terça-feira, 31 de agosto de 2021

Marcha de Espectros - O Exército Fantasma que defende a Ilha de Creta


Na costa do Mar Mediterrâneo encontra-se a bela ilha grega de Creta. Suas terras escapadas, com montanhas cercadas de mares cor de anil são um lugar com significativa herança histórica e cultural.

Entre os muitos locais importantes, está a Sfakia, uma região relativamente remota da ilha onde desponta uma antiga construção de pedra. Ao longo das convidativas praias de areia branca erguem-se ruínas que destoam da agradável paisagem, elas pertencem a um castelo que foi construído pelos venezianos no distante ano de 1371. Na época, piratas rondavam esses mares e faziam ataques a navios mercantes e vilarejos que pontuavam a costa. Eram tão temidos que rotas inteiras tiveram de ser desviadas para que os mercadores se vissem livres da ameaça. De nada adiantou, pois os ataques continuaram acontecendo, por fim, os ricos Doges de Veneza resolveram financiar a construção do castelo para vigiar seus interesses. 

Chamado de Castelo de St. Nikitas, ele é mais conhecido como Frankastello (ou Frangokastello), significando o Castelo dos Francos, pois os engenheiros responsáveis por erguê-lo teriam sido franceses. O castelo passou a fazer parte da história da ilha, sendo usado em alguns momentos como quartel para tropas, noutros como baluarte defensivo ao longo de vários conflitos envolvendo os gregos e seus inimigos. Mais do que seu significado histórico, é nesse lugar que todos os anos um fenômeno fantasmagórico supostamente se desenrola, algo que até os dias de hoje permanece um mistério inexplicável intimamente ligado à crônica bastante sangrenta de Creta.

Foi aqui que em abril de 1828, a fortaleza à beira-mar tornou-se palco de uma violenta batalha durante a Guerra da Independência da Grécia empreendida contra os turcos. Nesta ocasião, as forças turcas aos milhares mantiveram o castelo sob cerco, com centenas de Sfakiotas e Epiridotas, liderados pelo patriota grego e herói revolucionário Hatzimichalis Dalianis, refugiados nele. Os gregos estavam em grande desvantagem numérica, com menos de 600 soldados contra mais de 8.000 turcos fora de suas muralhas. Contavam, entretanto, com a proteção do Castelo que lhes oferecia uma defesa eficiente de todo perímetro. Os gregos lutaram bravamente por semanas, dispondo guardas que defendiam as muralhas noite e dia, contendo o avanço de seus inimigos. Contudo os turcos sabiam que era questão de tempo até os defensores se entregarem, pois os suprimentos e munição estavam no fim. Quando estes se viram exaustos, famintos e sedentos, o comandante turco emitiu um ultimato para que se entregassem, mas os gregos, através de seu líder, disseram que só sairiam do Castelo mortos.


Em 17 de maio de 1828, o exército turco realizou um ataque implacável contra o castelo. Usando uma barragem de canhões, os soldados conseguiram destruir os portões e invadiram em massa. Foram recebidos pelos gregos armados com sabres, facas, porretes e algumas poucas pistolas; a luta desigual como poderia parecer se tornou uma batalha feroz e desesperada. Os gregos sabiam como os turcos podiam ser cruéis com seus prisioneiros e Dalianis ordenou que os homens lutassem até o último fôlego.     

De acordo com a história, todos os defensores gregos morreram, incluindo o próprio Dalianis. Apesar da derrota, causaram pesadas baixas entre os turcos, algo na proporção de quatro para um segundo historiadores. Furioso o comandante ordenou que o massacre servisse de lição para os rebeldes e que os cadáveres deles fossem despejados sem cerimônia na praia de Orthi Ammos para apodrecer sob o sol do Mediterrâneo. Assim foi feito e os corpos jazeram ali até serem lentamente cobertos pela areia soprada pelo vento. O solo encharcado de sangue lentamente cobriu os guerreiros e não foi permitido remover nenhum deles para um enterro digno. 

Foi um evento marcante e especialmente sombrio na Guerra da Independência da Grécia, mas, de acordo com a lenda, esses soldados talvez não tenham encontrado o seu descanso.


De acordo com os habitantes locais, todo mês de maio, na exata véspera da batalha catastrófica, algo muito estranho acontece nos arredores de Frankastello. Diz-se que em certas manhãs, antes do sol se erguer no horizonte, quando o mar está calmo e a atmosfera úmida, um exército de sombras espectrais começa a se formar na escuridão da praia. E estes então iniciam uma marcha a partir do mosteiro de Agios Charalambos, diretamente até as ruínas do antigo castelo. Moradores afirmam que esses fantasmas assumem a forma exata de homens uniformizados e até mesmo de homens à cavalo, muitos deles segurando armas e com expressões inescrutáveis ​​no rosto. 

Por vezes, esse exército de fantasmas está completamente silencioso, enquanto outras pessoas juram ser capazes de ouvir vozes, sons de cavalos e de marcha. Acredita-se que estas são as almas do exército inquieto que pereceu naquele castelo durante o horrível banho de sangue. Dizem que as sombras podem ser vistas de até 1000 metros de distância, e aparentemente marcham por cerca de 10 minutos antes de desaparecerem por completo no próprio ar. Então, elas ficam à espera do ano seguinte, quando farão novamente sua vigília. 

Os gregos chamam essas aparições fantasmagóricas de Drosoulitas, que significa "sombras de orvalho" e, longe de ser apenas uma lenda assustadora, o fenômeno é incrivelmente bem documentado. Em 1890, uma tropa turca que passava pela região viu os fantasmas e fugiu em disparada temendo que um exército estivesse prestes a atacá-los. Na Grande Guerra, soldados búlgaros também comentaram ter visto uma grande concentração de homens armados na praia, nas primeiras horas da manhã. Os homens estavam aquartelados nas ruínas do Castelo e temendo um ataque fugiram sem pensar duas vezes. 

O relato mais impressionante, no entanto, é de um destacamento de soldados alemães que ocuparam o Castelo durante a Segunda Guerra Mundial. Eles testemunharam o surgimento repentino de um exército diante dos portões de Frankastello nas primeiras horas antes do amanhecer. Temendo um ataque iminente, as sentinelas deram alerta e abriram fogo contra o bando sem obter qualquer resultado. O Oficial responsável chegou a redigir um relatório completo à respeito do episódio justificando os disparos e anexando ao documento o testemunho de várias pessoas. Ao longo dos anos, várias testemunhas proeminentes afirmaram ter visto as aparições do exército grego. 


Então qual a explicação para esse fenômeno? O que seriam, estas entidades misteriosas? Eles são realmente os fantasmas dos soldados mortos há tanto tempo?

A principal teoria científica é que os fantasmas nada mais são do que algum tipo de fenômeno atmosférico, possivelmente uma ilusão conhecida universalmente como Fata Morgana. Esse fenômeno óptico ocorre quando objetos distantes são projetados e distorcidos em grandes distâncias devido aos raios de luz que se curvam por diferentes temperaturas em uma inversão térmica acentuada, neste caso causada pela umidade do ar e pelo calor da areia. 

Durante as ocorrências de Fata Morgana, objetos a muitos quilômetros de distância podem ser projetados sobre outro ponto criando a ilusão de que espectros de aparência muito realistas estão presentes. Neste caso, a ilusão é complementada pelas lendas teorizando à respeito dos espíritos inquietos dos defensores de Frankastello. Entretanto, como explicar que a visão seja sempre a mesma e inclua detalhes sobre os uniformes, equipamento e até mesmo a visão do heroico comandante Dalianis? 

O que torna mais difícil a busca por respostas é o fato de as Drosoulites nunca terem sido devidamente fotografadas ou filmadas, o que faz a maioria das pessoas tratar o fenômeno com ceticismo. As lendas insistem que câmeras fotográficas e de filmagem param de funcionar, ou que o filme se mostra incapaz de registrar imagens do exército espectral. Várias testemunhas que alegam ter não apenas visto a manifestação, como filmado ou gravado os sons produzidos por ela, dizem que o material sofre uma avaria inexplicável.


Diante de tudo isso, é difícil chegar a um consenso sobre o que acontece naquela faixa de areia ao menos uma vez por ano.

Até hoje, o exército fantasma de Frankastello atrai multidões de visitantes na esperança de ter um vislumbre da manifestação. Os habitantes locais compartilham com entusiasmo suas experiências e insistem ser tudo verdade. O fenômeno ainda não foi adequadamente explicado e continua a dividir opiniões. Seja qual for a explicação, os guerreiros fantasmagóricos de Creta aparentemente ainda não encontraram seu descanso, e se você visitar o local no mês de maio, talvez possa vê-los marchando uma vez mais.

sábado, 28 de agosto de 2021

O Conjurador da Rainha - As façanhas de John Dee, o ilustre Mago de Elizabeth I


John Dee entrou para a História como o Mago particular da Rainha Elizabeth I, Conselheiro para assuntos sobrenaturais, vidente e astrólogo da corte. Também cabia a ele o título de Médico Real Extraordinário, responsável pela saúde de sua soberana. Mas há mais no filósofo medieval do século XVI do que a reputação de olhar para uma bola de cristal e mergulhar nos mundos místicos dos anjos sussurrantes. 

Dee foi um gênio matemático e alguém incrivelmente preciso no que era então conhecido como Ciência Natural a fusão da Física e da Alquimia. Como seus quase contemporâneos Nostradamus e Cornelius Agrippa, também conhecidos por seus interesses no mundo além dos mortais, esse homem inquisitivo trilhou um caminho perigoso em uma época em que prever o futuro, conversar com os mortos e saber demais, poderia significar ser acusado de heresia e morrer numa fogueira.

O ofício de Astrólogo Real era especialmente perigoso para aqueles cujas previsões não eram precisas ou que traziam más notícias para os vaidosos monarcas. Diferente dos meros mortais, os Reis tinham a prerrogativa de se aconselhar com videntes e tentar descobrir de antemão o que o futuro lhes reservava. Esses videntes por vezes eram muito bem recompensados e até mesmo a Igreja Católica fazia vista grossa para tal profissional.

Antes de Dee, o Astrólogo que serviu ao Trono da Inglaterra foi um homem chamado William Parron. Mas ele não teve muito do que se orgulhar no cargo. Quando serviu a Henrique VII e, mais tarde, ao filho deste, Henrique VIII, Parron ficou conhecido como um dos astrólogos menos precisos do período. Empregado por Henrique VII, ele não conseguiu acertar uma única previsão importante e ainda profetizou que a esposa do Rei, a Rainha Elizabeth de York, viveria até os 80 anos de idade. Ela morreu aos 37 anos. Parron serviu mais tarde a Henrique VIII como seu astrólogo pessoal, mas parecia igualmente desfavorecido pelas estrelas que deveriam revelar os mistérios por vir. Embora sua previsão para o "casamento feliz" de Henrique possa ser explicada pelo fato de ele ter ficado casado com Catarina de Aragão por vinte e quatro anos, o famoso monarca falhou em gerar "muitos filhos" como Parron previra, ou ser um "servo dedicado da igreja católica". Pelo contrário, Henrique VIII casou-se seis vezes, gerou apenas um filho legítimo e, de forma controversa, separou a Inglaterra do Papa e da Igreja para sempre. Muito provavelmente Parron esperava evitar problemas ao fazer profecias favoráveis, particularmente porque Henrique VI executou dois infelizes astrólogos por traição quando previram que ele morreria de forma violenta. Mas de nada adiantou, já que o jovem rei, cujo reinado turbulento descambou na sangrenta "Guerra das Rosas", morreu na Torre de Londres, provavelmente assassinado. Parron escapou de tal destino e preferiu deixar a corte em desgraça após uma carreira fracassada como o "vidente que nada via".


Contudo, a forte influência das Profecias e da Astrologia sobre os Reis ingleses não diminuiu durante o período Tudor e foi uma obsessão constante deles. Apesar da péssima reputação de Parron, o Rei Henrique VIII estava constantemente em busca de qualquer um que oferecesse visões e profecias. Ele costumava manter observadores na corte que o informavam sempre que surgia um novo astrólogo de renome. Suas consultas eram frequentes e ele não se importava com os rumores de que muitas de suas decisões eram tomadas após consultar conhecidos farsantes. Quando Henrique VIII foi sucedido por Elizabeth I de forma inesperada, sua filha manteve a tradição de contar com conselheiros mágicos.

Entra em cena então John Dee que foi extremamente recomendado, não apenas por ser um Astrólogo capacitado, mas por deter habilidades únicas que o projetavam como uma das maiores mentes da Inglaterra. Elizabeth I obviamente conhecia a fama de Dee e aceitou de bom grado o aconselhamento dele. 

Mas quem era o Dr. John Dee e de onde vinha essa sua fama?

Ainda  jovem e recém formado no Trinity College, Dee conquistou a reputação de possuir um brilhantismo acadêmico invejável em diversas áreas de conhecimento. Mais que isso, ele era especialmente bom em causar uma impressão duradoura nas pessoas. Dono de uma segurança e determinação impressionantes para alguém de tão pouca idade, ele se orgulhava de falar o que se passava em sua mente, não em bajular as pessoas. Ele também era adepto de impressionar seu público recorrendo por vezes a truques teatrais e jogo de cena. Combinava compostos químicos e fórmulas para causar explosões, gerar fumaça, criar odores e sons estranhos que aos olhos de muitos parecia magia.


Dee caiu nas graças de vários aristocratas que patrocinaram viagens através da Europa para estudar em universidades renomadas e explorar bibliotecas famosas. Suas jornadas o colocaram em contato com alguns dos nomes mais famosos de sua época, incluindo astrônomos e cartógrafos judeus e árabes. Absorvendo todo conhecimento à sua volta, Dee se deixou fascinar pelo ocultismo e pelas Ciências Proibidas. Ele investigou rituais no Egito, se deixou encantar pelas religiões do Oriente e pelo misticismo de tradições ancestrais e Sociedades Herméticas. Um de seus interesses principais envolvia investigar as propriedades mágicas de objetos encantados em especial de cristais.

Com todo esse arcabouço ele decidiu retornar à Inglaterra e se fixar em Londres onde sua chegada causou imediata sensação. Dee viu sua estrela subir quando deixou uma impressão favorável em inúmeros membros da Corte que vinham até ele se consultar. Nessa época, as palestras de Dee o aproximavam de outro gênio do período, o filósofo alemão Cornelius Agrippa que era cortejado pela realeza da Europa central. Ele recebia o salário de vários mecenas que o mantinham como conselheiro particular, ao menos até sua fama chegar aos ouvidos da extremamente católica Rainha Mary.

Em 1555, John Dee foi preso e acusado de usar feitiçaria depois de traçar mapas astrais da Rainha Mary e de sua irmã mais nova, a Princesa Elizabeth. Quando as acusações de traição foram canceladas, com acusações infundadas de conspirações contra sua vida, Dee foi interrogado na Câmara das Estrelas, um tribunal inglês situado no Palácio de Westminster. Embora eventualmente exonerado pelos juízes, ele mais tarde foi examinado pelo infame caçador de hereges, o Bispo Bonner. Dee sabiamente fez do religioso e fanático Bonner - conhecido por sua crueldade - um amigo próximo, o que possivelmente o salvou de mais interrogatórios.

Apesar de ser um período perigoso, quando fanatismo religioso estava em alta e pessoas inocentes eram mortas por suas crenças, Dee conseguiu sobreviver ao reinado de perseguição de Mary e sua queima entusiástica de protestantes. Seus contatos o colocaram em uma boa posição quando a Rainha morreu em 1558 e a coroa foi passada para sua irmã protestante, Elizabeth I. Logo depois, Dee encontrou o favor de aristocratas, incluindo William Cecil, principal conselheiro da nova rainha.


Em 1564, Dee foi "apontado Conselheiro Real em segredos místicos", basicamente o Astrólogo da Corte. Agradecendo o apoio, Dee aplicou-se aos estudos com tal diligência que só se permitia quatro horas de sono e duas para suas refeições e recreação. O status de Dee como o conjurador da corte da Rainha Elizabeth havia começado. A rainha virgem frequentemente dependia de Dee para assuntos de ciência, medicina e exploração. Ele era seus olhos, seus ouvidos e seu conselheiro no mundo dos feitiços, do ocultismo e do sobrenatural. Dee chegou até a apresentar relatórios sobre questões que afetavam diretamente a Inglaterra, incluindo a sugestão do termo "Império Britânico". Acredita-se que a rainha Elizabeth e Dee se escreveram às vezes em código, possivelmente sobre a ameaça da Armada Espanhola ou questões relacionadas ao Novo Mundo que Dee acreditava serem terras por direito pertencentes à Inglaterra. Ele começou a assinar suas cartas usando um código secreto que apenas a Rainha podia ler. Qual era esse código? 007.

Embora alguns dos experimentos de Dee que foram meticulosamente executados e registrados pareçam estar mais de acordo com a física básica do que estudo do sobrenatural, a reputação do alquimista foi muito ridicularizada. Era uma época perigosa para mexer com forças sobrenaturais e no auge de sua influência na Corte é que o desastre aconteceu. A busca por conhecimento levou o Conselheiro a um novo campo de estudo, quando ele decidiu falar com os Anjos.

Na época, o reconhecimento da existência de "anjos" não era algo controverso, na verdade, tolo era quem não acreditava na existência de tais seres celestiais. A grande questão era se mortais deveriam ou poderiam se comunicar com eles. O que trouxe suspeitas a Dee foi que ele estava tentando estabelecer uma comunicação fora dos canais ortodoxos aceitos. Este era um território extremamente arriscado, particularmente por que ele pretendia estabelecer esse contato através de um médium chamado Edward Kelly, que alegava poder obter informações do mundo invisível.

Entrar em contato com anjos para prever o futuro e desvendar segredos arcanos era visto como algo além dos limites do aceitável. Tal coisa trouxe Dee perigosamente perto de outro ramo do ocultismo, uma disciplina amplamente condenada chamada Necromancia. Os necromantes se valiam de rituais que lhes permitiam falar com os mortos, comandar espíritos e estabelecer um canal de comunicação com aqueles habitando o além vida. Desse modo eles tinham acesso a segredos que os vivos não deveriam obter. Não por acaso, os teólogos cristãos censuravam aqueles que lidavam com necromancia, tida como uma das mais perigosas Ciências Proibidas - atrás apenas do Satanismo


A prática mágica de Dee foi sustentada por teorias espirituais e filosóficas extraídas de escritores antigos e renascentistas. Essas atividades não significavam necessariamente que ele era um praticante da feitiçaria, mas que sua sede de conhecimento o levava a explorar vários caminhos.  Foi justamente esse tipo de exploração que o levaria a uma busca que acabaria por arruiná-lo.

O grande problema é que Dee havia se associado com pessoas inescrupulosas. Edward Kelly era um oportunista acusado de falsificar dinheiro e que se apegou a Dee durante anos, incentivando as tentativas de estabelecer contato com os anjos. O processo um tanto teatral envolvia colocar um cristal sobre uma tábua de cera, enquanto Kelly entrava em transe. Ele esperava então por vários anjos que se manifestavam nos raios de luz filtrados pelo cristal. Quando os anjos desejados se manifestavam, Kelly interpretava o que eles diziam e Dee fazia anotações. 

Essas notas, obtidas em várias sessões, sobrevivem num tratado intitulado "Livro de Mistérios" que revelava como os anjos, constituídos por vinte e quatro ordens governavam o universo. Isso marcou o surgimento de um complexo sistema de magia cerimonial baseado no comando dos espíritos, a "Magia Enoquiana". Através de Kelly, atuando como médium, Dee afirmou ter aprendido o Idioma Enoquiano, a língua oculta usada pelos Anjos.

Foi a partir desse ponto que os estudos tomaram um caminho estranho e positivamente bizarro. 

O vidente, Edward Kelly, relatou ter estabelecido uma conversa intensa com um anjo, que o levou a fazer uma proposta ao colega. Kelly insistiu que os anjos demandavam que eles trocassem de esposas. Este pacto de troca de esposa, ditado por uma entidade celestial, era para formalizar o "acordo" por ter recebido informações divinas. Em uma espécie swing medieval, Dee acabou concordando com a proposta, para horror de sua esposa Jane Fromond que foi coagida a desempenhar esse papel. Mais tarde Dee também desfrutou da cama com a esposa de Kelly, cumprindo assim o "pacto". Não se sabe se um menino chamado Theodore, nascido de Jane nove meses após o incidente, era filho de Kelly ou Dee. 


Talvez Dee devesse ter prestado atenção a seu predecessor, o famoso Cornelius Agrippa, que dois anos antes de sua própria morte, havia sido denunciado como feiticeiro e processado como tal. A punição por tal crime podia ser prisão ou morte. Dee acreditava estar acima dessas questões e que suas pesquisas justificavam o perigo. A Magia Enoquiana, na sua visão, seria uma grande contribuição sua para o mundo oculto, todo risco valia a pena. Ademais, ele acreditava que, por desempenhar um papel importante na Corte, seria protegido por algum aliado, ou pela própria Rainha.

É possível que assim fosse, mas a proteção duraria apenas enquanto Elizabeth continuasse usando a coroa. Quando a Rainha faleceu, ela foi substituída por James VI da Escócia, filho de Mary desafeto de longa data do mago. O novo Rei da Dinastia Stuart era um entusiasmado caçador de bruxas e defensor de uma teologia sinistra que poderia causar muitos danos aos envolvidos no tema. Dee estava preocupado de ser vítima do novo rei por qualquer coisa relacionada com Necromancia. O rei Jaime participou de julgamentos e implementou a Lei de Bruxaria de 1563, que resultaria em milhares de execuções brutais nas décadas seguintes.

Dee precisava tomar cuidado, realizar seus estudos em segredo e ainda afastar os informantes que rondavam a corte de James VI em busca de denúncias. Além disso, ele havia conquistado muitos inimigos que não toleravam a influência que ele havia granjeado junto do trono.  

Apesar de sua reputação como alquimista famoso e dedicado Servo da Coroa, Dee acabou excluído da corte do Rei Jaime em meio a uma série de acusações e escândalos. Impotente e colocado de lado, teve de sobreviver com qualquer trabalho que pudesse conseguir e muitas vezes alienando seus bens. Seus últimos anos também foram marcados por doenças causadas pelo contato com substâncias e produtos químicos utilizados em seus experimentos. Mais tragicamente, sua esposa Jane e a maioria de seus filhos morreram após um surto de peste bubônica, em Manchester. Apenas dois de seus oito filhos sobreviveram. Afundando na miséria e ainda desesperado para entrar em contato com os anjos e receber mensagens, ele usou seus últimos recursos para publicar seu livro. 


John Dee morreu em Mortlake, nos arredores de Londres no ano de 1608. Para todos que o conheceram, Dee seria lembrado pela sua busca incessante dos segredos do universo e sua associação com "anjos". Ele também colocaria seu nome entre os gênios matemáticos, sendo responsável pela criação de símbolos matemáticos usados até hoje. Também foi um astrônomo e químico de fama mundial.  Dee está imortalizado na literatura, considerado a inspiração para o personagem Próspero de Shakespeare em A Tempestade e o Doutor Fausto de Christopher Marlowe.

Ainda persiste a visão de que magos e astrólogos medievais como Dee, eram simplesmente indivíduos excêntricos, criando poções de natureza duvidosa e praticando a clarividência por meio de adivinhações fraudulentas. Na realidade, homens como John Dee, sempre questionaram o mecanismo do Universo e foram precursores do que viríamos a conhecer como Conhecimento Científico. 

Mais do que isso, pessoas como ele, possibilitaram o surgimento de um mundo racional.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

DELTA GREEN. Agentes secretos contra os Mythos de Cthulhu


No primeiro vídeo da parceria entre o Mundo Tentacular e o canal Explorando Segredos e Mistérios temos uma apresentação do DELTA GREEN RPG.

Nele vocês conhecem detalhes sobre esse incrível RPG de Horror, conspiração e paranoia.

Misturando o Horror Cósmico do Mythos de Cthulhu com temas contemporâneos como 
conspirações governamentais, terrorismo, espionagem, disputas entre potências estrangeiras e medos do passado refletidos em terrores modernos.

O Horror do Delta Green foi alvo de uma resenha completa, na qual esse vídeo se inspira.

Para conhecer mais a respeito, vale a pena dar uma olhada no artigo original que está nos links abaixo:

PARTE 1: http://mundotentacular.blogspot.com/2018/11/rpg-do-mes-delta-green-conspiracoes.html

PARTE 2: http://mundotentacular.blogspot.com/2018/11/mundo-tentacular-delta-green.html

E aqui o Vídeo:


terça-feira, 24 de agosto de 2021

Melodia do Deserto - O estranho Fenômeno das Areias que sussurram


O mundo natural tem muitos mistérios e anomalias estranhas que nunca foram inteiramente explicadas.
Um destes mistérios vem dos desertos desolados além da civilização humana, onde o tempo parece ter congelado na paisagem agreste. Ao longo da história, os exploradores que cruzaram os vastos desertos do mundo voltaram de suas viagens trazendo contos de algo muito estranho acontecendo entre as dunas. Exploradores costumavam voltar de suas expedições relatando como a própria areia emanava sons misteriosos, que iam desde um leve rangido e som de flauta até rugidos sinistros, estrondos ou uma cacofonia bizarra que podiam ser ouvidos por milhas de distância. Tal fenômeno causava espanto e terror, mesmo nos mais calejados exploradores. Seus guias atribuíam esses sons a uma miríade de seres mágicos e misteriosos.

Um dos primeiros relatos sobre isso vem do lendário explorador Marco Polo no século XII, que descreveu os ruídos anômalos do deserto como "os sons de todos os tipos de instrumentos musicais, e também de tambores e o choque de armas", e os atribuiu ao trabalho de espíritos malignos que habitavam aquele lugar inóspito. Cronistas romanos também mencionaram o ruído peculiar que ouviram no deserto, quando as Legiões do Império cruzavam os territórios no Oriente Médio. Da mesma maneira, durante as Cruzadas, vários foram os relatos de Cavaleiros e soldados que mencionavam um estranho troar sinistro quando cruzavam as areias desses reinos distantes. Mas tal coisa está longe de ser um fenômeno relegado ao passado. 

Que tal examinarmos as causas disso e tentar compreender como acontece esse estranho fenômeno das areias?

No século XIX, o fenômeno ainda assustava as pessoas, tendo sido até mencionado pelo próprio Charles Darwin. Em sua passagem pelo Norte da África, Darwin disse que gostaria de preservar aquele ruído para mostrar às pessoas, pois temia que ninguém acreditaria no que ele e seus companheiros de jornada ouviram: "Sons impossíveis de serem copiados por bocas ou gargantas humanas". O lendário soldado e diplomata britânico T.E Lawrence (mais conhecido como Lawrence da Arábia) colecionava relatos a respeito dos sons que as pessoas cruzando o deserto afirmavam ouvir. "O som de vespas, de abelhas furiosas, de cigarras cantando, mas também de estrondos, de explosões e de deslizamentos. Tudo isso em um ambiente totalmente estéril e demovido de movimento", escreveu ele.  


Um relato notável dessas "areias cantantes" foi feito pelo diplomata e explorador inglês Bertram Sidney Thomas, que entre os anos de 1930 e 1931 se tornou o primeiro ocidental documentado os sons ao cruzar o Rub 'al Khali, ou "Grande Vazio", uma faixa vasta e desolada do maior deserto da Arábia Saudita. Durante esta expedição, ele notou o "zumbido alto de uma nota musical" vindo de um penhasco de areia íngreme, e em outra ocasião gravou notas musicais vindo de baixo das patas de seu camelo. Thomas também captou um som profundo, musical e estrondoso que o acordou em sua tenda. Quando perguntou ao guia nativo o que causava os sons, o guia apenas disse que eram provenientes de seres do submundo e explicou que era o som dos espíritos conversando entre si. Outro explorador chamado John Philby também estava no Grande Vazio na mesma época que Thomas, e descreveu o que ouviu nos seguintes termos:

"De repente, o grande anfiteatro natural começou a estourar e zumbir com um som não muito diferente do de uma sirene ou talvez do motor de um avião - um som bastante musical, agradável e rítmico de profundidade surpreendente. As condições eram ideais para o estudo do concerto na areia, e o primeiro item foi prolongado o suficiente - durou talvez cerca de quatro minutos - para que eu me recuperasse da surpresa e percebesse cada detalhe. Os homens que trabalhavam no poço iniciaram um concerto rival e menos musical de obscenidade dirigido aos Jinns [espíritos do deserto] que no seu entender eram os responsáveis ​​pela ocorrência."

Esses sons estranhos, comumente chamados de "Areias Sussurrantes" ou "Canção das Dunas", foram relatados por séculos em lugares tão distantes como América do Norte e do Sul, África, Ásia, Ilhas Britânicas, Península Arábica e Ilhas Havaianas, e as culturas dessas regiões tinham suas próprias lendas e mitos que tentavam explicá-los. Em geral, essas explicações recorriam aos mitos e ao reino do sobrenatural, já que parecia não haver outra maneira de fazê-lo.


No deserto central australiano, os aborígenes reputavam o som aos fantasmas de antepassados que haviam se perdido no outback. Estes espíritos se tornavam desesperados e em meio ao seu sofrimento sussurravam ao vento para que alguém os encontrasse e conduzisse de volta ao mundo dos vivos. Encontrar tais espíritos poderia ser extremamente perigoso já que seu desespero os tornava agressivos.  Para lidar com essa ameaça, os xamãs usavam instrumentos musicais rústicos de sopro e percussão que poderiam abafar tais ruídos. No Deserto de Sonora, tribos de nativos-americanos creditavam os ruídos a raças não-humanas que habitavam complexos subterrâneos e túneis ocultos. O som era criado com o intuito de atrair indivíduos desavisados que eram então capturados e devorados nas profundezas da terra. Nos Desertos do sul da Espanha, as crenças mencionavam entidades demoníacas que habitavam poços que ligavam o inferno à superfície. Quando o ruído se fazia ouvir, o som, segundo tradições era proveniente das barrigas de tais monstros, reclamando de fome.  

Mas foram os árabes quem mais contribuíram para tecer lendas a respeito do estranho fenômeno. Para os povos nômades, o ruído era tradicionalmente atribuído aos espíritos do deserto chamados Jinn - os gênios do ar que são normalmente invisíveis, mas cuja presença pode ser detectada nos torvelinhos de areia e nas enigmáticas miragens. Seriam estes espíritos, os responsáveis pelos sons - criados pela conversa entre eles, impossível de ser interpretada pelos sentidos humanos. Segundo as lendas, sábios e místicos por vezes se dedicavam a viver no deserto para tentar interpretar esses sons e decifrar a língua dos Jinn. Acreditavam que ao ouvir com atenção, poderiam captar o nome secreto de um desses seres, e através de rituais de magia, escravizá-los, obtendo assim seu favor. Outros tentavam ouvir na conversa entre os espíritos, magias e segredos que eram proibidos aos mortais.

Não por acaso, o deserto era tido como o lugar ideal para profetas jejuarem e meditar. A própria Bíblia diz que Jesus Cristo partiu para o deserto com o intuito de meditar e que nele enfrentou a tentação de Satã. João Batista também vivia no Deserto em comunhão com Deus e tentado pelos demônios. É possível que os sons misteriosos do deserto sejam a origem de várias passagens religiosas mencionando palavras sussurradas por entidades sobrenaturais.   

Entretanto, os sons misteriosos das areias do Oriente Médio também eram atribuídos a todo tipo de explicação metafísica. As lendas citavam cidades subterrâneas perdidas, tragadas pelas areias do deserto e desaparecidas quando a humanidade ainda era jovem. Havia a menção a fantasmas, deuses, demônios, animais míticos e é claro, o Diabo em pessoa. O ambiente do deserto surgia como meio ideal para a proliferação de mistérios insondáveis. As numerosas superstições variavam de tribo para tribo, com nômades interpretando sua existência como algo natural, enquanto outros a consideravam um mau agouro. 


Foi o explorador John Philby o primeiro a sugerir uma justificativa científica para o fenômeno, notando que os sons que ouvira coincidiam com uma chuva de areia caindo de onde um de seus guias estava sentado. Ele então percebeu que a areia produzia uma variedade de ruídos diferentes: latidos, gemidos, estrondos musicais ou os sons de um trombone ou grande órgão quando a areia era perturbada por uma ação externa. Ele sugeriu que havia alguma qualidade para a própria areia que lhe permitia criar esses sons quando submetida ao atrito. Quanto ao mecanismo exato, ele não sabia e, de fato, os cientistas ainda hoje não têm certeza, do que o causa.

As areias cantantes vêm em muitas formas. Nas dunas móveis, eles costumam soar como um estrondo, gemido, zumbido ou explosão que pode durar até 15 minutos e chegar a 105 decibéis, frequentemente ouvido a grandes distâncias. Esses sons estão entre os mais temidos, já que parecem o ruído de alguém sofrendo ou agonizando, ou ainda de uma grave ameaça. Nas planícies pedregosas e poeirentas os sons podem vir em uma ampla variedade de formas, incluindo estrondos, estalos, tambores, trovões, sirenes de nevoeiro ou o zumbido de aeronaves a hélice voando baixo. Os ruídos acontecem quase que exclusivamente em pequenas dunas em forma de meia-lua chamadas barchans e são acompanhados pelo vento passando ao longo da crista da areia. 

Esse fenômeno também pode ser visto em algumas praias ao redor do mundo. Meramente caminhar sobre a areia ou perturbá-la de alguma forma produz um tipo de canto, chiado, assovio ou silvo. Tanto nas dunas quanto nas praias, a variedade de sons pode ser muito diferente, assim como a faixa de frequências em que são emitidos, e pode haver diferenças notáveis ​​de local para local.

A teoria mais frequente é que os sons são resultantes do atrito entre grânulos de areia que colidem uns com os outros em grande número. O tamanho, a textura e a uniformidade dos grãos determinam o tipo de som e o volume produzido. Cada tipo de areia tem um timbre e uma nota única. Outra teoria é que é o resultado de ondas sonoras saltando para frente e para trás entre a superfície da duna e a superfície desta. O formato da duna funciona como uma caixa acústica, fazendo com que o som quase imperceptível seja amplificado enormemente, reverberando. Tais estrondos podem ser realmente impressionantes, causando comoção e estranheza em quem os ouve pela primeira vez. Há relatos de estrondos tão altos que indivíduos atingidos diretamente por eles ficaram ensurdecidos por algum tempo ou tiveram dano permanente no tímpano. 


Finalmente, existe a teoria de que os ruídos são causados pela compressão do ar entre os grãos de areia, ou por um fenômeno conhecido como "cisalhamento de areia", que é o movimento de uma camada de areia contra a outra, mas novamente, é impossível dizer com certeza. Apesar de todos os nossos avanços e conhecimento, ninguém sabe ao certo o que provoca os sons ou por que deveriam variar tanto no tom e na intensidade. Tampouco são conhecidas as condições exatas necessárias para que o fenômeno ocorra para começo de conversa. 

Em última análise, embora esse fenômeno faça parte do folclore, mito e lendas de várias culturas há milhares de anos, ainda não temos ideia de suas causas, ao menos não mais do que os viajantes que trilhavam os desertos do mundo. Assim como eles, que intrigados erguiam suas cabeças e tentavam filtrar a natureza do som que escutavam, nós também permanecemos sem saber do que se trata. É claro, em nossos tempos cínicos, podemos supor que existe uma explicação científica, mas é inegável que ouvir esses ruídos nos faz acreditar em explicações menos racionais.

No vazio do deserto, uma das últimas coisas que você quer ouvir é um som misterioso emanando de lugar nenhum.

sábado, 21 de agosto de 2021

O Mago Mor da Escócia - A Fantástica Vida de Michael Scot


A história é povoada por indivíduos estranhos e enigmáticos que conseguiram se tornar maiores do que a própria vida que levaram. Ao redor deles construíram-se lendas que perduram há séculos. Muitas vezes somos incapazes de desvendar as facetas de tais personagens e conhecer à fundo suas realizações. Uma dessas pessoas é um místico, supostamente um poderoso mago que viveu na Escócia e em torno do qual muitas histórias foram contadas. Ao falar sobre a lendária figura de Michael Scot, é bastante difícil separar o Fato e Fantasia. 

O que se sabe é que ele provavelmente nasceu no distante ano de 1175 em algum canto da Escócia, possivelmente em um lugar chamado Fife, também chamado de Borders. É sabido que ele foi um erudito e intelectual, estudante de teologia, filosofia, matemática e medicina nas universidades de Oxford, Paris e Toledo. Além disso, falava várias línguas diferentes, incluindo latim, grego, árabe e hebraico. Na verdade, ele se tornou conhecido primeiro como um tradutor qualificado de textos, a tal ponto que foi recrutado por Frederico II, Imperador do Sacro Império Romano com o propósito de traduzir vários manuscritos, incluindo os textos de Aristóteles sobre ciências naturais, do árabe para o latim. 

Este foi um importante passo para o conhecimento ocidental, porque muitas das obras de Aristóteles haviam sido perdidas para o mundo de língua latina, preservado apenas por meio de versões árabes dos textos. Além de todos esses estudos e habilidades, Scott também tinha verdadeiro fascínio por tópicos ocultos, incluindo astrologia, alquimia, adivinhação, feitiçaria e fisionomia, que é a prática de avaliar o caráter ou personalidade de uma pessoa pela sua aparência externa, em particular o rosto. Era bem provável que tudo isso, somado ao seu conhecimento das práticas do Oriente Médio, consideradas muito exóticas na época, bem como seu hábito excêntrico de vestir-se com roupas coloridas vindas da Arábia, tenham contribuído para estabelecer a sua reputação como Mago.


Scot foi um vidente bastante famoso e tais eram suas habilidades que Frederico II acabou fazendo dele membro estimado da sua corte no posto de Astrólogo oficial. Durante seu tempo na corte, Scot fez muitas previsões surpreendentes que se tornaram realidade, incluindo o resultado de batalhas e várias calamidades e catástrofes. Frederico II o considerava essencial e o consultava antes de se lançar em alguma campanha militar. Acredita-se que o Imperador tenha desistido de ataques ou reconsiderado decisões militares com base nos conselhos de seu vidente. 

Os poderes astrológicos de Scot tornaram-se tão famosos que ele começou a ser creditado com uma série de outras habilidades mágicas. Por exemplo, dizia-se que ele era capaz de induzir visões nas pessoas, bem como ler mentes, obrigar os outros a fazer o que ele queria e se valer de feitiços para conseguir vantagens em jogos de azar. Por sinal, ele ganhara uma fortuna em jogos de cartas e apostas contra nobres da corte. Suas habilidades com a alquimia também eram bem conhecidas, pois foi dito que Scot podia transformar chumbo em ouro ou fiar corda com simples areia. Suas transmutações, no entanto, não pareciam durar muito tempo e por conta disso, aqueles que negociavam com ele evitavam receber pagamento em ouro. 

Um dos seus poderes mais temidos era a suposta habilidade de invocar demônios e espíritos e obrigá-los a cumprir suas ordens. Em mais de uma ocasião ele ameaçou enviar demônios no encalço de rivais e inimigos, fazendo com que disputas fossem encerradas graças ao seu poder de convencimento e intimidação. Há uma famosa história de um bandido de estrada que desistiu de assaltá-lo depois que percebeu que a vítima era o famoso mago que invocava demônios das profundezas.


Scot não fazia qualquer esforço para negar os rumores a respeito de suas supostas habilidades sobrenaturais. Pelo contrário, ele parecia alardear suas capacidades ao ponto da autopromoção. Graças a isso, os boatos a respeito dele se multiplicavam e foram se tornando cada vez mais fantásticos. Alguns mencionavam que Scot havia encontrado um cajado mágico que podia separar rios, transformar pessoas em pedra e, em uma ocasião, até mesmo dividir as Colinas de Eildon em três picos. Ele teria usado esse cajado prodigioso para derrotar uma cabala de bruxas que aterrorizava a região da Cumbria, no noroeste da Inglaterra. Batendo com o artefato no chão, ele transformou as feiticeiras em pedra acabando com a ameaça que elas representavam.

Outra lenda a seu respeito menciona um corcel mágico que era capaz de levá-lo da Escócia até a França em uma única noite. O animal, um enorme cavalo negro tinha olhos escarlate e respirava nuvens de enxofre pelas narinas. Uma determinada palavra mágica proferida pelo mago fazia brotar nos flancos do animal enormes asas de morcego que o propeliam pelos céus em um voo vertiginoso. Muitas testemunhas afirmavam tê-lo visto montando esse cavalo aterrorizante correndo velozmente pelas planícies ou voando pelos céus. Alguns afirmavam que a criatura havia sido ganha em uma aposta vencida pelo mago contra o próprio Diabo. E que o Diabo, que ele chamava jocosamente de "Velho Nick", havia jurado reaver o seu bichinho de estimação.

A fama de Michael Scot cruzava fronteiras e era tal que ele foi mencionado na obra prima de Dante Alighieri, A Divina Comédia, como um escocês banido para o Oitavo Círculo do Inferno, um lugar reservado para feiticeiros, astrólogos e falsos profetas. Que ele tenha sido retratado como um pecador provavelmente não é tão surpreendente, considerando sua reputação de feiticeiro. 


Muitos de seus compatriotas tinham medo de falar com ele e quando eram obrigados a fazê-lo preferiam olhar para o chão por temer encarar seus olhos "capazes de hipnotizar". Scot chegou a ser chamado de aliado do Diabo e ameaçado de ser denunciado e executado por realizar feitiços de morte e sedição. Não ajudava o fato de seu patrono Frederico II ter sido excomungado duas vezes e ser rotulado de Anticristo. Ainda assim, é curioso que Michael Scot tenha recebido propostas para se tornar Arcebispo de Cashel na Irlanda e em Canterbury, respectivamente pelos papas Honório III e Gregório IX. Ele não teria aceito após interpretar o próprio horóscopo e concluir que se o fizesse acabaria executado por heresia.

Durante sua carreira, Scot escreveu inúmeros manuscritos e tratados acadêmicos, cobrindo uma vasta gama de assuntos como esoterismo, astrologia, anatomia humana, fisiologia, além de reprodução e zoologia. No campo do Ocultismo, entretanto ele se sobressaiu como um dos primeiros magos a ter seu pensamento e doutrina publicados. Ele foi, sem dúvida, uma pessoa imensamente importante para a história e um personagem profundamente interessante. É curioso que a maioria de seus feitos se confundam com as lendas contadas sobre ele. 

Não se sabe exatamente como ou quando ele morreu, embora haja uma lenda muito interessante a respeito disso. Dizem que seu poder de profecia era tão notável que ele previu como aconteceria sua própria morte. Após uma visão, ele proclamou que morreria por conta de uma pedra que cairia, e tinha tanta certeza disso que usava uma proteção para a cabeça onde quer que fosse. Essa era apenas uma de suas muitas excentricidades, e só ficaria claro o quão certo ele estava em 1235, quando ele removeu seu capacete para assistir à missa e acabou atingido por uma pedaço de reboco que caiu do teto da igreja, acertando-o em cheio.


Scot foi enterrado na Abadia de Melrose, local importante que recebeu vários indivíduos ilustres da história da Escócia. Junto dele, supostamente foram colocados seus livros de magia, artefatos e ferramentas mágicas. Ele instruiu um de seus discípulos a lançar um feitiço poderoso sobre a sepultura que recebeu seus ossos, para que aquele que perturbasse seu descanso sofresse uma morte aterrorizante. Por séculos, seu túmulo ficou intacto, até que em 1850 ele foi escavado para que os ossos fossem depositados em outro lugar. Diz a lenda que o caixão em que ele teria sido colocado estava vazio, o que alimentou ainda mais as lendas sobre ele.

Michael Scot, permanece sendo uma curiosa personalidade histórica, habitando um lugar tênue entre a realidade e fantasia, sua lenda ofuscando qualquer verdade que seu conto possa conter, e podemos nunca saber com certeza toda a verdade por trás do misterioso Mago Mor da Escócia.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Ikiryo - Conheça os estranhos Fantasmas Vivos do Folclore Japonês


Em todos as partes do mundo, não faltam histórias à respeito de fantasmas, demônios e entidades espirituais, abrangendo todos os tipos de ocorrências estranhas: corpóreas ou incorpóreas, visíveis ou invisíveis, benignas ou malignas. O Folclore do Japão é um dos mais ricos no que diz respeito a histórias assustadoras envolvendo entidades fantasmagóricas. Algumas delas, tão estranhas e aterrorizantes que mesmo em nossos tempos racionais, continuam causando medo nas pessoas, pois muitos ainda estão dispostos a acreditar nelas. Uma dessas lendas descreve um fantasma atípico que não vêm da Terra dos Mortos, mas que ainda é parte do Reino dos Vivos.

As entidades conhecidas como Ikiryo, algo que pode ser traduzido como "Fantasma Vivo" são em termos gerais espíritos de pessoas vivas que são temporariamente desalojados de seus corpos para vagar, muitas vezes por grandes distâncias, a fim de assombrar, amaldiçoar ou assustar as pessoas. As razões para isso acontecer são variadas e podem assumir muitas formas. Uma das maneiras mais comuns de um Ikiryo se formar é por meio de emoções intensas, incluindo profunda tristeza, amor doentio, paixão obsessiva, ódio cego ou raiva incontida. Tais sentimentos libertariam temporariamente a alma do corpo, fazendo-a vagar, geralmente atraída pela fonte dessas emoções. Enquanto o espírito se desprende, a pessoa se mantém viva numa espécie de transe, sem ter consciência de que está acontecendo.

Outra maneira de um Ikiryo se formar é por um ferimento grave que deixa alguém às portas da morte. Com o corpo alquebrado, o espírito se separa, afastando-se com o intuito de assombrar o lugar onde ocorreu o fato ou para perseguir o causador deste. Uma crença popular da Segunda Guerra Mundial envolvia soldados feridos em campo de batalha que apareciam na forma de Ikiryos para amigos e familiares. Era uma maneira para eles darem seu último adeus aos entes queridos, algo muito difundido naqueles tempos. No Japão, há numerosos casos de pessoas visitadas por aparições de pessoas que se encontram no leito de morte.


Segundo o mito um Ikiryo pode se manifestar por intermédio de uma condição chamada rikonbyo, literalmente "doença da separação da alma", também conhecida como kage no yamai, ou "doença das sombras". Este é considerada como um tipo de moléstia física cujo principal sintoma é fazer com que a alma da vítima escape de seu corpo, podendo retornar mais tarde. Tal aflição costuma ser transmitida de geração em geração, como uma doença hereditária. Para combater essa doença, rezas, ervas e rituais são utilizados em noites específicas com o intuito de impedir que a alma se desprenda do corpo. Um dos métodos curiosos é que a pessoa faça uma espécie de voto de silêncio ou use uma mordaça de papel de arroz, uma vez que existe a crença de que o espírito deixa o corpo pela boca.  

Em casos muito raros, um indivíduo pode se tornar um Ikiryo por vontade própria e viajar nessa forma espiritual, usando uma habilidade conhecida como tobi-damashi. As pessoas com essa faculdade simplesmente entram em um transe profundo induzido por mantras, certas bebidas fortes ou meditação, fazendo com que seus espíritos abandonem o corpo. O objetivo daqueles que usam esse poder geralmente envolve usar a forma espiritual para obter vingança, assustar ou enviar mensagens. Na tradição mística japonesa, as pessoas que assumem a forma de um Ikiryo muitas vezes o fazem por meio de magia negra, embora essa feitiçaria nefasta possa facilmente dar errado e fazer com que eles não consigam retornar para seus corpos novamente.

Uma vez separado do corpo, o Ikiryo assume uma variedade de formas diferentes, dependendo da razão pela qual se formou ou da região em que vive. A descrição mais comum dessas entidades é que eles parecem com uma espécie de doppelganger da pessoa viva, às vezes translúcida ou nebulosa, enquanto outras vezes indistinguível de uma pessoa viva. 


Outros Ikiryo assumiriam aparências mais elaboradas e assustadoras, como uma cabeça flutuante sem corpo ou uma "chama da alma", conhecida em japonês como hitodama, uma espécie de orbe flamejante de fogo. Há ainda uma variedade incrível de formas dignas de pesadelo, com espíritos monstruosos, deformados ou simplesmente medonhos. Os poderes do Ikiryo também variam, dependendo muito da razão pela qual foram formados e da intensidade da emoção que os criou. Aqueles formados e alimentados pela raiva são considerados os mais poderosos, mais destrutivos e capazes de influenciar o mundo físico, podendo quebrar objetos, mover coisas e atacar os vivos fisicamente. Podem ainda causar doenças, bem como infligir maldições, incitar terror incontrolável, e até mesmo possuir o corpo de outra pessoa. 

Os formados a partir de amor não correspondido ou obsessivo assombravam o objeto de sua afeição, podendo sussurrar em seu ouvido, deixar presentes, acariciá-los ou mesmo, estuprá-los. Um Ikiryo formado pela tristeza costuma emanar um frio congelante ao seu redor, bem como uma sensação de grande desânimo que afeta residentes de uma vasta área. Outros fenômenos inumeráveis ​​atribuídos a ação dos Ikiryo incluem ruídos anômalos, passos desencarnados, odores que aparecem do nada, pontos frios e outros fenômenos típicos de uma assombração usual. Se as visitas se tornam persistentes, diz-se que a vítima de um Ikiryo acaba se tornando deprimida ou mesmo louca. Aliás, um dos objetivos principais desses curiosos fantasmas é enlouquecer suas vítimas antes de retornar aos seus corpos satisfeitos com a situação que criaram.  

A pessoa que está projetando o Ikiryo pode estar ciente do que está fazendo durante esses episódios, mas muitas histórias envolvem pessoas que acordam sem memória de suas divagações e manifestações como espírito, apenas ouvindo sobre isso mais tarde de aterrorizadas testemunhas. Nesses casos, a manifestação usa o subconsciente para extrair sua vingança. 


Os Ikiryo figuram com frequência na literatura japonesa presentes em histórias de samurais, baladas, tragédias e poesias, como no "Conto de Genji". Estão também em incontáveis narrativas de terror e ficção, como a coleção de histórias assustadoras kaidan, "Sorori Monogatari". O mito é muitíssimo difundido no país, sobretudo em regiões rurais onde a crença em tais manifestações é parte das tradições familiares, contudo nas últimas décadas grandes cidades também experimentam um retorno dessas lendas. 

Eles estão presentes até mesmo nas escrituras budistas, com textos religiosos ancestrais explicando como afastar, repelir ou até mesmo destruir esses fantasmas usando para isso rituais elaborados, objetos encantados ou mesmo invocações mágicas. Existem monges ou sacerdotes que oferecem seus préstimos, visitando pessoas afligidas por tais manifestações e que desejam se ver livres de seus ataques. De fato, se você pegar um jornal no Japão, encontrará na seção de classificados anúncios de profissionais que removem fantasmas - verdadeiros caça-fantasmas.

Embora a maioria das pessoas considerem que essas aparições não passam de mero folclore e lendas, ainda há uma parcela considerável que crê neste fenômeno e o entende como real e factual. Não faltam histórias sobre o avistamentos e relatos sobre Ikiryo de todos os tipos. O que quer que se possa pensar à respeito dos Ikiryo, a lenda constitui um tipo curioso de fenômenos sobrenatural vindo de uma terra que preza e conserva suas tradições. 

Mesmo as mais estranhas...

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Alquimista Imortal - A Vida e as Lendas sobre Nicholas Flamel


Desde o início dos tempos, desde que os homens tomaram consciência de sua própria mortalidade, houve quem quisesse impedir o que é inevitável. Indivíduos que tentaram à todo custo evitar a aproximação da morte. 

A busca pela imortalidade se tornou um tema comum de obsessão ao longo da história, desde os antigos imperadores chineses em busca de elixires da vida eterna até aqueles que procuram a lendária Fonte da Juventude. Nas selvas da África feiticeiros tiravam entranhas de animais em busca de ingredientes para rituais capazes de prolongar a vida, enquanto no Peru, sacerdotes ofereciam sacrifícios aos deuses para ganhar seu favor divino e garantir uma vida longa. Parece que não há limites a respeito do que as pessoas estão dispostas a fazer quando o assunto é viver para sempre. 

No entanto, embora tudo pareça um sonho inatingível, sem base na realidade, houve quem alegasse ter atingido seu intento. Uma dessas pessoas, foi um homem que viveu no século XV e cujo nome se tornou uma lenda. Usando magia antiga e métodos extraídos da mítica arte da Alquimia, ele supostamente desvendou os segredos para a vida eterna. 

O Mestre Nicholas Flamel nasceu em Pontoise, no ano de 1330, ele morou a maior parte de sua vida em Paris, onde exerceu o ofício de escriba, copista e vendedor de manuscritos. Flamel era o proprietário duas lojas em Paris especializadas na compra e venda de livros. Ele se casou com uma mulher chamada Perenelle em 1368 e os dois foram cristãos bastante devotados, dedicados à filantropia. Isso tudo soa bastante mundano, e de fato, a vida Flamel não parece muito interessante, mas depois de sua morte em 1418, ele começou a atrair a atenção das pessoas através de histórias estranhas que o transformaram em uma das figuras mais misteriosas de seu tempo.


Foi no século XVII, séculos depois de sua morte, que as histórias sobre os segredos e habilidades místicas de Flamel começaram a circular. As narrativas davam conta de que ele fora muito mais do que um humilde escriba e livreiro parisiense. Afirmava-se que ele de fato estava profundamente envolvido nas artes místicas da alquimia, um interesse que começou como passatempo, mas que se transformou em uma obsessão depois de um sonho. A história conta que uma noite ele teve um sonho vívido com um anjo, que veio a ele mostrando um livro e proclamando: "Olhe bem para este livro, Nicholas. A princípio, você não entenderá seu conteúdo - nem você nem qualquer outra pessoa. Mas um dia você verá nele o que nenhum outro homem foi capaz de ver”.

No sonho, Nicholas pegava o livro em suas mãos, mas antes que pudesse ler suas páginas, acordava. Nos dias que se seguiram, o sonho surreal espreitou no fundo de sua consciência o atormentando. Com o tempo, ele decidiu esquecer aquilo e se concentrar no trabalho, contudo, quando menos esperava, um estranho entrou em sua loja. O homem apareceu em sua porta trazendo um livro que pretendia vender, o que não era particularmente estranho considerando a linha de trabalho de Flamel. O que era estranho é que o livreiro imediatamente reconheceu o exemplar como sendo o livro que o anjo estava segurando em seu sonho. 

Flamel comprou imediatamente o livro e levou-o ao escritório para examiná-lo. A capa era de uma aparência antiga, ornamentada com tiras de cobre trabalhado adornado com símbolos e desenhos arcanos que ele desconhecia. A primeira página afirmava que ele era de autoria de um tal "Abraão, o judeu, príncipe, sacerdote levita, astrólogo e filósofo". Flamel jamais havia ouvido falar de tal pessoa, mas imediatamente se interessou em ler o conteúdo e saber o que pessoa tão distinta teria à dizer.


As primeiras páginas eram uma ladainha de advertências ao leitor do livro, amaldiçoando aqueles que não fossem dignos de lê-lo, seguido por páginas e páginas de texto enigmático, desenhos, ilustrações, diagramas e símbolos, todos escritos em uma mistura quase ininteligível de grego, hebraico antigo e outras línguas, a maioria das quais Flamel não entendia e algumas que nunca tinha visto antes. O livreiro era versado em conhecimento arcano, livros místicos haviam passado pelas suas mãos, de modo que ele sabia o suficiente para reconhecer que o livro tinha algo a ver com alquimia. Embora não fosse capaz de compreender seu conteúdo, ele suspeitou que haviam segredos profundos em suas páginas mas que estes só seriam extraídos mediante uma tradução. Assim começou sua busca obsessiva por decifrar o livro.

Flamel tornou a compreensão do livro seu objetivo de vida. Ele passava noites inteiras folheando febrilmente o volume, fazendo anotações e consultando outros livros em busca de informações que pudessem ajudá-lo. Ele também vasculhava as bibliotecas e livrarias de Paris em busca de pistas capazes de lançar uma luz sobre as partes mais obscuras do intrincado texto. Por vezes avançava em um ponto: decifrava algumas notas de rodapé, reconhecia certos caracteres e obtinha um fio de informação, mas o trabalho progredia lentamente, consumindo todo seu tempo livre.

Ele passaria cerca de 21 anos dedicados a exasperante tradução, lentamente desbloqueando alguns trechos e parágrafos do manuscrito, mas ainda assim aquilo o iludia. Ele então decidiu fazer uma viagem para a Espanha, onde muitos exilados judeus viviam na época. Se o autor do livro que o deixava obcecado era um judeu, talvez conseguisse encontrar respostas lá. Já na Espanha, Flamel se encontraria com vários estudiosos e pesquisadores. Um destes era um renomado sábio judeu de nome Maestro Canches, que identificou o livro em seu poder como uma cópia do Livro original de Abramelin, o Mago, um dos maiores mestres de todos os tempos. Canches um estudioso dos mistérios da Cabala mística já havia ouvido rumores sobre a existência daquele volume, mas até então, cogitava se tratar de uma lenda. O livro teria se perdido há muito tempo, mas segundo a lenda ele encontraria o caminho até as mãos de uma pessoa destinada a compreender os seus segredos.


O sábio se prontificou a ajudar Flamel no que fosse possível. Os dois conseguiram traduzir algumas páginas que Flamel trouxera consigo, fazendo um avanço significativo, mas era necessário retornar a Paris para se concentrar no restante. O sábio judeu concordou em seguir com ele para Paris, mas pouco depois, Canches morreria de uma doença contraída na viagem. Felizmente Flamel havia aprendido com o velho mestre o suficiente de dialetos hebraicos para continuar decodificando o manuscrito por conta própria.

De acordo com a lenda, Flamel levou três anos para concluir a tradução, liberando no processo os vastos poderes mágicos contidos no livro. Dizem que foi o tratado que lhe permitiu aprender o segredo para criar a mítica Pedra Filosofal, a chave para a cobiçada arte da transmutação. A pedra mágica tinha a propriedade única de transformar metais básicos como o mercúrio em ouro, uma habilidade procurada pelos alquimistas desde a criação dessa ciência.

Curiosamente, durante esse tempo, Flamel tornou-se repentina e inexplicavelmente rico, supostamente através do uso da alquimia. Ele e sua esposa começaram a doar grandes quantias de dinheiro para vários projetos de filantropia, bem como fazer doações para a Igreja, sem ninguém ser capaz de descobrir de onde vinha tanto dinheiro. O Rei Carlos VI da França até ordenou uma investigação sobre Flamel por suspeita de que ele havia encontrado um tesouro, mas não foi apurado nada que pudesse explicar a fonte dessa inesgotável riqueza ou qualquer indício de negociação escusa.


Registros históricos atestam que, oficialmente, Flamel morreu em 1418 aos 88 anos, uma idade prodigiosa para sua época. Após seu falecimento, sua casa foi saqueada por uma turba que tendo ouvido falar sobre as suas proezas, desejavam obter para si seus tesouros. Estes teriam buscado a Pedra Filosofal e o Livro de Abramelin, mas nenhum deles foi encontrado. Colecionadores, nobres poderosos e pessoas gananciosas enviaram seus agentes por toda Paris, incumbindo-os da missão de descobrir o que teria acontecido com os pertences do Mestre Alquinista.

Eles revelaram rumores de toda ordem que circulavam pela cidade: Dizia-se que Flamel teria encenado a própria morte uma vez que era imortal. Que ele havia entregue tanto o Livro de Abramelin quanto a Pedra Filosofal para uma Ordem de Monges antes de morrer ou de partir para um exílio que ele próprio se impôs. Que ele teria atirado a pedra num rio e queimado as páginas de seu livro quando sentiu a aproximação da morte. Que um anjo (ou quem sabe um demônio) teria exigido tanto a pedra quando o livro de volta para que pudesse passá-lo para um novo dono. Ninguém sabia ao certo!

No início do século XVII, um homem chamado Dubois alegou ser descendente direto de Nicolas Flamel e que havia herdado alguns dos segredos de seu ancestral, entre os quais como fabricar ouro a partir do chumbo. Ele desejava obter um patrono que pagasse a ele uma soma considerável em troca dos segredos, visto que lhe faltava a habilidade prática para realizar as proezas alquímicas. Quando o poderoso Cardeal Richelieu soube a respeito desse sujeito, imediatamente deu ordem de prisão a Dubois. Os homens do Cardeal tentaram extrair dele o segredo, recorrendo a tortura nas masmorras parisienses. Dizem que o Cardeal teve êxito em obter o livro, mas que aparentemente nunca foi capaz de entendê-lo. Uma suposta cópia contendo a tradução teria sido escondida por Dubois, mas este morreu sem revelar seu paradeiro. Mais estranho ainda: o livro que estava em poder de Richelieu teria desaparecido misteriosamente de um cofre, sem que jamais o sumiço pudesse ser explicado.


A localização do livro se tornou a obsessão de muitos colecionadores que promoviam verdadeiras caçadas ao tomo perdido. Livreiros de todos os cantos da Europa ambicionavam colocar suas mãos no livro, acreditando que em suas páginas estaria o segredo para uma fortuna inestimável. A obra supostamente apareceu e desapareceu em diferentes momentos da história, em diferentes lugares, mas não é difícil separar o que é lenda e o que é verdade. De fato, o Livro original de Abramelin, ou ainda, o Livro de Flamel, se tornou para colecionadores uma busca digna de comparação com a demanda do Cálice Sagrado. Seja como for, o Livro se perdeu nas brumas do tempo, com muitos acreditando que ele tivesse sido destruído ou que jamais tivesse existido.

Em meados do século XVII vários textos aparecerem repentinamente para falar das proezas mágicas de Nicholas Flamel, com tratados de alquimia supostamente escritos por ele surgindo de tempos em tempos e sendo editados com grande interesse. Em Paris, os Tratados de Flamel se tornaram uma febre e passaram a ser referenciados como obras legítimas de grande importância. Tudo isso serviu para alimentar a enorme popularidade da Alquimia na época, referenciada até mesmo nos célebres Diários de Isaac Newton, como "o Caduceu e os Dragões de Flammel". Vários estudiosos renomados passaram a reconhecer as contribuições de Flamel como um dos Mestres da Arte, capaz não apenas de realizar a desejada transmutação de metais em ouro, mas de atingir outras façanhas, entre as quais promover a imortalidade.


Embora Flamel supostamente tenha morrido no século XV, começaram a aparecer histórias de que nem tudo era o que parecia ser. Houve vários supostos avistamentos de Nicholas Flamel em academias, bibliotecas e universidades em toda a Europa, muitos anos depois de sua morte. Diziam que ela lecionava em certas instituições usando nomes falsos ou pseudônimos, que conduzia experimentos bizarros e que havia escrito tratados usando nomes fictícios.

Um arqueólogo chamado Paulo Lucas esteve em Broussa, na Turquia, enviado à mando do Rei Luís XIV em uma missão para adquirir antiguidades. Enquanto estava lá, Lucas conheceu um sábio filósofo que lhe revelou que Flamel e sua esposa haviam explorado os segredos da imortalidade por meio da Pedra Filosofal. De acordo com este filósofo, com os segredos da Pedra Filosofal uma pessoa poderia viver milhares de anos. Lucas foi informado de que Flamel e sua esposa alcançaram a imortalidade, fingiram suas próprias mortes, simularam os funerais e então se mudaram para a Espanha e depois para a Índia, onde ainda viviam. Embora Lucas estivesse cético no início, ele começou a acreditar quando o filósofo descreveu o Livro de Abraão e como Flamel havia chegado a sua posse. Em dado momento, o arqueólogo desconfiou que o sábio era o próprio alquimista, se divertindo às suas custas, e quando pensou em confrontá-lo, este desapareceu sem deixar vestígios. Lucas devotou o restante de sua vida a tentar encontrar Flamel. Ele foi apenas o primeiro a fazê-lo: muitos outros pesquisadores se dedicaram a encontrar o alquimista e encontrar a verdade.

Mas até onde essas lendas são reais? Flamel realmente traduziu o livro e criou a Pedra Filosofal? Ele detinha o conhecimento da Transmutação de Metais? Ele realmente simulou a sua morte e da esposa? E mais importante, ele conseguiu vencer a morte? Ninguém realmente sabe e qualquer certeza é fugaz.


Flamel permaneceria um elemento fixo do mundo alquímico nos séculos posteriores, mencionado em várias obras de ficção e até mesmo entrando na cultura pop moderna, aparecendo no romance best-seller Harry Potter e a Pedra Filosofal e sua adaptação para o cinema, bem como seu filme spinoff Animais Fantásticos: Os Crimes de Grindelwald. Claro, considerando que Flamel nunca foi realmente conhecido como alquimista até os livros publicados séculos após sua morte, argumenta-se que não passavam de mitos em torno de uma figura histórica real, uma construção para vender livros, manuscritos atribuídos a ele escritos por outra pessoa, tudo embelezado, na melhor das hipóteses, pura fabricação, na pior.

Isso nos deixa sem saber o quanto de tudo isso se baseia em fatos, exatamente onde termina o mito e começa a realidade. Nicholas Flamel certamente existiu, mas ele alguma vez foi um alquimista todo-poderoso que descobriu os segredos do universo e da vida eterna? Ou tudo isso é apenas folclore e lenda? Ele é apenas uma figura histórica envolta em mito, ou está por aí até hoje, tão vigoroso e vivo como há séculos atrás?

É difícil dizer, mas Nicholas Flamel definitivamente deixou sua marca na história.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Uma História de Violência - Um Massacre Brutal numa cidade da Idade do Ferro


Muitas vezes parece que a história da humanidade pode ser contada através da História da Violência.

E isso é especialmente verdadeiro na Europa, onde eras inteiras são nomeadas devido às guerras e conflitos que ocorreram naqueles períodos específicos de tempo. Nenhuma outra cultura dominou a história e a guerra como os antigos romanos. De fato, podemos creditar à Civilização Romana uma série de avanços e progressos, mas também o pioneirismo na arte de travar guerras e realizar massacres em larga escala. Para um povo que se orgulhava de ser o ápice da civilização em seu tempo, eles eram especialmente bons em praticar a barbárie.

Contudo, não cabe aos romanos um dos mais bem preservados retratos de violência do passado da Europa. Por muitos anos, especialistas acreditaram que um antigo assentamento na Espanha havia sido vítima dos conquistadores romanos e que o povo local havia sido massacrado por eles. No entanto, novas pistas encontradas apontam para algo diferente.

Entre meados do século IV e final do século III aC, a cidade de La Hoya, no Norte da Espanha, foi submetida a um violento ataque, seus habitantes foram chacinados e o assentamento incendiado de cima até embaixo. O que sempre impressionou os especialistas era o grau de brutalidade dos atacantes: decapitações, amputações e outras lesões de força cortante demonstram numa cruezas de detalhes como era viver (e morrer) nas guerras desse período.

Estudos recentes interpretam o massacre como uma instância de conflito entre duas comunidades rivais, talvez uma disputa comercial ou mesmo uma rixa entre famílias proeminentes que descambou para um cenário hediondo. 


"Mesmo para os padrões de violência da antiguidade, é chocante investigar o que se deu nesse lugar em especial. Através de métodos de análise forense modernas e a coleta de pistas é possível traçar um panorama cronológico do que aconteceu na cidade milhares de anos atrás. E o que vimos ao examinar essa cena nos deixou chocados", explicou a arqueóloga Teresa Fernández-Crespo, da Universidade de Oxford responsável pelo projeto.

Localizada no vale do Rio Ebro, La Hoya foi no passado uma cidade de tamanho e importância consideráveis - os arqueólogos determinaram que ela tinha paredes de proteção, ruas e grandes edifícios erguidos pelos Berones, uma cultura celta. Os Berones governaram a área desde o século XV aC até cerca de 300 aC,  foram um povo orgulhoso, capaz de grandes realizações na agricultura, metalurgia e arquitetura. Também travavam guerra e eram especialmente famosos pelas suas incursões aos territórios vizinhos dos quais emergiam com saques e escravos. Suas cidades prosperaram até a chegada dos romanos à região, quando a cultura Berone foi rapidamente assimilada e seus principais traços absorvidos pelos conquistadores. 

Habitantes locais sempre tiveram conhecimento da existência de povos antigos que viveram ali muito antes deles. Sabiam também que haviam ruínas de antigos assentamentos, povoados e fortes, erguidos pelos Berone pontilhando o vale inteiro. Não era raro as pessoas encontrarem restos de construção, objetos de uso diário, cerâmica, armas e outros artefatos enterrados. La Hoya, no entanto era um assentamento especialmente interessante, sobretudo pelo bom estado de conservação do local e por ele não ter sido ocupado posteriormente.

Os pesquisadores revisaram os restos mortais encontrados nas ruínas da cidade no início da década de 1950. O objetivo era compreender de uma vez por todas o que havia acontecido e quem era o responsável pelo triste destino dos habitantes. A medida que os esqueletos de vítimas foram criteriosamente examinados um retrato medonho de violência veio à tona.    


"Um homem adulto mostra evidências claras de decapitação: sua quarta vértebra cervical foi completamente cortada ao meio por um golpe oblíquo, consistente com um único corte no pescoço da esquerda para a direita, em um ângulo para baixo. Embora nenhum ferimento defensivo claro tenha sido identificado, a explicação mais plausível para o trauma observado é que ele poderia ter sido infligido durante um encontro cara a cara em que a vítima tentou confrontar seu agressor."

Mas esse não é o único exemplo de violência extrema na chacina de La Hoya, as conclusões apresentam um panorama incrivelmente atroz:

"Uma adolescente de não mais que 15 anos teve o braço direito amputado na altura do ombro por um golpe de espada. A posição da vítima e de seu braço quando encontrados indica que o membro havia sido atirado longe (com as pulseiras ainda nele). A vítima rastejou até ele onde morreu devido a perda de sangue ou uma facada nas costas". 

"Dois homens com idade entre 18 e 21 tiveram ferimentos de força cortantes potencialmente infligidos por trás por armas brancas - algumas espadas e adagas foram recuperadas em um cemitério próximo. Os ferimentos foram tão fundos (cerca de 20 centímetros de profundidade) que triscaram as costelas, em um dos casos causando fratura".

"Golpes sucessivos foram desferidos contra o crânio de uma vítima feminina de aproximadamente 50 anos por um objeto pesado, possivelmente uma clava ou porrete de madeira. Não menos do que oito golpes foram desferidos causando fraturas sistemáticas. A força do último golpe foi tão potente que a arma se estilhaçou projetando farpas de madeira que se alojaram profundamente no crânio". 


Para tornar tudo ainda mais sinistro, a maioria dos esqueletos recuperados no massacre apresentavam sinais de terem sido incendiados. Há indícios de que os assassinos usaram azeite para colocar fogo nas pessoas, e que em vários casos, estas ainda estavam vivas quando incendiadas. Após o massacre, elas foram simplesmente abandonadas, sendo encontradas sem sepultamento, indicando que os perpetradores os deixaram mortos ou morrendo nas ruas coalhadas de sangue. As casas e construções foram por fim queimadas, bem como silos de estocagem, depósitos e abrigos de animais. O roubo não parece ter sido uma das motivações do massacre, já que ossos de animais carbonizados foram achados, bem como sacas e potes ainda contendo restos de alimentos. Não há como saber quantas vítimas foram feitas, mas é possível que a população de aproximadamente 800 pessoas tenha sido quase que inteiramente exterminada.
 
O ataque parece ter ocorrido à noite, provavelmente de surpresa, já que foram encontradas poucas vítimas com armas em suas mãos ou posições defensivas condizentes com luta corpo a corpo. O mais provável é que os assassinos chegaram de madrugada, aproveitando a escuridão e agiram com rapidez alucinante contra a população que estava dormindo num verdadeiro frenesi escarlate.

"Muitas das mortes denotam um claro elemento passional, algo que encontramos hoje em dia em crimes motivados por vingança, por exemplo. Não há como saber o que motivou essa chacina, mas tudo leva a crer que os atacantes estavam sob forte emoção", disse Fernández-Crespo.

La Hoya é o único sítio ibérico de grande porte da Idade do Ferro cuja destruição ocorreu antes da conquista e ocupação romana. A hipótese é que o massacre de La Hoya tenha sido tão brutal e completo que os poucos sobreviventes nunca mais voltaram. As pessoas fugiram em desespero e evitaram a localidade por séculos. No folclore da região há muitas lendas sobre fantasmas, assombrações e mortos-vivos, como Revenants, contadas há séculos. De fato, a região de La Hoya que se traduz como "o buraco", também ficou conhecida por séculos como "Vale Vermelho".   


Quem teria promovido tudo isso? Diferentes facções dentre os Berones são os responsáveis mais prováveis pela mortandade, ou seja, um mesmo povo impôs a seus semelhantes, possivelmente parentes próximos, tamanho horror. O estudo conclui que as sociedades pré-romanas da Península Ibérica travaram batalhas políticas entre si pelo poder, pela dominação e destruição, muito antes de o resto da Europa se tornar a área belicosa que permaneceu sendo por séculos.

Nossas digitais sangrentas estão bem claras.