante maleável e usada para transmitir estados de ânimo entre si. Essa forma de comunicação rudimentar é limitada a simples conceitos emocionais como raiva, medo e curiosidade. Não se sabe se eles são capazes de aprender outros idiomas ou entender o básico de outras línguas. Uma vez que não falam, os Gug se mostram curiosos a respeito da voz de outros seres, em especial quando estes gritam. Há relatos de gigantes que mantém prisioneiros, ao menos enquanto dura sua curiosidade a respeito das pequenas criaturas capturadas. 

Esses habitantes dos subterrâneos não são muito espertos e uma criatura apenas um pouco mais inteligente é perfeitamente capaz de ludibriar os monstros. Entretanto, o verdadeiro perigo é que os Gug se irritam e tendem a descontar suas frustrações nos frágeis seres à sua volta. Por exemplo, um Gug pode ser levado a acreditar que uma presa está morta e ignorá-la se esta não se mover. Contudo, se ele perceber uma tentativa de fuga, pode simplesmente arrancar as pernas ou esmagar a cabeça da pessoa para que ela não tente novamente. O Gug não possui qualquer senso de moral ao tratar com seres menores que eles. Para todos efeitos humanos são meramente alimento ou uma fonte de curiosidade transitória. 

Gigantescas e brutais, essas criaturas representam um grande perigo a todos aqueles que exploram as sendas oníricas. Nunca é demais alertar esses aventureiros de que os recessos subterrâneos e as câmaras intocadas pela luz por vezes podem ser o covil de horrores inimagináveis. Assim como, algo ainda pior: o covil de um Gug.
Os Gug surgiram através da mente criativa de H.P. Lovecraft, aparecendo pela primeira vez na novela "A Busca Onírica de Kadath" (The Dream Quest of Unknown Kadath). A história foi escrita entre 1926 e 1927 e não chegou a ser revisada ou publicada enquanto o autor estava vivo. 

Ela é ao mesmo tempo a mais longa história escrita no chamado Ciclo dos Sonhos e a mais longa da carreira de Lovecraft. "Dream Quest" combina elementos de fantasia e horror, se passando inteiramente numa realidade acessada através de sonhos. Ela é estrelada pelo "alter-ego" de Lovecraft, o acadêmico/aventureiro Randolph Carter que também protagoniza outras histórias.

A novela foi publicada postumamente em 1943 e hoje é considerada como um dos projetos mais ambiciosos de Lovecraft.

Os Gug se tornaram monstros bastante populares entre os fãs, criaturas que figuram em histórias escritas por outros autores, em games e principalmente em RPG. Eles estão presentes no bestiário de diferentes mundos de fantasia, sempre como criaturas extremamente temidas.   

terça-feira, 18 de maio de 2021

Gigantes Impuros - Anatomia dos Selvagens Gug parte 1


Os exploradores dos míticos rincões oníricos conhecidos comumente como Terras do Sonho, comentam a respeito de muitos horrores e maravilhas habitando essa realidade. Os sonhadores experientes aos poucos se tornam familiarizados com todo tipo de ocorrência e encontros bizarros. Mencionam coisas fantásticas como terras exóticas cobertas por selvas perfumadas, mares bravios singrados por naus brancas, céus de cor turquesa despontando estrelas e luas estranhas, além de cidades dotadas de belezas indescritíveis. Também falam de povos com costumes e hábitos peculiares, nem todos inteiramente humanos, muitos deles existentes apenas nos limites da imaginação ou em nossos devaneios.

Em um universo no qual os sonhos são a realidade, o perigo ronda em cada canto. Perigo este que se materializa, não raramente, na forma de coisas aterrorizantes e difíceis de conceituar sob a ótica de um não-sonhador.

A maioria dos aventureiros da Terra dos Sonhos concordam que poucos lugares nesse mundo podem se comparar em matéria de risco aos extensos subterrâneos do mundo onírico. Estendendo-se por uma vastidão obscura que comporta cidades, reinos e até oceanos que jamais viram a luz do sol, esse submundo tartárico é um reino à parte. Ele oculta tantos segredos que nem mesmo um exército de sábios vivendo mil vidas seria capaz de discorrer sobre seus mistérios e encantos. Há incontáveis túneis e câmaras hospedando uma vastidão de caminhos impossíveis de mapear.

Os que exploram esse lugar escuro e claustrofóbico relatam encontros com os habitantes mais comuns. Os necrófagos carniçais das Terras dos Sonhos, vivem nos túneis próximos da superfície escavando caminhos que conduzem não apenas ao mundo exterior, mas ao reino desperto. Vivendo em tribos eles são muito comuns em cavernas e antigas criptas escavadas pelos homens do passado. Formam matilhas ferozes que por vezes atacam os vivos, mas preferem se alimentar de ossos e carne putrefata. Mais abaixo podem ser encontrados os medonhos ghasts, monstros desajeitados e cegos, que patrulham os túneis devorando tudo aquilo que conseguem agarrar. Um sem número de sonhadores terminaram suas aventuras como vítimas dessas criaturas abissais.


Entretanto, há níveis ainda mais profundos com corredores e câmaras imersas em trevas indevassáveis. As cavernas que se estendem além do Mar de Ossos, na fronteira com as Câmaras de Zin, são o habitat de alguns dos predadores mais temidos da Terra dos Sonhos. Mesmo os mais experientes sonhadores evitam essa região abissal, sabendo que ali a sobrevivência é incerta, pois este é o terreno de caça dos Gug.

Os Gugs são criaturas gigantescas que vagam sem destino pelos corredores e túneis. Esses seres não constituem uma nação ou um povo, organizando-se em pequenas tribos independentes que frequentemente guerreiam umas com as outras por comida e território. Eles fazem pouco uso de armas, preferindo usar de força bruta para resolver suas diferenças. De forma geral, os Gug não são muito inteligentes, dependem de seus instintos básicos para sobreviver num mundo onde aquilo que não podem devorar, quer lhes devorar. Nesse ambiente extremo, os Gug conquistaram um lugar no topo da cadeia alimentar, convertendo-se em caçadores implacáveis.

Praticamente tudo que entra em seu território é tratado como alimento, inclusive outros Gug. Não há espaço para barganha ou negociação, um Gug faminto não se detém diante de nenhum obstáculo, e mesmo feridos ou à beira da morte, continuam tentando capturar sua presa e comê-la. Esses gigantes são primordialmente carnívoros, ainda que em períodos de escassez de alimentos eles possam se alimentar dos fungos fosforescentes que crescem na parede das cavernas. Um Gug não vê diferença entre as suas presas: todas elas são meramente carne para aplacar sua fome, desse modo, humanos e ghasts são tratados da mesma maneira. Curiosamente, eles evitam consumir ghouls, possivelmente por sua carne purulenta ser portadora de doenças.


Nas suas caçadas, os Gugs costumam se reunir em um bando com pelo menos um caçador adulto e experiente, acompanhado de dois ou três outros adultos e alguns jovens. A presença destes vai além da função educacional. Por vezes, quando os caçadores não conseguem alimento suficiente para o resto da tribo, os jovens são simplesmente abatidos pelos próprios parentes. Um bando de caça pode levar consigo redes trançadas com cabelo e porretes toscos, mas apenas o chefe caçador carrega uma lança comprida usada para desalojar e espetar a caça. Por vezes ele também carrega uma bolsa de couro onde leva pedregulhos que são arremessados contra inimigos ou presas. O caçador é a autoridade máxima entre os Gugs e ele impõe sua vontade com mão de ferro. Se um dos seus assistentes o desagrada, o Caçador simplesmente o mata e este se torna alimento para a tribo. Quando o Chefe de Caça fica velho e incapaz de cumprir seu papel, os demais adultos o matam e começam a lutar entre si até que reste o mais forte ou os demais se submetam a ele.

Pouco se sabe a respeito das fêmeas da espécie, visto que elas não participam da caçada e raramente se afastam de seus acampamentos. O propósito das fêmeas parece ser exclusivamente o de procriar e cuidar dos jovens, mas há uma exceção. Cada tribo possui uma matrona responsável por cuidar das demais fêmeas e essa é tão temida e respeitada quanto o Líder da Caça. É função da matrona escolher com quem as fêmeas irão procriar e disciplinar aquelas que não cumprem o papel esperado - o que inclui não ter crias periodicamente. Como praticamente tudo mais em sua sociedade, a matrona usa a força para controlar as demais. Qualquer desvio ou falha é razão para morte e consequente canibalismo. A Matrona só é substituída quando uma fêmea a desafia, resultando em uma luta sangrenta. Os Gug vem isso como uma oportunidade para renovar suas forças e garantir um bom estoque de carne.

Quando necessário, uma ou mais tribos enfraquecidas podem se unir, sobretudo quando há poucas fêmeas. Contudo é mais comum que os machos de uma tribo aniquilem os de outra e tomem à força as fêmeas como espólio de guerra. As lutas internas e disputas sanguinárias entre os próprios Gug são a única coisa que impede sua superpopulação. Uma fêmea sempre dá à luz a dois ou três filhotes de cada vez, mas apenas o mais forte, escolhido pela matrona, sobrevive. Os outros se tornam alimento para o escolhido. Um Gug pode viver até 100 anos, mas em um ambiente tão hostil, isso é raro.

Os acampamentos dos Gug são meramente transitórios, erguidos com tendas improvisadas feitas de cabelo trançado, ossos e couro curtido. Sua existência é seminômade, quando a caça em um determinado território diminui eles simplesmente se movem para outro. Isso faz com que guerreiem entre si. Os limites de cada território são cuidadosamente demarcados com totens de excremento produzidos pelo Caçador Chefe. Também é função dele urinar nos seus comandados afim de que eles possam ser reconhecidos como parte da tribo. Os Gug utilizam o olfato na maioria de suas relações sociais. Odores fortes são uma demonstração de potência sexual, força e capacidade marcial. Não por acaso, o fedor dos Gug pode ser sentido de longe e constitui um aviso de sua aproximação. O fedor que emana de seus acampamentos é tão revoltante que os Gug são conhecidos como Gigantes Impuros.


No passado remoto da Terra dos Sonhos, os Gug viveram na superfície, onde seus grandes monólitos de pedra ainda podem ser encontrados. Os Deuses Antigos, no entanto, começaram a temer os Gug quando estes passaram a reverenciar Nyarlathotep e o Panteão dos Outros Deuses. Nessa época, os membros da raça eram menos obtusos ao ponto de terem uma língua própria, uma escrita rudimentar e até conhecimento moderado de arquitetura. Eles erguiam monumentais cidadelas de pedra negra onde viviam em uma sociedade consideravelmente menos selvagem. Nesse tempo, também usavam ferramentas e dominavam a técnica do fogo.

Segundo as lendas da Terra dos Sonhos, os Deuses certa noite desceram para ouvir as blasfêmias que eram proferidas pelos sacerdotes Gugs em seus rituais. Dizem que os deuses ficaram tão furiosos pelas profanidades que baniram os Gugs para o subterrâneo, aniquilando suas cidades, transformando-as em ruínas. Os próprios Gugs foram destituídos de sua capacidade de se comunicar, revertendo a um estado de barbarismo que os tornou aquilo que eles são hoje em dia.

Os Gugs exilados descobriam uma imensa cidade de pedra com muralhas em seu entorno onde se estabeleceram. Este se tornou seu santuário nos primeiros anos após o exílio no submundo. Até hoje, o lugar é chamado de Cidade dos Gugs, embora ninguém saiba quem foram os responsáveis pela sua construção. A Cidade surge como um colosso de pedra, com frontões formados por enormes blocos ciclópicos de ardósia negra e granito cinzento. O muro é praticamente intransponível, medindo mais de 50 metros de altura, tendo um único portão voltado para o Mar de Ossos. As construções no interior da Cidade, que mais parece uma fortaleza, incluem torreões e edificações sem janelas, além de estranhos pináculos de rocha vulcânica brilhante.


Os Gug usaram esse lugar por milênios, mas a deterioração gradual de sua espécie fez com que eles o abandonassem para viver nas câmaras que se tornaram seu território de caça. A Cidade dos Gugs é um dos únicos lugares em que estas criaturas tradicionalmente não se enfrentam, uma vez que é tabu para eles matar e se alimentar uns dos outros nos seus limites. É aqui também que eles devotam seus rituais blasfemos para a única entidade que decidiram reverenciar após seu expurgo - uma coisa conhecida apenas como Névoa sem Nome.

Ossadas de gerações de Gug, menores e menos selvagens, ainda podem ser encontradas ao longo das ruínas da cidade. Ghouls tendem a se aventurar pela porção norte da cidadela onde repousava uma planície usada originalmente como cemitério. Lá eles escavam a terra barrenta em busca dos ossos que ainda guardam o valioso tutano que os alimenta.

No centro da Cidade encontra-se um enorme espigão negro, a Torre de Koth que ascende até o teto da caverna. Por dentro da torre corre uma escadaria em caracol que leva até um imenso alçapão conectando o submundo a Floresta Encantada na superfície. Os Gug vagam livremente por esse interior e nas escadarias, mas não se aproximam do alçapão pois nele estão gravados os símbolos dos Deuses Antigos. Se uma fresta que seja estiver aberta, os Gug reagem com um terror supersticioso, temendo que através dessa passagem os Deuses possam puni-los.

Humanos que estiveram na Cidade dos Gug e sobreviveram relataram que uma das únicas maneiras de retornar à superfície é escalando a grande Torre de Koth para chegar ao alçapão. Obviamente é mais fácil falar do que fazê-lo. Os Gug sentem a presença de invasores e punem qualquer um que ameace abrir a passagem com uma violência desconcertante até mesmo para seus padrões. Mesmo os ghouls temem esse tipo de retaliação e raramente frequentam a escadaria central, ainda que sua presença seja tolerada ali. Os humanos que afirmam ter conseguido escapar usando essa rota se disfarçaram como ghouls para atingir a invejável façanha.

Continua na parte 2