segunda-feira, 19 de julho de 2021

Viagem aos Limites da Terra - Uma Expedição infernal em busca de uma Ilha Invisível


Nos arquivos da American Geographical Society em Milwaukee existe uma das maiores coleções de mapas e cartas geográficas do mundo. Muitas destas com séculos de idade correspondem aos primeiros registros conhecido de terras distantes, continentes e ilhas avistadas por navegadores e exploradores durante suas viagens. Nessa vasta coleção, existe um mapa com um segredo peculiar. Ao norte da Groenlândia, a carta  mostra a ponta de uma ilha em formato de gancho, identificada como "Terra de Crocker" (Crocker Land). Abaixo da marcação há a seguinte observação: "Visto por Peary no ano de 1906".

O Peary em questão é ninguém menos que Robert Peary, um dos mais famosos exploradores polares do final do século XIX e início do século XX, e o homem que afirmou ter sido o primeiro a colocar os seus pés no Pólo Norte. Mas o que torna este mapa notável é ele ter sido o primeiro aludindo à Terra de Crocker. Mas que lugaré esse? Qual a sua importância e significado? 

Por muitos anos a Terra de Crocker foi considerado um dos últimos grandes mistérios geográficos. Sua localização era motivo de acirrado debate e polêmica. Acreditava-se que esse lugar poderia ser uma ilha ou quem sabe até, um continente flutuando no mar gelado, pronto para ser descoberto e explorado. A grande controvérsia à respeito da Terra de Crocker era se Peary realmente havia avistado o lugar e se a Terra de Crocker de fato existia, ou se não passava simplesmente de uma invenção.

A história começa da seguinte maneira:

Em 1906, Robert Peary já era considerado um explorador veterano, endurecido por cinco longas e perigosas expedições ao Círculo Polar Ártico. Cada uma de suas incursões no território selvagem do Ártico foi por si só uma aventura. Nem todos os seus acompanhantes tiveram a mesma sorte que ele, muitos morreram de fome, doença ou diante do perigo oferecido por animais e o clima impiedosos.  

Robert Peary

Peary era um sobrevivente movido por uma grande ambição, ser o primeiro homem a chegar ao Pólo Norte. Atingir o "telhado do mundo" era uma verdadeira corrida, uma disputa pessoal entre vários exploradores, questão de orgulho patriótico já que todos queriam enterrar a bandeira de seu país nessa que era uma das últimas fronteiras do mundo. 

No verão de 1905, Peary deixou Nova York à bordo de um navio quebra-gelo de última geração, o Roosevelt - nomeado em homenagem a um dos principais patrocinadores da expedição, o então Presidente norte-americano Theodore Roosevelt. A missão de colocar os pés na parte mais setentrional do globo acabou em fracasso: Peary disse que chegou de trenó até aproximadamente 280 quilômetros do Pólo, mas teve de retroceder em vista de fortes tempestades e suprimentos cada vez menores. A distância pode parecer longa, mas em meio do deserto gelado e condições limítrofes enfrentadas, aquilo era simplesmente fantástico. Os membros do grupo avançado haviam se tornado os primeiros seres humanos a se aventurar tão ao norte do planeta. Uma pena que seus dados eram extremamente duvidosos e foram prontamente refutados.

Após retornar, Peary se sentiu diminuído pelos questionamentos. Isso o levou quase que imediatamente a planejar uma nova expedição que o levasse ao seu objetivo. Infelizmente ele se viu com os patrocinadores reduzidos. O questionamento a respeito da realização de sua façanha arranhou a reputação do explorador e fez com que alguns o vissem como desonesto. 

Peary tentou obter recursos com um de seus patrocinadores anteriores, o financista de San Francisco George Crocker - que havia doado US $ 50.000 para a missão 1905-1906. O nome de Crocker foi dado a uma massa de terra supostamente avistada por Peary. Em seu livro lançado em 1907, Peary afirmou que, durante a expedição, avistou "os cimos brancos e tênues" de uma terra anteriormente desconhecida, localizada a 130 milhas a noroeste do Cabo Thomas Hubbard, uma das regiões mais ao norte do Canadá. Sua esperança era conseguir outros US $ 50.000 com Crocker que ajudariam a custear uma futura expedição. Contudo, seus esforços foram em vão: o milionário prometeu ajudar a reconstruir São Francisco após o devastador terremoto de 1906. No fim das contas, sobrou muito pouco para a expedição ao Ártico. 

A equipe de Peary no Ártico

Mas Peary não se deu por vencido! Ele conseguiu obter o apoio da National Geographic Society para custear uma nova expedição que deveria levá-lo de uma vez por todas até o Pólo Norte. Em 6 de abril de 1909, ele atingiu o topo do planeta - ou pelo menos, segundo os seus cálculos, foi o que aconteceu. "Enfim o Pólo!!!! escreveu o explorador em seu diário. "O prêmio de 3 séculos, meu sonho e ambição de 23 anos. Finalmente ao meu alcance. "

Peary não iria comemorar sua conquista por muito tempo: quando voltou para casa, ele descobriu que Frederick Cook - que servira sob o seu próprio comando em uma expedição em 1891 ao norte da Groenlândia - afirmava ter chegado primeiro ao Pólo com cerca de um ano de vantagem. Por um tempo, um debate acirrado com reivindicações dos dois homens sacudiu a comunidade científica e acadêmica - e a Terra de Crocker tornou-se parte dessa disputa. Cook afirmou que em seu caminho para o Pólo Norte ele viajou até a área onde a ilha deveria estar, mas não viu nada lá. "A Terra de Crocker", disse ele, "simplesmente não existe". A lógica era a seguinte: se Peary havia inventado sua existência, como confiar que ele estivesse falando a verdade quanto a ter chegado ao Pólo Norte? 

Os apoiadores de Peary ficaram indignados. Um de seus assistentes, Donald MacMillan, anunciou que lideraria uma expedição para provar a existência da Terra de Crocker, justificando Peary e arruinando para sempre a reputação de Cook. 

Também haveria, é claro, a glória de ser o primeiro a pisar na ilha até então inexplorada e cuja localização permanecia em aberto. Com ambos os Pólos conquistados, Crocker Land tornou-se "o último grande lugar desconhecido no mundo". Seria uma conquista para a humanidade, além de escrever o nome de seu descobridor entre os grandes exploradores da era moderna. 

A disputa para saber quem era o conquistador do Pólo Norte

Após receber o apoio do Museu Americano de História Natural, da Universidade de Illinois e da Sociedade Geográfica Americana, a Expedição MacMillan partiu do Estaleiro da Marinha do Brooklyn em julho de 1913. MacMillan e sua equipe levaram suprimentos, cães, um cozinheiro, "uma máquina fotográfica portátil", e equipamento de rádio sem fio, com o grande plano de fazer uma transmissão ao vivo da Terra de Crocker para os Estados Unidos. Seria um grande acontecimento.

Mas quase imediatamente a expedição enfrentou infortúnios: o navio de MacMillan, o Diana, naufragou na costa da Groenlândia por seu capitão estar, segundo alguns, bêbado. A seguir MacMillan foi transferido para outro navio, o Erik, para prosseguir na jornada. No início de 1914, com os mares congelados, a expedição deu sequência à jornada viajando de trenó. O percurso era de nada menos que 1900 quilômetros  através da Groenlândia, uma das paisagens mais inóspitas e severas da Terra, tudo em busca da Ilha Fantasma de Peary.

Embora inicialmente inspirada pela importância da missão, a equipe de MacMillan começou a dar sinais de desapontamento à medida que nenhum sinal da Terra de Crocker surgia. Os nativos inuit afirmavam que o lugar procurado não existia e nenhum navegador que passou pelas águas gélidas do Mar do Ártico teve sequer um vislumbre dela. À medida que o grupo penetrava na vastidão gélida, e era saudado por um deserto branco, os homens se perguntavam se aquela busca realmente fazia sentido. 

"Você pode imaginar o quão cuidadosamente examinamos cada centímetro daquele horizonte - para chegar a uma única conclusão: não havia nada à vista", escreveu MacMillan em seu livro sobre a expedição.

Certo dia, durante a jornada por terra, um alferes de 25 anos chamado Fitzhugh Green, deu-lhes alguma esperança. Como MacMillan contou mais tarde, "Green saiu do iglu e voltou correndo, chamando pela porta:‘ Nós achamos! ’Seguindo Green, corremos para o topo do monte mais alto. Não poderia haver dúvida sobre isso. Céus! Que terra longa! Colinas, vales, picos cobertos de neve que se estendiam por pelo menos cento e vinte graus do horizonte."

Os perigos de cruzar o deserto gelado em um trenó

Mas as visões da mítica Terra de Crocker evaporaram rapidamente. "Recorri a Pee-a-wah-to", escreveu MacMillan sobre seu guia Inuit (também conhecido por alguns exploradores como Piugaattog). "Depois de examinar criticamente a suposta terra firme por alguns minutos, ele me surpreendeu ao responder que não se tratava de terra, mas uma 'poo-jok' (névoa)."

De fato, MacMillan registrou que "a paisagem mudou gradualmente sua aparência e variou em extensão com o movimento do Sol; finalmente, à noite, ele desapareceu por completo". Por mais cinco dias, os exploradores seguiram em frente, até que ficou claro que o que Green vira não passava de uma miragem, uma fata morgana polar. Batizada com o nome da feiticeira Morgana le Fay da lenda do Rei Arthur, essas poderosas ilusões são produzidas quando a luz se curva ao passar pelo ar gelado, criando imagens misteriosas que parecem montanhas, ilhas e às vezes até navios flutuantes. 

Mais de um explorador já se deixara levar por visões incríveis como aquela, quando na verdade o que estavam vendo era nada além de ilusão de ótica. Fata Morgana é uma ocorrência comum nas regiões polares, mas um explorador veterano como Robert Peary teria se deixado confundir por algo tão corriqueiro? 

"Enquanto bebíamos nosso chá quente e comíamos o alimento desidratado, pensamos muito", escreveu MacMillan. - "Será que Peary, com toda sua experiência, se enganou? Foi esta miragem que nos enganou oito anos antes? Se ele viu a Terra de Crocker, então deveria ter ido muito mais longe, pois até aquela altura, nada havíamos visto senão ilusões".
 
A missão de MacMillan foi obrigada a aceitar o impensável e retornar ao seu porto de partida. "Meus sonhos nos últimos quatro anos foram apenas sonhos; minhas esperanças terminaram em amarga decepção", escreveu MacMillan. Mas o desespero ao perceber que a Terra de Crocker não existia foi apenas o começo da provação.

MacMillan enviou Fitzhugh Green e o guia inuit Piugaattog para o oeste para explorar uma possível rota de volta ao acampamento base. Infelizmente, os dois ficaram presos no gelo e uma de suas equipes de cães morreu em um deslizamento. Tendo de se virar com os cães restantes, Green - com alarmante falta de remorso - explicou em seu diário o que aconteceu a seguir: "Eu suspeitei que o guia estivesse planejando fugir e me deixar sozinho com recursos reduzidos... resolvi dar um tiro para o ar, e quando ele se voltou atirei na sua direção... eu o matei [Piugaattog] com um disparo no ombro e outro na cabeça." Para piorar o crime, Green mutilou o cadáver e deu parte dele para os cães comerem, para conseguir poupar suprimentos.
MacMillian no gelo

Green relatou tudo isso a MacMillan, mas o líder da expedição preferiu esconder a verdade. Preferiu dizer aos demais inuites que Piugaattog havia perecido no deslizamento, pois temia que a verdade causasse uma revolta generalizada.

Os revezes continuariam a atormentar a expedição marcada por mais tragédias. Vários membros da missão acabaram ficando isolados por nevascas, presos em acampamentos improvisados no gelo. Alguns por mais de três anos, vítimas do clima ártico. As rotas ficaram bloqueadas por completo, cortando o caminho dos homens até o local em que os barcos haviam ancorado. Duas tentativas do Museu Americano de História Natural para resgatá-los fracassaram. Ninguém conseguia chegar até eles e para todos os efeitos, muitos consideravam que os homens estavam perdidos para sempre. Apenas em 1917 MacMillan e seu grupo foram finalmente resgatados pelo navio Neptune, capitaneado pelo experiente marinheiro do Ártico Robert Bartlett. 

Enquanto estavam presos no gelo, os homens fizeram bom uso de seu tempo; eles estudaram geleiras, astronomia, marés, a cultura Inuit e tudo o mais que atraiu sua curiosidade. Eles finalmente retornaram com mais de 5.000 fotografias, milhares de espécimes animais e algumas das primeiras filmagens do Ártico (muitos dos quais podem ser vistos hoje nos arquivos da American Geographical Society na University of Wisconsin).

Quanto à missão original: a descoberta da Terra de Crocker, nada foi encontrado.

Não está claro se MacMillan alguma vez confrontou Peary à respeito da Terra de Crocker e do que ele realmente viu em 1906. Quando a notícia do fracasso de MacMillan chegou aos Estados Unidos, Peary se defendeu numa coletiva de imprensa observando que poderia ser difícil localizar terras no Ártico: “Visto à distância ... um iceberg com terra e pedras pode ser ser tomado por uma rocha, um vale com paredes de penhasco cheio de neblina como um fiorde, e as densas nuvens baixas acima de um pedaço de mar aberto como terra." Ele sustentou, que "indicações físicas e teoria ainda apontavam para a existência de uma grande massa de terra em algum lugar naquela área. Mas que apenas o futuro provaria tal coisa


Robert Peary morreu em 1920 ainda defendendo a existência da Terra de Crocker.

Pesquisadores posteriores que tiveram acesso às anotações da Missão liderada por Peary em 1905-06 perceberam que ele não menciona o avistamento da Terra de Crocker. É no mínimo estranho que uma descoberta dessa magnitude, não tenha sido citada nos diários da expedição. Nenhum líder esconderia tal coisa. Da mesma forma, vários membros da expedição mantinham seus próprios diários e nenhum deles menciona o avistamento. 

Muitos acreditam que Peary simplesmente inventou a existência da Ilha, apenas para agradar seu principal patrocinador George Crocker. Mas se esse foi o caso, sua mentira permitiu que a expedição rumasse para um lugar absolutamente estéril e extremamente perigoso, sabendo que não havia nada a ser descoberto. Bons homens sofrearam e morreram por nada... 

Crocker por sua vez não chegou a viver, para testemunhar a controvérsia sobre a Ilha continental que levava seu nome. Ele morreu em dezembro de 1909, vítima de câncer no estômago, um ano depois de Peary ter partido no Roosevelt em busca do Pólo e alguns anos antes da fatídica Expedição MacMillan.

Quaisquer esperanças da descoberta da Terra de Crocker foram afundados de vez em 1938, quando Isaac Schlossbach realizou o primeiro voo de mapeamento aéreo sobre a região em que a ilha deveria estar. Ao olhar para baixo de sua cabine, ele não viu nada a não ser o gélido Mar Ártico certificando-se de uma das maiores mentiras da história da exploração.

2 comentários:

  1. Lovecraft devia conhecer essas histórias, nas Montanhas da Loucura tem uma pegada bem desse tipo.

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  2. o sujeito chamado green nunca sofreu nenhuma punição pelo crime que cometeu? alguem mais alem dele e do macmillian souberam da vdd enquanto ele ainda estava vivo?

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