sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Lamentos atrás das paredes - O bizarro caso da Casa Assombrada de Gales


Todo mundo adora uma boa história de casa mal-assombrada. O suspense, o mistério, a sensação de estranheza e medo diante do desconhecido; tudo isso cria uma espécie de fascínio mórbido.

Lugares assombrados, em especial, casas, nos proporcionam uma leitura instigante e assustadora e são a base de muitas pesquisas paranormais devido à sua acessibilidade. Com base nessas histórias, não faltam contos, romances, séries de televisão e filmes que se passam em casas assombradas. E é claro, existem as casas assombradas do mundo real, aqueles endereços estranhos onde coisas inexplicáveis teimam em acontecer. Obviamente a maioria das alegadas atividades paranormais não passam de coincidência, fraude ou imaginação fértil. Na maioria da vezes, existe uma explicação perfeitamente racional para tudo. Uma corrente de vento contínua, um espaço vazio numa casa ou a presença de ratos responsáveis por estranhos ruídos atrás das paredes. Contudo, certos casos fantasmagóricos em residências se revelaram mais difíceis de serem explicados. São os casos enigmáticos que nos fazem coçar a cabeça e ponderar sobre o que não sabemos e o que estamos dispostos a aceitar: "E se essas histórias forem verdade"? 

Um caso estarrecedor que recai na categoria dos mistérios perturbadores sem solução, envolve uma velha casa num tranquilo bairro no País de Gales, um lugar que se tornou conhecido nos últimos anos por estranhos ruídos vindos das profundezas de um escuro porão.

Quando Alan e Christine Tate se mudaram em 2010 para sua nova residência no pacato subúrbio de Carmatheshire no País de Gales, tudo parecia estar correndo bem para eles. Era um antigo sonho, muito almejado se tornando realidade: mudar-se para um bairro tranquilo, acolhedor e central. Eles passaram a viver no seu novo lar e lá construíram sua história ao longo de 8 anos, sem nenhum incidente estranho em particular. Contudo em junho de 2018 as coisas mudariam para eles, transformando sua casa dos sonhos em um antro de mórbidos pesadelos. 

Tudo começou num dia como qualquer outro, Christine estava sozinha na cozinha fazendo café, quando ouviu um estranho "som de suspiro" vindo de lugar nenhum. Ela achou que pudesse vir do banheiro, foi até lá e não encontrou nada de anormal. Assim que saiu ouviu novamente o lamento e voltou para investigar sem encontrar nada fora do comum. Foi assim que começou, de maneira simples e inofensiva.


Nos dias que se seguiram, mais sons inquietantes parecendo vir do porão e de trás das próprias paredes seriam ouvidos pelos moradores da casa. Eram sons de batidas secas, de zumbidos altos, vozes abafadas que às vezes pareciam falar em uma língua estrangeira não identificada, e mais assustador de tudo, gritos e lamentos, aparentemente de mulheres. Os sons embora abafados eram perfeitamente discerníveis, como se alguém estivesse preso atrás das paredes, tentando se fazer ouvir desesperadamente.

Christine diria ao jornal Wales Online:

"Na primeira vez, foi esse suspiro triste e alto. Eu contei a Alan que não conseguia descobrir de onde vinha. Naquela noite ouvimos o mesmo som repetidas vezes e procuramos em todo canto de onde vinha. Decidimos deixar o telefone no banheiro com o gravador ligado para tentar detectar a origem do ruído, e então ouvimos outros ruídos. Começamos a gravar por toda a casa e captamos sons de correntes, de um zumbido insistente e de gente chorando. Era assustador demais."

Logo se constatou que todos os sons pareciam ter uma origem que definitivamente levava ao porão. O subsolo da casa ficava diretamente abaixo a cozinha e era pouco usado pelo casal Tate. Eles costumavam reservá-lo para estocar móveis e objetos velhos e raramente entravam ali. Alan tomou coragem e decidiu inspecionar o porão, mergulhando na escuridão para tentar encontrar uma explicação razoável para a origem dos sons. Bastaram 20 minutos lá para que ele tivesse uma sensação desagradável, um sentimento de que não estava sozinho lá embaixo e que uma presença invisível o observava.

Alan descreveu a experiência da seguinte forma:

"Era sufocante. Como se algo estivesse ali comigo sem que eu pudesse ver. Porém eu conseguia sentir. Era uma presença, disso tenho certeza... algo que estava observando e que parecia ressentido com a minha proximidade. Senti um mal estar súbito e um frio repentino, como se tudo à minha volta estivesse conspirando para que eu deixasse o porão o quanto antes. Eu estava com medo... não há como colocar de outra maneira".


Durante sua curta permanência no porão, o que Alan consegui determinar é que aquele era o ponto focal dos fenômenos. Enquanto estava ali sozinho ele ouviu mais claramente os ruídos característicos que vinham lhes incomodando - os zumbidos, as batidas e é claro, os lamentos em uma língua estranha. Na escuridão do porão, eles eram mais discerníveis e ele chegou a conjecturar que se tratava de russo ou alguma outra língua do leste europeu. Alan supunha que os sons vinham das paredes do porão ou de baixo do próprio soalho.

Os Tate continuaram a gravar registros dessas anomalias, utilizando gravadores portáteis e microfones de captação. Eles gravaram mais de 20 fitas contendo os ruídos incômodos, com palavras, murmúrios, gemidos e batidas. Acompanhado de um amigo chamado Douglas Harding, Alan desceu novamente ao porão determinado à tirar a história à limpo. Levou consigo uma pá e uma picareta para buscar a fonte dos ruídos. Os dois cavaram cerca de 1 metro no piso, removendo a superfície e chegando a uma camada de terra compacta logo abaixo. Durante todo o trabalho exaustivo, realizado em condições adversas de iluminação, ouviram sons estranhos e ruídos exasperantes. Finalmente eles chegaram a uma segunda camada de concreto da qual não conseguiram avançar por ser muito resistente.

Naquela noite e nas noites seguintes, o som se tornou mais claro e conseguiram obter melhores registros dos fenômenos. O casal deixou dois gravadores registrando centenas de horas dessa cacofonia incessante de sons bizarros, que incluíam "uma mulher gritando, sons de natureza sexual, som de correntes, um zumbido elétrico, roncos e o que parecia ser uma reza que se transformava numa lamúria"

Alan diria sobre seus esforços para registrar esses ruídos:

"Tudo que eu realmente queria era uma explicação. Por que haviam pessoas aparentemente sofrendo? Devia haver alguma explicação para aqueles sons perturbadores. Colocamos microfones em todos os lugares, porque queríamos provar ou refutar o que estávamos ouvindo. Colocamos microfones na frente da casa, na parte de trás da casa, dentro e fora e no porão. O dispositivo que deixamos no porão captou os gritos e ruídos mais claros. Os outros dispositivos, que estavam gravando simultaneamente na frente e nos fundos da propriedade, captaram pouca coisa além das batidas".


O casal assustado chegou a chamar a polícia esperando que alguém pudesse ajudá-los. As autoridades vieram mas nenhuma explicação foi encontrada. Não havia nenhum sinal de algo fora do comum lá embaixo, nenhuma fiação defeituosa, nenhum sinal de se tratar de uma brincadeira de gosto duvidoso, nada. Os policiais chamados ouviram os mesmos ruídos e ficaram impressionados com o fato deles continuarem mesmo enquanto eles estavam lá. Um dos policiais, um homem chamado Ryan Boutrice, era filho e de um policial e se mostrou muito prestativo. Ele disse que perguntaria ao pai, que havia trabalhado exatamente naquele distrito, se ele lembrava de algum detalhe à respeito do endereço dos Tate.

Os gritos, gemidos e outros ruídos estranhos continuaram inabaláveis por pelo menos mais uma semana. O casal decidiu lacrar o porão com placas de isolamento acústico e deixar apenas um buraco através do qual pudessem baixar os microfones de captação na escuridão mais abaixo. Eles também levaram as gravações obtidas para o departamento de línguas da Universidade de Cardiff, com o intuito de tentar descobrir que língua estranha era aquela. Dois profissionais de áudio conseguiram isolar os trechos em que palavras pareciam estar sendo ditas e usando aparelhos de mixagem conseguiram tornar o som mais claro. Em seguida, passaram a gravação para diferentes estudiosos de línguas que foram unânimes em apontar que haviam diferentes línguas ali: sérvio, croata e outros dialetos do leste europeu conforme suspeitavam.

Quando a situação já estava se tornando insustentável, e os Tate cogitavam se mudar de uma vez por todas, receberam a visita de um senhor de meia idade chamado Robert Boutrice, que era pai do policial que havia se interessado pelo caso. Robert era um detetive aposentado com mais de 40 anos de serviço e que afirmava poder ajudá-los com informações sobre o endereço em que eles residiam. Robert contou que no início dos anos 1990, havia uma outra casa no terreno em que os Tate residiam. Toda a vizinhança havia passado por uma reestruturação no início de 2000 e várias casas foram colocadas abaixo e reconstruídas. A vizinhança então valorizou e se tornou melhor. 

Havia uma casa da qual Boutrice se recordava bem de seus tempos de policial. Ela ficava justamente no terreno que os Tate viviam. O ex-policial revelou que o lugar funcionou por algum tempo como esconderijo para uma quadrilha de criminosos especializados em tráfico de pessoas, em especial mulheres. As vítimas em questão eram refugiadas da Guerra dos Balcãs que haviam sido trazidas ilegalmente para a Inglaterra e depois transportadas para o País de Gales. A quadrilha negociava a venda delas para agências de trabalho e de prostituição. Os criminosos, no entanto, também realizavam negócios com indivíduos ainda mais desprezíveis, homens que desejavam ter "escravas" para satisfazer suas vontades. Nos anos que se seguiram à Guerra dos Balcãs que pulverizou a antiga Iugoslávia em vários estados independentes, milhares de pessoas fugiram dos conflitos étnicos, marcados por violência e massacre. Foi uma época sofrida para a população civil e de grandes oportunidades para traficantes de gente.


Uma denúncia anônima em 1995 fez com que a polícia promovesse uma batida na casa que servia de esconderijo para a gangue. Eles encontraram no porão uma prisão em que as mulheres eram mantidas presas. Atrás de uma porta pesada que sempre ficava trancada haviam cubículos onde elas viviam. Eram mantidas acorrentadas nas paredes ou algemadas no pé de camas, em condições sub-humanas. Não podiam sair de maneira nenhuma, comiam apenas refeições prontas que lhes eram entregues através de grades e para as necessidades usavam baldes. Elas ficavam ali, às vezes por meses sem saber onde estavam e sem entender o idioma que os criminosos falavam. Enquanto estavam sob a tutela deles, eram humilhadas e abusadas repetidas vezes, recebendo então algum "benefício" que poderia ser um sabonete ou um colchão. Essa prática visava quebrar qualquer resistência e prepará-las para uma vida ainda mais triste nas garras daqueles que as compravam. As negociações aconteciam no território selvagem da Deep Web, onde a venda de seres humanos é apenas uma das atividades bizarras.

Com a intervenção da polícia a quadrilha foi desbaratada e o detetive Robert Boutrice se recordava da prisão de pelo menos cinco homens que administravam o lugar. sete mulheres foram libertadas daquele covil, uma verdadeira masmorra. Infelizmente o lugar funcionou por anos e havia a suspeita de que muitas vítimas poderiam ter encontrado um final trágico nas mãos da gangue que não se importava em eliminar as mulheres que não conseguiam vender ou que criavam "dificuldades" para a operação.

Os Tate ficaram chocados com todas essas revelações e passaram a acreditar que havia algo nos subterrâneos da propriedade, algo que havia passado desapercebido pelos policiais e pelos empreiteiros que demoliram a casa. Deveria estar abaixo do porão e provavelmente pertencia à casa antiga. O respeitado Professor Charles Hilton, da Escola de Psicologia da Universidade de Cardiff, e um especialista em Parapsicologia, se ofereceu para ajudar os Tate. Com o uso de sensores de profundidade, o mesmo equipamento utilizado em detecção de espaços vazios que se formam após desabamentos, os técnicos identificaram dois possíveis bolsões abaixo do piso do porão. Com base nessas informações e com a autorização dos Tate, foram conduzidas escavações que revelaram em poucas horas o que parecia ser um alçapão oculto. Abaixo dele, os peritos forenses encontraram seis ossadas humanas, pertencentes a mulheres que tinham entre 15 e 20 anos de idade no momento de suas mortes.

Os cadáveres apresentavam sinais de terem sido vítimas de violência. O caso chocante repercutiu nos jornais do País de Gales e causou grande comoção em todo país. Graças à descoberta, metade das vítimas foram identificadas e os restos puderam ser enviados para seus países de origem para descansarem sob os cuidados de parentes. Os demais, que permanecem não identificados foram transferidos para cemitérios locais. Os promotores acrescentaram às sentenças dos criminosos indiciados pelo tráfico de mulheres, a acusação de assassinato, uma suspeita que já existia antes mas que só foi confirmada após a descoberta das ossadas.

O Professor Hilton explicou seu ponto de vista, à luz da Parapsicologia:

"Parece bastante claro que os tristes acontecimentos que se deram nessa casa continuaram reverberando por muito tempo. Mesmo depois dos envolvidos terem partido e depois das vítimas terem morrido. Por vezes, um incidente trágico deixa marcas e permanece em um lugar, como um eco. E este continua repetindo sem parar, até alguém ser capaz de ouvi-lo."


Após a descoberta das ossadas abaixo do piso do porão, os sons e ruídos pararam quase que de imediato e os Tate puderam ter um pouco de tranquilidade. No entanto, a família decidiu que haviam experimentado o suficiente e que não tinham mais estômago para viver num lugar com tamanha energia negativa represada. Eles se mudaram da casa em 2019 e no início de 2020 o lugar foi demolido de uma vez por todas:   

"É lamentável, nossa casa dos sonhos se revelou um lugar de pesadelos, onde tantas coisas ruins aconteceram. Isso só mostra que não sabemos nada a respeito da história dos lugares que escolhemos viver. E depois de saber, não tínhamos como permanecer lá. Não nos restou nada a não ser deixar a casa e tentar reconstruir nossas vidas em outro canto."

Para muitos especialistas o Incidente na Casa dos Tate é um dos mais bem documentados casos de assombração no País de Gales. Um fenômeno conhecido como "Eco" ou "Sombra" que se baseia na presença de poderosos sentimentos e emoções contaminando um determinado espaço. Esses "ecos" se fazem ouvir e parecem implorar pela atenção das pessoas quase num apelo para que sejam compreendidos e interpretados. Não são exatamente "fantasmas", pois não possuem vontade ou consciência, eles simplesmente se repetem.    

É claro, o caso dividiu opiniões confrontando crentes e céticos, fazendo com que muitos se perguntassem se tudo não passou de uma bem encenada fraude para ganhar fama em cima de um suposto incidente paranormal. Os críticos apontam que os Tate só começaram a falar à respeito dos sons misteriosos depois que foi feita a descoberta das ossadas e muitos afirmam que eles nunca mencionaram qualquer incidente estranho na propriedade. A polícia suspeitava da existência de um aposento secreto que não havia sido encontrado anteriormente e novos depoimentos de vítimas teriam apontado a existência do alçapão. Dessa forma, a descoberta não teria sido denunciada por ecos, mas por testemunhas. Há também outra questão: Por que os ecos demoraram tanto a serem ouvidos e começar a se manifestar? Por qual razão esperariam anos para se fazer ouvir, enquanto os Tate já viviam lá por alguns anos. 

Mesmo a autenticidade das gravações foi amplamente questionada. Técnicos de som examinaram as fitas apresentadas pelos Tate e consideraram que alguns sons pareciam estranhamente repetitivos, como se eles tivessem sido produzidos pela mesma fonte, apontando para uma possível fraude com um som sendo executado repetidas vezes. As conclusões sobre a gravação e a qualidade da mesma foram duvidosas.


Após concederem entrevistas e serem confrontados com essas questões, os próprios Tate disseram que não falariam mais à respeito do ocorrido e que não dariam mais nenhuma declaração sobre o incidente. Eles se diziam esgotados física e mentalmente diante de todo fenômeno e ressaltaram que jamais ganharam nada com a "fama" que atraíram para si mesmos após relatar a história.

Qual seria a verdade à respeito da casa assombrada de Carmatheshire? Haveriam realmente ecos repercutindo através das paredes? Teriam as tragédias ocorridas naquele lugar triste transbordado para o mundo real, fazendo-se ouvir pelos vivos? A história dessa casa permite muitos questionamentos, mas sem dúvida fazem dela um caso extremamente curioso envolvendo atividade paranormal.

terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Punt Gun - Espingardas gigantes com incrível poder de fogo


Se há uma verdade à respeito de armas de fogo é que não importa o quão mortais e destrutivas elas possam ser, sempre haverá alguém interessado em torná-las ainda mais mortais, ainda mais destrutivas.

Ao longo da historia humana existiu um desejo contínuo de criar armas maiores e com maior poder de fogo. Ocasionalmente o resultado eram armas comicamente grandes e tão difíceis de serem manipuladas que os atiradores que ousavam usá-las se arriscavam demasiadamente. Elas falhavam, não tinham qualquer precisão ou simplesmente explodiam ao serem disparadas.

Entretanto, houve inesperados sucessos nessa busca incessante pela arma mais letal. Entra em cena então a Punt Gun. No caso dessa lendária arma de fogo, o problema era outro: ela funcionava bem até demais! E sua existência colocava em risco a ecologia, constituindo um enorme perigo para o meio ambiente. 

Mas para entender essa história é preciso voltarmos no tempo. No início dos anos 1800, a caça era uma prática bastante difundida. As pessoas que viviam no campo possuíam armas de fogo, em especial rifles e espingardas, usadas exclusivamente para atividade de caça. Se quisessem ter carne na mesa, uma maneira bastante comum de consegui-la era ir ao campo, se embrenhar na mata e atirar com espingardas nos animais que se desejava comer. Caçar era uma necessidade para a sobrevivência! 


Na América do Norte e Europa, os patos selvagens estavam entre as aves mais desejadas para caça. Eles eram muito numerosos e relativamente fáceis de se abater. Mas quando as cidades começaram a crescer, surgiu um mercado para a venda da carne desses animais. Além da carne de pato, que era muito apreciada, a indústria da moda usava as penas na confecção de chapéus femininos. De fato, viver da caça ao pato se tornou o ganha pão de muitas pessoas que habitavam as zonas rurais. 

Com o aumento da demanda, os caçadores começaram a desenvolver maneiras de facilitar seu trabalho. Patos não ficavam parados quando alguém disparava contra eles, os pássaros simplesmente voavam apavorados para longe quando ouviam o barulho de caçadores ou o disparo de uma espingarda. Era necessário então achar uma forma de abater o maior número possível de presas, de preferência com um único disparo. 

Foi isso que impulsionou a criação dos primeiros modelos de Punt Guns, armas gigantescas que serviam para matar centenas de patos com um único tiro.

As armas eram basicamente versões imensas dos rifles de caça, geralmente com um único cano ao invés do tradicional cano duplo. As primeiras Punt Guns eram duas, por vezes, até três vezes maiores que um rifle normal, com um mecanismo de disparo igualmente grande que recebia uma generosa quantidade de pólvora e muita munição. O grande problema é que embora pudessem ser disparadas por um único atirador, a arma tinha uma enorme probabilidade de arremessa-lo longe com a potência do coice, quebrar sua clavícula ou até o braço. Além disso, a precisão era prejudicada pela sua tremenda potência. A solução engenhosa para a questão foi montar as enormes armas em botes à remo (os punt que deram nome à elas) que poderiam servir como apoio para o disparo. As armas eram tão poderosas que quando disparadas empurravam o bote vários metros para trás, mas sem causar danos ao atirador.


Os caçadores de patos usavam a Punt Gun de maneira devastadora. 

Um único disparo propelia uma chuva mortal de projéteis de chumbo arredondados que se espalhavam por uma área de até 20 metros. Tudo o que estivesse nesse espaço era alvejado, morto ou gravemente ferido. Ao disparar uma Punt Gun contra um bando de patos nadando em uma lagoa, o resultado era impressionante. Após o tiro, bastava ao caçador se aproximar e recolher os animais abatidos boiando na água.

As Punt Gun continuaram a ser aprimoradas e por volta de 1900 havia armas capazes de disparar quase meio quilo de chumbo de cada vez. Para se ter uma ideia, uma espingarda calibre 12 lança aproximadamente 32 gramas de chumbo por disparo e seus efeitos são devastadores à curta distância. A Punt era portanto 15 vezes mais potente. Nos Estados Unidos, caçadores trabalhavam com grupos operando de cinco a oito armas simultaneamente. Os botes com os enormes rifles eram distribuídos na beirada do rio ou lago e aguardavam até a chegada de uma revoada de patos, quando a quantidade desejada de animais se reunia, eles combinavam um único disparo coordenado. Essas ações eliminavam até 500 patos de uma só vez.

Ray Todd, um famoso caçador de Baltimore, se gabava de ter matado 419 patos de uma só vez, trabalhando com outros dois atiradores armados com Punt Guns. Com essa arma aterrorizante, um grupo de caçadores podia fazer fortuna em pouco tempo.


Mas apesar da inquestionável eficácia das Punt Guns, elas acabaram eventualmente sendo proibidas em todos os países onde eram fabricadas originalmente. Isso se deu por que a população de patos selvagens começou a diminuir sensivelmente em pouco tempo. Um estudo realizado pelo governo americano atestou que se a caça ao pato continuasse acontecendo com o emprego das Punt Gun, em 15 anos os animais seriam totalmente extintos. Um impacto irremediável para a natureza. Em 1918, leis federais foram aprovadas banindo de uma vez por todas as Punt e estabelecendo temporadas de caça. Antes disso, as armas já haviam sido proibidas na Inglaterra, França e na maioria dos países da Europa como uma grave ameaça ecológica. As multas para quem possui e usa uma dessas armas são extremamente pesadas, o que ajudou a inibir sua utilização, ainda que várias continuem por aí.

Apesar de terem sido banidas como armas de caça, as Punt Gun que já existiam eventualmente encontraram seu caminho até os campos de batalha. Na Grande Guerra, elas se transformaram nas primeiras armas antiaéreas usadas para abater aviões em pleno voo. Os biplanos usados na Grande Guerra eram bastante frágeis, tendo por vezes armação de madeira e partes cobertas com tecido. Um disparo certeiro era o suficiente para derrubá-lo ou atingir mortalmente o piloto. Entretanto, apesar de terem sido usadas com aplicação militar as Punt Gun eram pouco confiáveis e menos ainda precisas. Atingir um avião com uma dessas armas era algo extremamente difícil e restrito a um único disparo já que o tempo de recarga era longo. 

Curiosamente as Punt Gun jamais foram usadas na guerra de trincheira, embora elas pudessem ser realmente muito úteis para conter um avanço de infantaria. Um acordo entre os países regulamentou que tais armas não deveriam ser empregadas no campo de batalha, o que sem dúvida evitou uma carnificina considerável. De fato, os alemães chegaram a pedir que todas espingardas fossem removidas dos campos de batalha da Grande Guerra por temer o dano que elas causavam. Os americanos, que eram os principais utilizadores de espingardas (12 gauge shotguns), não aceitaram e continuaram a fazer uso extensivo delas - a Remington .12 até ganhou o apelido Trench Gun (Arma de Trincheira).

Algumas Punt Gun foram usadas no final da guerra na função de armas antitanques. Apesar de não conseguirem romper a couraça reforçada dos tanques, um disparo certeiro podia danificar as lagartas e tirar um tanque de ação. Os britânicos e americanos chegaram a usar as armas, dessa maneira. Uma equipe especial levava a Punt Gun o mais perto possível do Tanque para fazer um único disparo que danificasse o mecanismo de deslocamento do veículo. Imóvel, o tanque se tornava uma presa mais fácil. Algumas tropas alemãs nos dias finais do conflito também importaram para o front as Punt Guns que até então tinham apenas uso civil.


Na Segunda Guerra, as Punt Gun ainda em operação foram consideravelmente menos usadas. Na invasão da França, elas chegaram a ser empregadas para conter o avanço da Blitzkrieg, mas seus resultados foram modestos. A essa altura, já eram tidas como relíquias e gradualmente acabaram substituídas por armamento mais compacto, preciso e com um poder de fogo comparável.

Um levantamento no Reino Unido mostrou que ainda existem pelo menos 50 Punt Guns registradas no país. O Ato de Vida Selvagem e Campo de 1981 limitou o uso de espingardas na Inglaterra, no País de Gales, e na Escócia, a um diâmetro interno de 1,75 polegadas (44 mm). Desde então as armas são usadas apenas em ocasiões especiais, como no Jubileu de Diamante da Rainha Vitória em 1897, quando dispará-las se tornou uma tradição. Durante Coroações e no Jubileu dos governantes reais, 21 Punt Guns são disparadas separadamente e numa salva conjunta como parte das festividades. Nos Estads Unidos, ainda existem Punt Guns, mas elas são mais uma curiosidade que qualquer outra coisa, fazendo parte de shows de tiro e demonstrações. Caçadores com Punt Guns são raros, ainda que de tempos em tempos as autoridades da ATF façam apreensões.

As Punt Guns foram um marco das armas de caça e demonstraram que com o devido poder de fogo em suas mãos, o homem é capaz de operar drásticas mudanças no ambiente em que vive. Felizmente o bom senso falou mais alto nesse caso.


sábado, 25 de dezembro de 2021

Feliz Natal Assustador - Mais alguns Espíritos Natalinos Bizarros


Que tal mais alguns personagens do folclore natalino que não são exatamente bonzinhos?

A lista é longa, por isso, dividi o artigo em duas partes, para que possamos conhecer mais alguns espíritos, diabretes, duendes e monstros que causam uma mistura de fascínio e medo.

O Natal não é igual em todas as partes do mundo, em algumas, ele pode ser bastante perturbador, como veremos à seguir.

No mais, o MUNDO TENTACULAR deseja a todos os seus leitores um Feliz Natal e Boas Festas.

PÈRE FOUETTARD
França


Há alguns personagens do Natal que realmente conseguem ser assustadores, mas poucos são tão perturbadores quanto Père Fouettard. Em francês, o nome significa exatamente "Papai Açoiteador" e é por seu chicote que ele é mais conhecido.

A lenda nasceu na França medieval e se espalhou pelas regiões rurais no sul do país, chegando até os dias de hoje. Sua bizarra origem envolve o que hoje em dia poderia ser compreendido como um assassino em série. O Papai Açoitador era um sujeito amargo e perverso que andava pelo campo em busca de vítimas, de preferência crianças. Ele teria drogado e cortado a garganta de três crianças ricas que ele encontrou em suas andanças. Mas não para por aí, piora muito! Após matar suas vítimas, ele as desmembrava e colocava os restos em grandes barris de cerveja para que não pudessem ser encontradas. Além desses atos imensamente perversos, a figura era conhecida pelos seu sadismo: ele sempre carregava um chicote de couro curtido ou em algumas versões um feixe de galhos secos que usava como arma.

Segundo a lenda, São Nicolau descobriu o que o sujeito andava fazendo, ressuscitou as crianças assassinadas como um milagre e como punição ordenou que Père Fouettard se tornasse o seu ajudante. vestido com um manto esfarrapado e sujo, com correntes nos pulsos e tornozelos, coberto de fuligem e usando uma barba desgrenhada, o Açoitador anda ao lado do Santo e ajuda na distribuição dos presentes no dioa de São Nicolau (em 6 de dezembro). Ele no entanto se solta de tempos em tempos e vai atrás de crianças que foram más ou que se comportaram de uma maneira desagradável. Ele pode então dar a elas pedaços de carvão ao invés de presentes, mas é mais provável que distribua chicotadas. Com o aval de São Nicolau, ele também costuma prender crianças más em gaiolas de vime que carrega nas costas. 

Père Fouettard apareceu nos anos 1930 nos Estados Unidos com o nome de "Father Flog" (Pai Açoite) ou ainda "Spanky" (Espancador), ao lado de uma contraparte feminina "Mother Whip" (Mãe Chicote), O amável casal procurava as crianças más cujos nomes estivessem numa lista que carregavam consigo. Aparentemente, alguns pais forneciam o nome dos próprios filhos para ensinar a eles uma lição quando não se comportavam. A ideia é que eles na última hora eles "dessem uma chance para as crianças se comportarem". Segundo uma lenda urbana, uma criança teria ficado tão aterrorizada com a perspectiva de ser levada pelo casal que se suicidou atirando-se num rio e morrendo afogada.  

ZWART PIET
Holanda


Na Holanda uma figura estranha e maldosa espreita na véspera do Natal. As tradições natalinas nos Países Baixos afirmam que esse espírito costuma roubar os presentes das crianças, assustá-las com brincadeiras geralmente violentas e machucar os bichos de estimação. Por vezes ele também seria o responsável por sequestrar bebês e levá-los para longe. A criatura em questão atende pelo nome de Zwart Piet e é uma aparição que até hoje causa temor nos pequeninos.

O Zwart Piet seria um tipo de duende com a pele negra como carvão, lábios e olhos vermelhos e um sorriso maligno com dentes pontiagudos. Ele se veste com roupas de seda ou veludo, com guizos e sinetes costurados que fazem um som característico quando ele está próximo. Há também um cheiro de enxofre que remonta ao fato dele supostamente ter origem demoníaca.

Segundo a tradição em algumas áreas rurais, as crianças para ganhar o presente de Natal devem confessar tudo de errado que fizeram no ano. Se elas omitirem algum detalhe, o Zwart Peit vai aparecer e pegar os presentes de volta, levá-los para a floresta e atear fogo neles. Se a criança mentir, a punição pode ser ainda pior, o espírito pode colocar a criança num saco e fazer ela desaparecer para sempre. A ideia com certeza é deixar as crianças tão temerosas que confessarão qualquer coisa.

Nos últimos anos, o personagem se tornou o centro de grande polêmica sendo apontado como um estereótipo racista arcaico. Os atores que geralmente personificam o Zwart Piet (literalmente Pedro Preto) tem o rosto pintado com tinta preta. Muitos lugares abandonaram a tradição de ter esse personagem marchando ao lado de Papai Noel no Desfile de Natal. Algumas organizações pediram que o personagem fosse removido dos festejos por considerá-lo extremamente ofensivo. Aqueles que defendem a presença dele alegam que a lenda do Zwart Piet é muito antiga e que ele sempre esteve presente nas tradições natalinas de antigamente. Todo ano, a presença dele se traduz em debate e discussão na Holanda.

MARI LWYD
País de Gales


Na véspera de Natal, a estranha e fantasmagórica figura do Mari Lwyd pode ser vista vagando pelos campos e estradas no interior do País de Gales. A criatura é um tipo de espírito profundamente associado às tradições pagãs que foi incorporada às festas cristãs, em especial o Natal.

Segundo o folclore, essa criatura é um tipo de espírito com o corpo imaterial semelhante a uma nuvem de vapor ou mortalha cinzenta. Ela flutua no ar delicadamente sem produzir nenhum som, exceto um leve tilintar de sinetes que estão amarrados ao redor de seu pescoço. A principal característica de Mari Lwyd é que sua face é o crânio descarnado de um cavalo. Por vezes ela tem chifres de boi, alce ou cervo e em outras versões seus olhos reluzem com um fulgor sobrenatural.

Apesar de sua aparência assustadora, a Mari Lwyd não é maligna. Trata-se de um espírito que domina as estradas e caminhos, que representa também a fertilidade e as mudanças necessárias para o crescimento. Dizem que onde a entidade é avistada, haverá uma grande mudança, geralmente benéfica, algo envolvendo sorte, riqueza ou a realização de aspirações particulares.

A partir de 1800, a Lenda passou a ser associada ao Natal, com a interpretação de que a "mudança" seria a introdução da Fé Cristã em Gales. A tradição se tornou muito comum e grupos de pessoas começaram a fazer paradas na noite de Natal levando uma representação da Mari Lwyd pelas estradas de vilarejo em vilarejo. Nas casas era costume pendurar na porta de entrada um crânio de cavalo ou uma crina como forma de atrair o favor da entidade. 

Apesar de ter sido condenada por alguns sacerdotes e até proibida, a tradição retornou na virada do século e após 1935 passou a ser realizada anualmente com grande participação popular. Até hoje o desfile da Mari Lwyd é uma das datas mais aguardadas do ano, atraindo turistas e moradores que acompanham a representação e esperam ser abençoados pela estranha figura. 

STRAGGELE
Noruega


No folclore de vários países existe a noção de que espíritos ou monstros surgem nessa época do ano para levar as crianças más ou que não se comportaram. Mas o que acontece com essas crianças depois de serem carregadas?

Na Noruega, existe uma explicação para o paradeiro dessas crianças e o destino delas é nada menos do que bizarro: Elas se transformam em monstros chamados Straggele.

Os Straggele são uma espécie de bicho-papão do folclore local, presente também na Finlândia e Dinamarca. Geralmente eles são retratados como feras selvagens, cobertas de pelo, presas afiadas, orelhas pontudas e chifres no topo da cabeça. Eles são extremamente malignos e geralmente aparecem nos vilarejos antes da chegada do Pai Natal, que traz os presentes. O objetivo deles é saber se há crianças que se comportaram de forma inadequada para que eles possam levá-las consigo. Os Straggele perguntam aos pais como seus filhos se comportaram, se passaram de ano e se costumam responder com grosserias. Se os pequenos tiverem feito qualquer uma dessas coisas, os monstros podem, à pedido dos pais, levá-los para seu covil.

Segundo a lenda, algumas das crianças são prontamente devoradas na ceia de Natal das criaturas, mas outras tem um destino ainda pior. Elas são colocadas em uma cova rasa e enterradas perto do covil dos monstros. Os Straggele então urinam na cova toda noite e isso faz com que a criança sofra uma lenta transformação. No Natal seguinte, ela irá deixar a cova em que foi enterrada, tendo assumindo a forma bestial de um Straggele. Ela não lembra que era uma criança e se torna um monstro maligno.

A lenda dessas criaturas é muito antiga e remonta aos festejos pagãos, tendo sido incorporada às tradições natalinas. Para evitar a fúria desses monstros, também se costuma deixar os restos da ceia em um pratinho no lado de fora da casa para que eles possam comer. Em algumas partes, onde a lenda ainda é conhecida, é comum que pessoas vestindo fantasias batam na porta das casas onde há uma reunião familiar para pedir comida. A tradição manda dar ao menos um pouco para esses visitantes.

HANS TRAPP
(Alemanha)


Segundo a lenda, Hans Trapp é um espírito maligno que assume o corpo de palha de um espantalho para assombrar as Festas de fim de ano. Ele desperta na Noite de Natal e é atraído por discussões, disputas e bate-boca em família, e se tal coisa acontecer durante a Ceia, pode ter certeza que o monstro vai aparecer para punir todos os envolvidos.

A tradição diz que em vida, o fantasma pertenceu a um rico e amargo senhor de terras chamado Hans von Troth que nunca viu necessidade de constituir família ou compartilhar o que tinha. Quando já estava velho, ele perdeu sua fortuna e desesperado recorreu ao Diabo, firmando um pacto para continuar rico e poderoso. O demônio atendeu seu pedido, mas com a condição de que ele deveria venerar as trevas e continuar praticando magia negra. Quando um Padre ficou sabendo das coisas horríveis com que Hans estava metido, o excomungou, e a população da cidade o expulsou. 

Hans conseguiu escapar e se refugiou numa floresta escura onde passou a viver. Lá ele construiu para si uma cabana feita de gravetos que recolheu e se tornou cada vez mais maligno, eventualmente praticando até atos de canibalismo. Em certa ocasião, sequestrou um menino de 10 anos com o intuito de devorá-lo, mas antes que pudesse fazê-lo um raio vindo do céu o fulminou. Os aldeões encontraram o menino e os restos carbonizados de Hans. Decidiram então transformá-lo em um espantalho, juntando palha aos seus ossos escurecidos e usando-o para afugentar os pássaros, atitude da qual viriam obviamente a se arrepender.

O fantasma do satanista supostamente passou a ocupar os restos do espantalho e na noite de Natal ele desce da sua estaca para espreitar as casas das pessoas. Quando ouve alguma discussão ou encontra uma desavença, Hans Trapp faz uma visita aos envolvidos. A lenda claramente tem como intuito fazer com que as celebrações e reuniões natalinas ocorram sem nenhuma desavença.

Há versões em que Hans Trapp também assume a forma de corvo, gralha ou de um falcão. Ele é um espírito maligno e desagradável que existe apenas para espalhar sua maldade além túmulo. A melhor maneira de afugentá-lo é ter uma noite de Natal calma e tranquila na companhia da família. 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Feliz Natal Assustador - Espíritos Natalinos Bizarros


O Natal está chegando e em todo canto as crianças estão escrevendo suas cartinhas para o Papai Noel, esperando receber seus presentes - isso é, se tiverem sido boas ao longo do ano. Mas não importa o quão estranho pareça receber presentes de um homem gordo alegre que conduz um trenó puxado por renas voadoras, Papai Noel não é o personagem mais bizarro ligado ao folclore de Natal.

Histórias passadas de pai para filho e embelezadas com a narrativa ao longo dos séculos nos deram um elenco de personagens bizarras. Alguns deles são festivos e simpáticos, outros parecem ter saído de um mundo de pesadelos e horrores bastante particulares. Como explicar a presença de bestas, demônios, animais fantásticos e espíritos entre as entidades que compõem a tradição natalina em vários lugares do mundo? 

A seguir, temos algumas lendas de Natal que provam que as Boas Festas são diferentes em cada lugar do mundo e em alguns, elas podem ter um toque de terror e ser bem assustadoras...

O BODE DE YULE 
Suécia


Em alguns lugares, Papai Noel não conduz um trenó puxado por renas como nas outras partes do mundo. Na Suécia, por exemplo, seu animal de estimação é um bode. Mas não um bode comum! O Yule Goat, como ele e conhecido, é uma criatura mágica. 

Muito maior que um bode comum, a besta é imensa, com uma pelagem espessa, enormes chifres dourados com sinos pendurados nele e olhos como duas brasas vermelhas brilhando através da noite. O Bode de Yule é uma visão assustadora, sobretudo pelo potente bramido que segundo as lendas é tão alto que pode ensurdecer as pessoas que o ouvem muito perto. E de fato, o som é usado para avisar que o bom velhinho está à caminho de sua missão, mas também para assustar possíveis ladrões que possam se interpor no seu caminho. Ah sim, ele também tem a estranha faculdade de andar nas patas traseiras e falar como uma pessoa normal.

É possível que a lenda seja reminiscente da mitologia nórdica. Thor, o filho de Odin, é um dos deuses favoritos do Panteão Escandinavo, ele conduzia uma charrete mágica puxada por dois imensos bodes que o levavam através do céu. A Aurora Boreal, segundo os mitos era formada quando o Deus guiava o veículo pelo céu rasgando a abóboda celeste. O mito parece ter sido adaptado e ao invés de trazer relâmpagos e trovão, o Bode de Yule ajuda Papai Noel, ou Pai Noel a levar os presentes que são distribuídos para as crianças que se comportaram. Mais do que ser apenas um animal de tração, o Bode natalino é uma fera feroz, segundo as lendas ele se alimenta dos relâmpagos e são eles que concedem o poder de voar pelos céus cinzentos.

O Bode é um animal comum na decoração natalina na Suécia, quase tão popular quanto o próprio Pai Noel. A tradição diz que dá sorte colocar ao menos uma miniatura do bode dentro de casa para o Natal. Por outro lado, existe a lenda de que representações do Bode de Yule tem o estranho hábito de pegar fogo espontaneamente. Todo ano, na cidade sueca de Gavle, é montado uma figura de um enorme Bode de Yule e todo ano alguém coloca fogo nele. Recentemente, as autoridades locais tentaram deter a tradição incendiária substituindo o material comum de confecção do bode, palha seca, por algo  menos inflamável. De nada adiantou, o Bode foi incendiado e isso se converteu em uma espécie de tradição local. Todo ano, as pessoas disputam quem vai conseguir colocar fogo no Bode e dizem que tal coisa dá sorte ao responsável.

FRAU PERCHTA
Alemanha


Bruxas são parte do folclore da Europa, em especial na Alemanha que tem uma longa tradição de velhas extremamente temidas. Comum também nos Alpes Austríacos, Frau Perchta é das criaturas mais vis e assustadoras do folclore. Sua origem remonta às religiões pagãs que dominavam a região muito antes da chegada do Cristianismo. As lendas são tão antigas que já foram encontradas placas de pedra com inscrições de proteção que funcionariam para afastar essa presença soturna milhares de anos atrás. De alguma forma, Frau Perchta conseguiu chegar aos tempos modernos e estabelecer um papel nas festas de natal, e esse papel não é nada menos do que horrível.

A bruxa em si é retratada como uma velha de aspecto maligno e semblante animalesco. Sua expressão lembra a de um grande rato, ou ainda, de uma raposa. Seu nariz longo mais parece um focinho e os pelos que nele crescem são pretos como bigodes de rato. A velha tem o rosto cheio de rugas e vincos, uma face feia e um hálito desagradável provocado pela alimentação que inclui apenas carne.  Seus cabelos brancos da cor de giz são longos, crescendo desgrenhados e tampando sua cara feia, ou descendo até a cintura magra. A velha usa sempre um manto longo e preto e ao caminhar pela neve, não deixa rastro de seus passos. O objeto mais temido ligado a Frau Perchta é sua faca, afiada e medonha que ela leva escondida nas dobras do manto. A faca é tão afiada que pode cortar madeira e pedra sem perder jamais o fio.

A lenda é muito comum nos dias que antecedem o Natal, época em que Frau Perchta deixa o seu covil no fundo de uma caverna escura nas profundezas da terra. A velha vaga pelos campos e sempre que acha uma criança oferece a ela um presente modesto. Se a criança se comportar bem, agradecer e demonstrar educação, ela pode dar um outro presente mais valioso. Mas se a criança se negar a receber o presente ou falar mal dele, ela irá oferecer em troca a lâmina de sua faca.

Em outra versão do mito, Frau Perchta deixa o seu esconderijo com o propósito único de encontrar crianças que foram más durante o ano que passou e puni-las. Ela é uma espécie de bicho papão extremamente maligno.

Frau Perchta possui um tear e nas linhas que ela vai tecendo consegue ler o nome das crianças que se comportaram mal. Ela então visita as casas desses pestinhas, levando nas costas um saco de palha e sua inseparável faca. Ao entrar na casa silenciosamente, ela espera a criança dormir para atacar. Usa então a lâmina para rasgar a barriga das crianças más e em seguida remover suas tripas. Então retira a palha do saco e preenche o espaço vazio, costurando o corte com linha. Os pais, no dia seguinte, encontram a criança empalhada, geralmente numa posição de extremo pavor. 

Não é por acaso que em alguns lugares onde a lenda é popular aqueles que comem demais na ceia natalina são chamados de "cheios de palha". Ficar empanturrado nesses lugares não é algo bom e dizem, dá azar.

KALLIKANTZAROI
Europa Oriental


O Kallikantzaroi e outros espíritos semelhantes são uma lenda muito difundida no folclore dos países da Europa Oriental, em especial Hungria, República Tcheca, Croácia e Eslovênia. A lenda se adapta a cada região de uma forma, com suas próprias particularidades, mas alguns elementos são comuns em todas as partes. 

Essas criaturinhas desagradáveis são semelhantes a diabretes ou carniçais com um corpo muito magro, pernas e braços compridos e orelhas pontudas. Por vezes são descritos como tendo feições de ratos, patas cabeludas e um rabo fino de ratazana. Eles emitem um ruído característico de roedores e quando alguém ouve na véspera de natal esse som vindo através das paredes ou num porão, sabe que sua casa está infestada. Eles não são especialmente perigosos, mas gostam de roubar coisas, comer o que está na dispensa e podem ser cruéis com animais de estimação e crianças pequenas.

Os Kallikantazaroi passam o ano inteiro nos seus covis subterrâneos tramando o fim do mundo. Seu plano é destruir a Árvore da Vida serrando as raízes e o tronco para que ela seja derrubada. Segundo os mitos pagãos, a Árvore da Vida é responsável pela fecundidade do solo e pelos campos se recuperarem após o rigor inverno. Se a Árvore for destruída, as pessoas certamente irão sofrer e passar fome.

Diz a lenda que os Kallikantazaroi são muito curiosos e que são atraídos pelo som das músicas natalinas, pelo cheiro dos pratos servidos na ceia e pela movimentação das pessoas. Eles então abandonam momentaneamente o seu trabalho para ver o que está acontecendo. Isso permite que a Árvore da Vida se regenere e evita sua completa destruição. O mito reforça a necessidade das festas de confraternização, da manutenção dos costumes e de toda simbologia ligada ao Natal.

É claro, a lenda é muito mais antiga, remontando aos tempos pré-cristãos, quando celebrações eram realizadas com o intuito de salvar a Árvore da Vida da depredação dos pequenos diabinhos. 

Para aqueles que querem saber o que fazer se a sua casa for infestada por Kallikantazaroi, a solução é simples. Como ocorre com muitos diabinhos nas lendas, eles são compelidos a contar coisas, então uma das soluções é esparramar grãos ou palitos pelo chão no lugar onde as criaturas se instalaram. Eles então começam a separar e contar, mantendo-se ocupados pelos dias que restam até o Natal, quando resolvem ir embora. Outra solução é colocar uma vassoura na porta ou ainda pendurar uma mandíbula de porco na maçaneta. Uma vez que eles costumam entrar pela chaminé das casas, pode-se acender o fogo todos os 12 dias que antecedem o Natal para que qualquer diabrete tentando entrar seja incinerado. Após o Natal, a fuligem produzida nesses dias é dispersa ao redor da casa, como uma medida protetora para afastar os Kallikantazaroi no ano seguinte.

LA BAFANA
Itália


Mais uma bruxa ligada ao Natal. A Bafana é uma velha de aparência horrível que espreita as cidades e vilarejos na véspera das festas de final de ano. Ela usa um manto preto e tem um chapéu pontudo na cabeça. Seus cabelos são muito escuros, assim como os seus olhos que mais parecem dois pedaços de carvão.

Quando chega o mês de dezembro, a Bafana escolhe uma casa, de preferência onde haja crianças, e as observa por vários dias esperando uma oportunidade para entrar. Ela costuma usar as chaminés como acesso para o interior das casas e uma vez dentro dela se instala permanecendo escondida. Na véspera do Natal, a Bruxa irá julgar se a criança se comportou e se ela merece ganhar presentes ou ser punida.

É uma tradição pendurar meias perto da lareira para que a Bafana as encha com guloseimas ou presentes para as crianças que se comportaram. Mas aquelas que foram ruins recebem apenas um pedaço de carvão. A simbologia do carvão está relacionada aos costumes pagãos de que no final do ano ele era usado para assar os sacrifícios. Em algumas histórias particularmente aterrorizantes, a Bafana pode sequestrar as crianças que foram muito más e levá-las consigo para seu covil. Lá, ela as mata, enche com temperos e guisado e cozinha num fogão com carvão.

A lenda ancestral está ligada aos mitos comuns de feiticeiras que são ao mesmo tempo temidas e respeitadas. Embora seja capaz de atos homicidas, a Bafana também é tida como uma personagem que ajuda as pessoas em dificuldade, oferecendo aconselhamento, conforto e cura. Ela era invocada sobretudo por mulheres grávidas para que lhes proporcionasse um parto seguro e que resultassem em bebês fortes. Mencionar o nome da Bafana durante o parto era uma maneira de proteger a mãe e o recém nascido conforme as tradições rurais da Itália.

De acordo com uma lenda muito difundida, a Bafana foi visitada pelos Reis Magos quando eles estavam à procura do bebê Jesus. A Bafana ofereceu hospitalidade aos Reis e os deixou descansar na sua casa. Na manhã seguinte, eles a convidaram para acompanhá-los, mas a Bafana declinou duvidando que o bebê que eles iam visitar era o Filho de Deus. Ela teria se arrependido e por isso decidiu distribuir presentes às crianças na véspera do Natal. (A parte da punição no entanto, não era tão necessária).

Como vários outros personagens natalinos, a Bafana recebe um suborno para fazer uma visita amistosa. É comum em algumas partes da Itália deixar um cálice de vinho perto da janela ou no batente da porta para que a Bafana beba. A crença é que, se ela estiver "alegre com a bebida" irá simplesmente deixar o presente e ir embora sem fazer nenhum mal.

PAVUCHKY
(Ucrânia)


Por estranho que possa parecer, o maior símbolo do Natal na Ucrânia não é o Papai Noel, mas... Aranhas.

Pavuchky é uma tradição muito antiga que se espalhou pela Ucrânia e se tornou parte do Natal daquele país. As Aranhas Natalinas em questão são enormes, aranhas de coloração pálida que tecem imensas teias cinzentas. Em algumas versões, as Pavuchky são feitas de cristal ou vidro muito delicado, por vezes coloridas, mas na maioria das vezes azuis ou brancas como a neve. A teia que elas criam é delicada, mas extremamente resistente, capaz de resistir ao vento e às nevascas sem arrebentar. As pavuschky são animais mágicos que figuram no folclore ucraniano e aparecem em várias fábulas infantis, sempre como seres benevolentes e que protegem as pessoas mais fracas.

Enfeites na forma dessas aranhas são pendurados nas Árvores de Natal da mesma maneira que penduramos as bolas e luzes pisca-pisca. Além das aranhas, é muito comum espalhar linhas prateadas no formato de teias que são pendurados na árvore. A teia é igualmente parte do folclore ucraniano, está presente em contos que mencionam fios se transformando magicamente em prata garantindo riqueza para as pessoas que não os arrebentam e que protegem as aranhas que os criam.

Outra versão da lenda, envolvendo as Pavuchky é que as teias são mágicas. No Natal, fantasmas e espíritos malignos podem vagar por aí, e estes frequentemente são atraídos pelas reuniões familiares. Uma maneira de evitar que eles façam o mal é espalhar as teias que teriam a faculdade de atrair e capturar essas entidades. Uma vez capturados os espíritos são lentamente purificados pelas propriedades sagradas da teia de prata ou devorados pelas Pavuschky. As tradições atestam que no Dia de Reis, as Teias devem ser removidas, mas primeiro precisam ser purificadas com água benta para eliminar qualquer presença maligna que ainda esteja ali.

As Aranhas de Natal são tão importantes que por vezes ganham espaço até em Igrejas e prédios públicos. De fato, não ter teias ou ao menos uma aranha em casa é tido como mau agouro.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

A Rainha Vermelha - Uma Tumba Maia Oculta e sua misteriosa ocupante


O México é sem dúvida um dos lugares mais fascinantes do mundo para aqueles que tem interesse em ruínas antigas.

Entre as incontáveis ruínas deixadas pela misteriosa Civilização Maia, um local que realmente se destaca é a cidade de Palenque. Localizada no atualmente moderno estado mexicano de Chiapas, em meio à densa selva da bacia do rio Usumacinta, ela já foi chamada de Lakamha pelos maias. Seu nome significa "Água Grande" devido ao rio e às cachoeiras próximas, que criam uma visão majestosa.

Considerada uma das maiores Cidades Estado e uma das mais poderosas e ricas do México pré-colombiano, Lakamha era um lugar com praças espaçosas, templos e palácios opulentos, extensos edifícios administrativos e um total de três grandes pirâmides, a maior delas chamada de Pirâmide das Inscrições, construída para conter os restos mortais de K'inich Janaab 'Pakal, mais conhecido como Pakal, o Grande, que governou de 615 DC até 683 DC. Ele foi um Grande Rei, o Governante que sentou no trono na época do apogeu da cidade e que segundo alguns foi apontado diretamente pelos deuses do céu para governar. A mais conhecida imagem de Pakal até hoje fascina os curiosos, sobretudo por mostrar o Rei numa posição que sugere estar conduzindo um veículo aéreo. Muitos teóricos dos Deuses Astronautas consideram a imagem um indício de tecnologia desconhecida. 

Considerando o quão impressionante é todo o lugar, as ruínas de Palenque se tornaram um paraíso para arqueólogos, mas ela também contêm estranhos mistérios que ainda não compreendemos. Um destes é uma tumba perdida de uma enigmática figura da história maia conhecida apenas como "A Rainha Vermelha".


A tumba poderia ter continuado perdida para sempre se não fosse por um golpe de sorte. Sua descoberta casual foi realizada pela arqueóloga mexicana Fanny Lopez Jimenez. Em 1994, Jimenez estava em um templo chamado Templo XIII, bem ao lado da imponente Pirâmide das Inscrições, a fim de fazer um trabalho rotineiro de restauração nas escadas. De fato, era uma tarefa bastante comum, e Jimenez não esperava fazer nenhuma descoberta significativa, contudo seria exatamente isso o que aconteceria. Enquanto fazia seu trabalho, ela percebeu uma rachadura peculiar sob a escada de pedra que parecia ter sido em algum momento do passado coberta com alvenaria. Uma inspeção mais cuidadosa mostrou que a rachadura levava a uma passagem secreta que por sua vez conduzia para a escuridão e mais além, até uma porta lacrada. O templo havia sido explorado anteriormente, mas ninguém havia percebido aquele acesso. Ao perceber que estava diante de algo novo, Jimenez mal conseguia conter a própria excitação. Ela informou seu chefe, o eminente arqueólogo Arnoldo Gonzales Cruz, do Instituto Nacional de Antropologia e História do México que imediatamente foi averiguar a descoberta. 

Ali se iniciaria uma jornada através de um território inexplorado da História Maia.

Uma equipe foi formada e esta trabalhou meticulosamente para remover a alvenaria que estava bloqueando a descoberta. Algumas horas depois, o trabalho revelou a passagem secreta bloqueada há séculos. Haviam muitos destroços adiante, obstáculos que foram removidos cuidadosamente, cada um deles uma descoberta por si só.  

Mais adiante, havia escuridão e mistérios insondáveis. 


Avançando pela passagem secreta, o grupo se deparou com um corredor ladeado por blocos de calcário meticulosamente cortados e empilhados num trabalho de engenharia notável. Ao longo desse acesso estreito encontraram três câmaras, duas das quais estavam totalmente abertas e não continham nada além de sinais de que haviam sido usadas no passado. Rituais religiosos haviam acontecido ali, como evidenciavam os objetos achados e as inscrições nas paredes. No entanto, era a terceira câmara que lhes reservava a maior surpresa. Ela se encontrava perfeitamente lacrada e inteiramente preservada como estava originalmente, mais de mil anos atrás. A câmara encontrava-se totalmente oculta, como se alguém desejasse escondê-la pela eternidade. A equipe, a essa altura, não tinha certeza de como abrir essa passagem secreta. Simplesmente arrebentar a parede tinha o potencial de danificar quaisquer tesouros inestimáveis ​​que estivessem do outro lado. 

Foi finalmente decidido que fariam um pequeno buraco, grande o bastante para passar uma câmera na ponta de um fio e espiar o que havia lá dentro. Assim, quando ela foi atravessada, viram algo inesperado. Era uma tumba! Não apenas uma tumba antiga, mas um espaço totalmente intacto 
medindo cerca de 4,5 por 2,5 metros, sem adornos, mas contendo um enorme sarcófago de calcário ocupando a maior parte do aposento. 

A descoberta era incrível e eles precisavam ter acesso ao interior. Ao longo de dias, removeram cada bloco da parede e tiveram a visão horripilante de dois esqueletos esparramados no chão, o de um menino e outro de uma mulher adulta, ambos com sinais de ferimentos horríveis, consistentes com um assassinato sacrificial. Os crânios haviam sido arrebentados por um único golpe de uma clava cerimonial, quando eles estavam ajoelhados diante do sarcófago. Eles eram os servos escolhidos para continuar a servir seu mestre no outro mundo. A morte não lhes foi imposta, eles a aceitaram de bom grado, uma enorme honra conforme os costumes maias. Perto dos dois esqueletos foram encontrados ossos e dentes, alguns dos quais haviam sido incrustados com jade por razões desconhecidas.


Era bastante óbvio que quem estava no sarcófago tinha sido alguém importante em vida, então foi com muito cuidado que eles começaram o árduo processo de erguer a pesada tampa de calcário maciço. Quando esta foi finalmente removida, descobriu-se que o interior do sarcófago continha uma máscara funerária de jade incrustada de joias, emanando um brilho verde vivo. Haviam ainda vários fragmentos de objetos de madrepérola e jade, colares, anéis, braceletes, quatro lâminas de obsidiana e uma estatueta bastante detalhada. Eram artefatos que só poderiam ter pertencido a alguém de alta estirpe. 

Os objetos adornavam os restos de uma mulher, alguém de grande importância para merecer todos aqueles cuidados e honrarias. Outro detalhe realmente estranho é que todo o interior do sarcófago havia sido generosamente revestido com um pó vermelho brilhante e fino como grafite. Mais tarde, uma análise do material mostrou se tratar de sulfeto de mercúrio, uma substância também chamada de cinábrio, que era usada para pintar obras de arte. Não está claro por que uma quantidade tão generosa dessa substância foi espalhada sobre tudo, mas é provável que fosse uma demonstração de status e poder. O cinábrio era caro e uma quantidade como aquela constituía uma enorme extravagância. Mesmo os ossos estavam pintados de vermelho vivo. A mulher naquela tumba era alguém de reputação e embora sua real identidade continue sendo um mistério, ela recebeu dos arqueólogos o apelido de "A Rainha Vermelha".

A análise dos restos mortais da Rainha Vermelha revelou que ela media cerca de 1,52 m de altura, que na época de sua morte tinha entre 50 e 60 anos e que seus dentes eram muito bons, apresentando pouco desgaste, sugerindo seu status nobre. Não havia como determinar a causa da morte, mas nada apontava que esta fosse decorrente de violência. A análise de DNA realizada nos meses posteriores mostraria que ela tinha descendência maia e que não possuía nenhuma relação de sangue com o Rei Pakal, enterrado na enorme pirâmide adjacente, embora ela estivesse viva na época de seu governo. Considerando esses detalhes, e o fato de que ela ter sido enterrada ao lado da Pirâmide das Inscrições, especula-se que ela possa ter sido esposa de um Rei, possivelmente do próprio Pakal, o Grande.  

No entanto, a falta de marcações ou inscrições para identificá-la na própria tumba, constituía  um grande mistério. Os Maias faziam enorme esforço para identificar as pessoas que eram sepultadas, ainda mais em tumbas tão imponentes. De fato, identificar um morto era uma maneira de preservar sua memória e fazer com que ele se sentisse confortado no além. Segundo a tradição, cada vez que o nome do morto era mencionado, este se sentiria feliz. Não haver nenhum nome discernível na tumba faz com que os arqueólogos fiquem ainda mais curiosos quanto a origem da mulher na tumba.


Alguns acreditam que a ausência de uma identificação possa ser uma forma de punição imposta a ela. Talvez até uma maldição que a condenou a partir para o mundo dos mortos sem que a sua identidade seja reconhecida, uma enorme punição. Os especialistas se dividem quanto ao motivo para tal punição mas sugerem que na Civilização Maia, supostas feiticeiras eram punidas dessa maneira. Teria sido a misteriosa Rainha Vermelha uma feiticeira? Teria ela cometido crimes que lhe valeram essa punição?    

Infelizmente, o que se tem até o momento são meras especulações. A Arqueologia trabalha com indícios para restaurar a história, como um mosaico partido em milhares de cacos. Por vezes, no entanto, algumas peças se perdem para sempre. O tempo poderá dizer quem foi essa misteriosa mulher, mas por enquanto ela permanece um espectro sem nome de um passado distante. 

A punição se mantém, seja ela quem for.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

A Infame Roda do Despedaçamento - Uma forma bizarra de execução do passado


A morte é uma das únicas certezas que temos ao longo da nossa vida, e a única dúvida é como e quando vamos partir. Essa é uma preocupação real de muitas pessoas que de fato, perdem o sono temendo uma morte lenta e dolorosa, quem sabe provocada por uma doença, acidente ou condições debilitantes. Mas ao menos, nos dias atuais, não precisamos nos preocupar com certos tipos de morte que afligiam as pessoas no passado em períodos muito menos tolerantes marcados por extrema crueldade.

Conforme relatado no Journal of Archaeological Science, recentemente, um grupo de arqueólogos encontrou os restos mortais de um homem que teve uma das mortes mais pavorosas da história. Os ossos, achados nas proximidades de uma catedral, foram examinados por pesquisadores da Universidade de Milão, na Itália. O esqueleto mostrava sinais inequívocos de tortura e de uma prática de execução apavorante.

Segundo os responsáveis pela descoberta, o rapaz deveria ter algo entre 17 e 20 anos de idade no momento em que foi assassinado, provavelmente no século XIII. O relatório publicado recentemente conta que em um primeiro momento foram percebidos sinais de ferimentos simétricos ao longo das pernas e braços da vítima, o que logo levou os pesquisadores a concluir que ele havia sofrido algum tipo de violência intencional. Mas as peculiaridades das lesões, bem com a gravidade delas, fizeram com que os autores do estudo sugerissem que o rapaz, na verdade, havia sido executado com um método lendário comumente conhecido como "Roda" ou ainda "Roda do Despedaçamento". 

Para aqueles que não estão familiarizados com tal coisa, talvez seja o momento de dar um passo atrás e parar de ler aqui. Os detalhes sobre a Roda não são nada agradáveis e os elementos que constituem essa prática abominável constituem combustível para pesadelos. 


Ainda conosco? Curioso para saber mais? Então vamos lá...

Não há como dizer de maneira simples. A Roda era algo terrível, uma das coisas mais medonhas concebidas pelo homem e supostamente praticada como punição em várias partes do mundo antigo até meados da Idade Média. Contudo, tudo indica que a prática ainda era prevista no Código de Leis Penais da Bavária até 1831, o que não apenas é bizarro, como incrivelmente chocante. 

Embora a execução na roda seja mencionada em vários documentos, é bastante raro encontrar restos de vítimas que passaram por esse suplício. Por muito tempo, os historiadores chegaram a se dividir à respeito da real utilização do método, acreditando que ele poderia ser apenas uma forma de execução sugerida, mas cuja aplicação prática não passava de lenda. Contudo, a partir do século XIX, arqueólogos começaram a encontrar restos humanos que sugeriam a utilização da roda como método de execução.

O conceito da Roda parece ter surgido na Terra dos Francos, no século VI. São Gregório, Bispo da cidade francesa de Tours descreveu a utilização da roda com forma de execução para bandidos de estrada. A prática descrita por Gregório envolvia amarrar a vítima e deixá-la estirada em uma estrada para que fosse atropelada por uma carroça pesada. A punição ao que tudo indica, refletia uma forma de compensação,  para fazer um criminoso sofrer o mesmo que este havia imposto a uma vítima. Uma vez que o método não era nada prático, adaptações foram surgindo para tornar a execução mais satisfatória.

Na França medieval, a Roda era usada de forma diferente e ainda mais bárbara. Os condenados a esse tipo de execução eram em geral ladrões de estrada que haviam cometido assassinato contra viajantes ou peregrinos. A execução era reservada também para assassinos de crianças, estupradores e em alguns casos filhos que matavam os próprios pais. Na França medieval, o martírio na roda podia ser abreviado pelo carrasco à pedido de um juiz ou do público que decidiam quando a vítima havia sofrido o suficiente. Nesse caso, o executor se valia de um grande porrete ou então de uma marreta usada para desferir um potente golpe contra o peito do réu. Esse golpe era tratado como uma forma de terminar com o sofrimento infligido, por isso recebeu o nome Coup de Grace (Golpe de Misericórdia).  Alternativamente, em alguns lugares da França, o indivíduo podia receber o benefício do "retentun" que consistia em um estrangulamento de misericórdia, realizado para abreviar seu sofrimento na roda.


A prática da Roda foi usada mais extensivamente no Sacro Império Romano Germânico. Essa modalidade de execução era reservada para os criminosos que eram culpados de crimes que causavam grande comoção e agitação social. Por vezes, um Juiz podia condenar um réu a um outro tipo de execução, mas as população do local onde ocorreu o crime podia pleitear para que a punição fosse comutada para a Morte na Roda. A Corte de Zurique ficou conhecida como "A Corte Sangrenta" por conta das várias sentenças de execução alteradas para adotar o martírio na Roda à pedido da população local. Nos registros legais, há inclusive casos de roubo simples punidos com a utilização da roda, uma medida no mínimo drástica que demonstra um certo sadismo por parte dos habitantes de Zurique no século XIV. Contudo, estes eram a exceção; as execuções na Roda eram via de regra reservadas a pais que matavam seus filhos, mães que afogavam seus bebês ou filhos que assassinavam os pais de maneira torpe.

A execução na Roda foi importada por vários povos e levada para diferentes partes da Europa. Na Escócia há pelo menos um caso famoso envolvendo um criado chamado Robert Weir que foi sentenciado a ser "quebrado na roda" depois de ter assassinado o patrão à pedido da esposa deste em 1603. No Império Habsburgo e na Rússia Imperial, a Roda era usada como forma de execução reservada aos revoltosos e revolucionários que atentavam contra os governantes. Na Suécia, um revoltoso chamado Johann Patkul foi sentenciado a morrer na roda depois de ser condenado por traição contra o rei Charles XII. Mesmo nos Estados Unidos, durante o período colonial, a roda chegou a ser empregada para punir escravos revoltosos. Em 1730, onze escravos da Louisiana foram condenados a serem "quebrados na roda" depois de se revoltarem e matarem seus patrões e atear fogo numa plantação.

A roda posteriormente começou a ser abolida na maioria dos países, considerada uma forma de execução arcaica e desnecessariamente cruel. Na prática, contudo, ela continuou a ser praticada na Prússia e na Áustria, sobretudo contra criminosos violentos acusados de assassinatos que causavam repercussão. A última execução de que se tem notícia teria ocorrido em 1841.

Mas o que é exatamente a Execução na Roda e no que consiste esse martírio brutal?

Como o próprio nome evidencia, a prática envolve uma tortura realizada com o auxílio de uma roda de madeira, geralmente do tipo usado em carroções ou carros de boi. O condenado era amarrado com os membros dispostos entre os raios da roda, deixando-os em uma posição vulnerável. Em seguida, o carrasco cumpria a pena usando uma marreta, maça ou pedaços pesados de roda para desferir golpes contra braços e pernas. Cada golpe visava produzir uma fratura, partindo os ossos e causando uma dor lancinante. Os verdugos eram instruídos a desferir entre três e quatro golpes em cada membro, produzindo as fraturas desejadas. O corpo assim, era despedaçado lentamente, com os membros sendo dilacerados pouco a pouco. Para aumentar o tormento, os golpes podiam ser desferidos com intervalos de trinta minutos, ou até mais, período no qual a vítima era deixada para a fúria do público, que podia atirar frutas podres, pedras e esterco nela.


Em alguns casos, a punição era conduzida com a ajuda da população ou dos parentes próximos das vítimas do réu. Estes eram convidados a participar da execução, usando para isso porretes e pedregulhos que eram usados para quebrar os membros expostos. Em certos casos, os carrascos indicavam onde os golpes deveriam ser desferidos, mas muitas vezes a pouca familiaridade das pessoas com o procedimento acabava provocando danos imprevisíveis. 

No Sagrado Império Germânico, a execução na roda era mais sistemática e os códigos legais dispunham que os golpes deveriam ser desferidos com intervalos não maiores do que duas horas, mas nunca inferiores a uma hora para que o condenado tivesse tempo de "contemplar seu sofrimento". Os registros legais descrevem como deveria ser realizada a execução de forma correta:

"Primeiro, o condenado era colocado de barriga para baixo com as mãos e pernas amarradas numa tábua para ser arrastado por um cavalo até o local da execução. Os membros eram então amarrados a uma roda e golpeados da seguinte forma: Duas vezes em cada braço, uma vez acima do cotovelo e outra abaixo. Depois, cada perna recebia o mesmo tratamento, um golpe acima e outro abaixo do joelho. O nono e último golpe era dado no meio da espinha vertebral que se partia com o impacto direto desferido no meio das costas. O corpo alquebrado, então, era entrelaçado entre os raios da roda e esta era pregada no alto de um poste horizontal fincado no chão. Se a vítima estivesse viva, ela era deixada para morrer "flutuando" na roda, onde seu corpo, depois, seria abandonado para apodrecer."

No entanto, o procedimento podia variar de acordo com o lugar e com o sadismo do público. Segundo documentos datados de 1581, o assassino de crianças Peter Niels recebeu nada menos do que 42 golpes de marreta em seus membros que foram literalmente despedaçados. Os golpes foram desferidos por parentes das suas vítimas convidados a participar da execução. Ao fim do procedimento, o registro atesta que "não havia praticamente mais nenhum ponto que pudesse ser quebrado no corpo do réu". Com efeito, ele foi então decapitado com um golpe de espada.


Além do sofrimento que a roda impunha nas suas vítimas, havia um fator adicional nesse tipo de execução. As pessoas mortas na roda eram consideradas como as mais desprezíveis e portanto dignas daquele tormento lento e doloroso. A mera ameaça do uso da roda como forma de execução servia para fazer as pessoas confessarem seus crimes, admitirem sua culpa ou apontarem cúmplices como forma de se livrar dessa forma de execução. Ser "quebrado na roda" era considerada uma enorme desonra e uma sentença cabível apenas aos criminosos mais odiosos e indivíduos acusados de cometer os atos mais atrozes. Ademais, quando alguém era morto na Roda, o corpo muitas vezes era abandonado aos elementos, sem receber sequer o benefício de ritos fúnebres ou de um enterro digno. Um corpo mutilado daquela forma, além do mais tinha negado o direito à ressurreição pelo dogma católico. 

Conforme descreve o Padre sueco Lorenz Hagen:

"O martírio de uma vítima da Roda continua muito depois que este expira pelos ferimentos que partiram seus ossos. Ele segue sofrendo indignidades como ser devorado por aves carniceiras, atrair insetos e até mesmo raios que fulminam os restos içados até o alto de postes onde ficavam por semanas. Mas o pior é que um corpo tratado com o rigor da Roda tem negado o direito de renascer na glória de Cristo, a punição definitiva".

Em certos casos havia uma punição imposta para qualquer pessoa que tentasse remover os restos ou depositá-los em uma sepultura. As cortes judiciais instituíam que os restos deveriam permanecer no local em exposição por no mínimo 2 semanas, e só então poderiam ser removidos para se dar cabo deles. Aquele que o fizesse antes do momento, podia ser multado ou até receber chibatadas em praça pública por desobedecer a lei.

Mas não foram apenas criminosos desprezíveis os condenados a essa punição brutal. Segundo os historiadores da cristandade, Santa Catarina, filha do governador da cidade de Alexandria, foi condenada a ser martirizada na Roda depois de ter adotado a Fé Cristã. Ela foi condenada pelo Imperados Maxentius que empreendeu uma dura perseguição aos cristãos em meados do século IV. Após interrogar e torturar Catarina, o Imperador ordenou que ela fosse levada até um patíbulo e "quebrada em uma roda". Contudo, por milagre e intercessão divina, quando ela foi deitada na roda, esta se partiu ao meio. Isso não impediu que ela fosse decapitada, mas o fato da roda se partir foi visto como um milagre. Isso levou alguns lugares que usavam a roda como pena capital a dispor que, se por qualquer motivo, uma vítima fosse deitada na roda, e esta se partisse, ela deveria ser colocada em liberdade. Não há nenhum caso conhecido onde tal coisa tenha acontecido.


A Roda do Despedaçamento constitui um exemplo medonho da criatividade humana empregada em nome do sadismo e de um conceito dúbio de justiça. O que teria feito o rapaz cujos ossos horrivelmente dilacerados foram achados em Milão? Que crime ele teria cometido para justificar esse tipo de sofrimento? E seria realmente a medida a mais correta a ser aplicada? Para as pessoas de antigamente, aparentemente a resposta para essa questão é sim.