sábado, 30 de abril de 2022

O Sarcófago de Notre Dame - Peça misteriosa descoberta em cripta na Catedral


Em 2019, o mundo todo lamentou o incêndio que consumiu parcialmente a famosa Catedral de Notre Dame, em Paris. As chamas podiam ser vistas de longe, causadas por obras que ironicamente visavam fazer reparos no prédio histórico cuja construção remonta ao século XI. A Catedral de Notre Dame, é um símbolo, não apenas da França, mas um patrimônio da humanidade; assistir ao vivo o telhado sendo consumido por um incêndio foi um duro golpe para todos que amam história.

De lá para cá, obras de restauração continuam com o objetivo de deixar o lugar igual a como era antes do incêndio. Nos últimos anos, equipes de operários e historiadores tem trabalhado cuidadosamente para devolver a glória ao local. Frequentemente arqueólogos tem sido chamados para analisar algum pormenor e estudar algum detalhe.

Recentemente um grupo de operários estava fixando suportes para a construção de um andaime na nave central quando se depararam com algo inesperado. Parte do chão desabou revelando um complexo de criptas até então desconhecido. Uma limpeza preliminar revelou que o lugar havia sido usado como sepulcro. O mais impressionante no entanto, foi a descoberta de uma espécie de sarcófago em tamanho humano feito inteiramente de chumbo.


A descoberta foi confirmada de acordo com o comunicado do Ministério das Artes e Cultura da França. Além das tumbas e do curioso caixão, foram encontradas esculturas pintadas, incluindo o busto de um homem e uma série de pequenas estatuetas de gesso. Havia ainda uma cesta de vegetais e partes de uma divisória ornamental usada para destacar o altar central. Os objetos segundo uma análise preliminar são do século XIII. Também foi encontrado um pedaço grande de encanamento e calefação usado em uma obra de restauração realizada no século XIX. 

Apesar da importância dos objetos encontrados, o Sarcófago foi o objeto que mais chamou a atenção dos especialistas.

Caixões desse tipo são extremamente raros e a qualidade com a qual a peça foi construída é notável. Embora tenha sido amassado e arranhado nas laterais, o sarcófago, que também é uma peça do século XIII, permanece fechado e selado.

Usando uma pequena câmera de endoscopia foi possível espiar o interior do sarcófago e examinar a descoberta. Segundo fontes ele está sendo tratado como "uma descoberta significativa de considerável relevância histórica". O corpo no interior do caixão parece ter sido perfeitamente mumificado e os arqueólogos acreditam que ele pertence a um indivíduo ilustre, enterrado por volta de 1300, cerca de 100 anos após a construção da catedral.


"É possível ver pedaços de tecido, cabelo e uma espécie de travesseiro de penas colocado sobre a cabeça, um costume comum observado quando um líder religioso era enterrado", relatou Christopje Besnier, o chefe dos arqueólogos. "O fato desses elementos serem ainda discerníveis ns diz que o corpo deve estar em ótimo estado de conservação".

Besnier disse ainda que a descoberta poderá ajudar em nossa compreensão à respeito de práticas funerárias realizadas na Idade Média. 

O plano original é remover as peças recém descobertas para que estudos possam ser conduzidos em uma área mais propícia. Obviamente, abrir o sarcófago é um passo crucial para confirmar sua origem, compreender os meandros de como ele foi usado e quem está em seu interior.

É claro, que a descoberta gerou grande controvérsia e bastante alvoroço na Internet, com pessoas se perguntando à respeito das implicações de perturbar algo que está enterrado faz tanto tempo e que foi depositado em um invólucro incomum e tão cuidadosamente lacrado. 



A polêmica é similar a que ocorreu em 2018 quando outro grupo de cientistas descobriu um antigo sarcófago misterioso no Egito cuja abertura deixou o mundo inteiro receoso. Alguns chegaram a relacionar a abertura desse sarcófago com a Pandemia de Covid, disseminada no mundo poucos meses depois. Como uma espécie de "Maldição" liberada no momento em que o sarcófago foi profanado.

Como se isso não bastasse, no começo deste ano os japoneses também ganharam manchetes internacionais ao anunciar que uma "pedra sagrada", com mais de 1000 anos, partiu-se ao meio, supostamente liberando um demônio vingativo aprisionado em seu interior.

Seja lá o que a abertura desse caixão medieval revelará, muitas pessoas já começam a prender a respiração antecipadamente, temendo o pior. A internet está repleta de exemplos de pessoas pedindo que ele não seja importunado. Apesar disso, a abertura do sarcófago lacrado tantos séculos atrás deve ocorrer nas próximas semanas.

Vamos ficar atentos e observar os sinais.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

O Povo Serpente do Mythos - A Anatomia da Víbora que Caminha


Nos dias atuais, o Povo Serpente se viu reduzido a uma população de alguns poucos milhares de indivíduos espalhados pelo planeta. O número exato é desconhecido até para eles mesmos. é razoável assumir que um número considerável deles encontra-se hibernando em câmaras de êxtase, protegidas por sentinelas e armadilhas. Eles aguardam o dia em que serão acordados, ansiosos por condições mais favoráveis. De tempos em tempos alguns despertam, mas ao descobrir o mundo ainda sob domínio dos odiados humanos, decidem retornar para o silêncio de suas câmaras sepulcrais por mais alguns milênios.

Aqueles que permanecem ativos no mundo dos homens por sua vez, são extremamente cautelosos em proteger suas identidades, misturando-se às populações humanas tentando não chamar a atenção. Para esconder sua real natureza, o Povo Serpente geralmente lança mão de magias poderosas de dissimulação que lhes confere um semblante humano. Ao longo das eras, a raça reptiliana dominou essa técnica até se tornarem especialistas em sua utilização. Muitos deles também estudaram o comportamento humano e refinaram técnicas para dissimular e enganar observadores casuais. Alguns no entanto, foram ainda mais longe ao ponto de criar histórias falsas, se cercar de humanos controlados ou até constituir família para preservar seu disfarce. Os feitiços mágicos empregados por eles são quase perfeitos e apenas exames invasivos conseguem revelar a natureza dos que se valem desses métodos arcanos. Encantos de detecção e revelação conseguem romper os feitiços e "ver através" dessas ilusões, fazendo com que a máscara se desmanche. Séculos de perseguição fez com que o Povo Serpente se tornasse muito zeloso de seus disfarces e paranoico quanto a serem descobertos. Quando expostos, eles vão até as últimas consequências para eliminar qualquer testemunha que possa colocar sua segurança em risco. 

No passado pré-cataclismo, feiticeiros humanos do Continente Thuriano enfrentaram o Povo Serpente e concatenaram um encantamento capaz de revelar a real aparência das criaturas. O encanto causa uma reação de enorme desconforto no Povo Serpente ao mesmo tempo que desfaz as ilusões ativas. Conhecida como as "Palavras que Desvelam", ela envolve uma litania de poder arcano que pronunciada em voz alta soa como "Ka Nama, Kaa Lajerama". O encanto era citado originalmente no críptico Livro de Skellos e foi usado na Era Hiboriana, mas é pouco provável que ele tenha sobrevivido até nossos dias, exceto em algum tomo incrivelmente raro.


Os membros do Povo Serpente desenvolveram um flagrante desgosto pelo confronto direto e tendem a evitar qualquer situação que possa colocá-los em risco. Sendo imortais pela passagem do tempo, eles se tornaram temerosos de tudo aquilo que possa abreviar sua existência. Isso explica porque muitos indivíduos recorrem a serviçais, guardas ou sentinelas, que os auxiliam na proteção de seus covis e esconderijos. Aqueles com inclinação para a magia preferem utilizar criaturas invocadas, como Andarilhos Dimensionais ou mesmo Horrores Caçadores submetidos a sua vontade, enquanto os que se devotam às ciências tendem a criar serviçais alterados geneticamente para serem seus guardas.

Cada indivíduo do Povo Serpente possui ao menos um Covil para onde podem recuar, se esconder ou curar ferimentos. No passado, eles preferiam locais desertos ou ruínas isoladas, preferencialmente nos subterrâneos, mas nos dias atuais, casas ou propriedades, constituem uma opção válida. Nesses locais eles podem conduzir seus projetos, realizar seus feitiços e renovar seus feitiços de ilusão.

O Povo Serpente é dividido em dois gêneros, masculino e feminino, mas para observadores humanos eles são virtualmente idênticos. Sua reprodução envolve fertilização de ovos, mas sabe-se bem pouco sobre esse pormenor. Em sua forma original eles possuem disposição humanoide e seus corpos costumam ser esguios com os adultos atingindo altura média entre 1,60 a 1,80 metros. O tronco é delgado, enquanto os membros longilíneos são discretamente desproporcionais. Os dedos tanto das mãos quanto dos pés, são particularmente longos, terminando geralmente em protuberâncias ósseas que fazem as vezes de unhas. Eles possuem cinco dígitos, com quatro dedos e um polegar opositor semelhante ao dos seres humanos. As pernas são compridas, mas boa parte deles possui uma cauda musculosa que se arrasta pelo chão lembrando sua herança reptiliana. A cauda funciona como um membro adicional do réptil, embora sem a mesma habilidade dos braços e pernas, contudo ela pode ser usada entre outras coisas para atacar oponentes com grande força de impacto. De uma forma geral, eles são ágeis, mas não particularmente rápidos.


O corpo do Povo Serpente é revestido por três camadas de epiderme, sendo que a mais externa possui escamas rígidas de queratina quilhada que se adaptam a cada região de sua anatomia. No tórax, nas costas e no dorso elas são mais densas concedendo maior proteção, na cauda são mais lisas e alongadas para facilitar o deslize e na barriga permitem a absorção da luz. O sistema de escamas é extremamente eficiente garantindo que elas preservem umidade evitando desidratação. Eles costumam gerar uma substância oleosa que cobre as escamas e as protege, mas a cada 3 anos a pele precisa ser trocada. Uma camada cresce por baixo da que será abandonada e quando ela está pronta, a mais antiga é simplesmente descartada num processo semelhante ao que acontece com as cobras na natureza. A coloração das escamas varia enormemente com predomínio de indivíduos apresentando tons de verde, mas também há indivíduos com escamas amarelas, marrons e pretas, com raros casos de vermelho e azul vibrante. Algumas possuem características clássicas de camuflagem ou ainda ausência total de pigmentação, tornando-se albinos.

Outra característica presente no Povo Serpente é uma crista óssea que decorre de sua coluna vertebral e irradia exteriormente formando uma longa protuberância dorsal. Essa crista por vezes possui extremos afiados que ajudam a protege-los de ataques. Na porção final da crista, surge a cauda, longa e musculosa, que geralmente se arrasta pelo chão. Em geral, tanto a crista quanto a cauda são adornadas com anéis de cobre, correntes de metal e argolas que no passado serviam para denotar o status do indivíduo. O contato prolongado com humanos fez com que muitos adotassem o uso de roupas, com preferência para trajes largos, como mantos e capas de tecido leve ou ainda, seda.   

A face desses seres ao contrário do corpo humanoide inclina-se muito mais para sua herança reptiliana. O rosto tende a ser magro e encovado, com um pronunciado formato triangular e com uma espécie de focinho achatado parecido com o das serpentes. A boca é muito larga, com uma mandíbula capaz de se distender para permitir engolir presas inteiras. Eles geralmente possuem duas presas agudas que são usadas para atacar e inocular um veneno estocado em glândulas sob as fossas nasais. As presas peçonhentas são incrivelmente fortes e podem atravessar facilmente a pele e inocular o veneno na corrente sanguínea da vítima. O Povo Serpente usa esse tipo de ataque como recurso final, geralmente com resultados letais. Além das presas, a boca guarda uma língua preta e bífida, que é usada para sondar os arredores e captar odores. A língua sibilante se estende identificando sutis partículas químicas presentes no ar e transmitindo as informações para receptores no céu da boca. É possível que esse apurado olfato explique o vasto conhecimento desses seres na área da química. O Povo Serpente é capaz de se comunicar verbalmente, ainda que, com um pronunciado sibilar nas palavras. Os olhos dessas criaturas geralmente são pequenos, mas perfeitamente adaptados a alterações de luminosidade. Eles diferenciam apenas duas cores (azul e verde), mas conseguem distinguir espectros de calor que lhes garante na prática uma visão noturna.


Alguns membros do povo serpente são capazes de dilatar o pescoço de maneira semelhante ao que faz a famosa Naja Africana. Isso ocorre quando eles estão em perigo ou quando enraivecidos, criando um efeito que visa assustar o inimigo. O trinar sibilante de sua língua também causa um efeito aterrorizante na mente humana.

Carnívoros por natureza, as serpentes que caminham, se alimentam majoritariamente de pequenos animais como roedores, aves e anfíbios. Estes são engolidos com a maxilar se distendendo quando necessário para consumir a presa por inteiro. Uma vez engolido, o sistema digestivo age lentamente dissolvendo o conteúdo ao longo de semanas nas quais ele não precisa consumir praticamente mais nada. No mundo atual, o Povo Serpente mantém ambientes com pequenos viveiros para garantir seu estoque de comida.     

O veneno do Povo Serpente perdeu naturalmente sua potência ao longo das eras, em um processo que acompanhou a degeneração da espécie. Contudo, boa parte deles desenvolveram métodos artificiais de potencializar o veneno produzido em seus corpos, usando para isso, manipulação genética. O grau de toxidade do veneno pode variar de indivíduo para indivíduo, contudo, é correto afirmar que as substâncias possuem um elevado grau de letalidade. Em geral, o veneno age como uma neurotoxina de efeito incrivelmente rápido, similar ao da Taipan Ocidental. Após ser inoculado em um alvo, o veneno se espalha pela corrente sanguínea, causando bloqueio neuro-muscular em apenas 10 minutos. Com efeito ocorre a paralisia completa dos músculos. O dano muscular tende a ser extensivo e extremamente doloroso, em alguns casos excruciante, isso quando não ocasiona uma parada cardíaca fulminante. O efeito secundário age dissolvendo as células sanguíneas, causando uma severa hemorragia. A quantidade de veneno estocado nas glândulas sob a peçonha é capaz de matar mais de uma centena de humanos adultos antes de se esgotar. Alguns de seus cientistas conseguiram também desenvolver um método de "cuspir" o veneno a distância. 


Além do veneno carregado em seu corpo, o Povo Serpente é mestre na manipulação de toxinas. Eles costumam produzir substâncias com diferentes níveis de toxicidade para serem empregados em diferentes ocasiões conforme a necessidade. Seus laboratórios produzem uma quantidade notável de substâncias químicas, muitas delas, desconhecidas para a ciência humana. Finalmente, o Povo Serpente desenvolveu uma avançada técnica de hipnotismo que lhes permite dominar a vítima. Alguns poucos segundos de observação e uma série de palavras ditas calmamente geralmente são suficientes para estabelecer um transe. Indivíduos submetidos a esse transe não perdem inteiramente seu discernimento, mas se sentem estranhamente relaxados e desatentos. As serpentes aproveitam esse estado para tirar vantagem de suas vítimas. 

No que diz respeito aos "Degenerados da Espécie", as mudanças foram bem mais acentuadas. Estes seres se afastaram progressivamente de sua herança humana, com alterações surgidas ao longo de milênios que lhes conferiu uma aparência mais bestial. Braços e pernas sofreram uma atrofia gradual, em alguns casos desaparecendo por completo, fazendo com que eles se tornem seres rastejantes. As escamas, por conseguinte, se tornaram mais resistentes e perderam a melanina. Os sentidos se adaptaram após gerações vivendo em cavernas, garantindo uma visão perfeita na escuridão e um olfato muito apurado. Apesar de serem menores em estatura, raramente passando o 1,45 de altura, os degenerados são predadores contumazes, mais esguios e rápidos que os demais da espécie. 

O grande diferencial, no entanto, é o nível de inteligência: eras nos recessos profundos da terra fez com que os degenerados confiassem quase que unicamente em seus instintos. Embora capazes de lampejos, que lhes permite construir ferramentas e armas rudimentares, o Povo Serpente degenerado é bastante primitivo. Os soturnos habitantes da mítica Cidade sem Nome são provavelmente um exemplo de tribos "devoluídas".

O Povo Serpente, embora muito reduzido e cioso de qualquer ação direta, continua sendo uma espécie extremamente perigosa. Aqueles que tem o azar de cruzar o caminho de tais criaturas, atraindo sua atenção, estão frequentemente em grave perigo. Dedicados aos seus planos e estratagemas, nada satisfaz mais essas criaturas do que a perspectiva de eliminar humanos e reconquistar um mundo que é seu por direito. 

domingo, 24 de abril de 2022

Terra das Bruxas - O Vilarejo de Triora que foi palco de feitiçaria e de um julgamento sangrento


Localizada no tranquilo Vale de Argentina, nos Alpes da Ligúria, norte da Itália, fica a serena e minúscula cidade de Triora. É provável que se não fosse pelo seu passado tumultuado, ninguém jamais se interessasse ou ouvisse falar dela. Cercada por paisagens naturais arrebatadoras, falésias altas e vales profundos, ela é pouco mais do que um ponto no mapa, com apenas 400 residentes permanentes vivendo uma vida de idílica solidão. 

Apesar de seu tamanho, a grandeza natural ao redor ajudou Triora a ser incluída numa associação de cidades de interesse histórico chamada I Borghi più belli d'Italia (As mais belas cidadezinhas da Itália). Ela também conquistou um lugar na lista das 100 cidades mais atraentes para os amantes da história medieval. Para todas as aparências, ela é uma pequena e pitoresca aldeia; limpa e acolhedora para todos que a visitam, um lugar para passar um tempo e explorar durante as férias. Entretanto, nem tudo é o que parece ser!

Triora tem um passado muito sombrio e sinistro que ainda lança sombras sobre o lugar. É como uma mácula ancestral, uma cicatriz que nunca se fecha que lhe valeu o apelido de "il paese delle streghe", ou "A Terra das Bruxas".

A história de Triora remonta aos tempos romanos antigos, quando estes ergueram o pequeno assentamento para suprir as necessidades das legiões e operários à caminho da Gália. Triora, por ficar no meio do caminho servia como um local onde os viajantes podiam descansar antes de adentrar o território disputado com os gauleses. Esse passado permitiu que a cidade se desenvolvesse e no século XI, ela já era um próspero centro de comércio na região, atraindo comerciantes e mercadores que ofereciam seus produtos no mercado local. Triora estava em uma área contestada e continuamente seus governantes tinham que se defender da invasão forçada de seus vizinhos, a poderosa República de Gênova. Eventualmente, a República acabou absorvendo a cidade após negociações que garantiram sua compra. Triora continuou a ser um lugar importante, não apenas financeiramente mas uma encruzilhada de comércio entre Itália e França, valorizada ainda por sua posição estratégica. Na Idade Média permaneceu sendo um centro de comércio, bem como um polo agrícola, com fazendas e vinícolas. 


Tudo isso até a sorte da cidade mudar repentinamente no final do século XVI.

As dificuldades começaram em 1587, quando Triora experimentou um súbito influxo de problemas inesperados. As colheitas abundantes das quais a região sempre desfrutou entraram em declínio, a fome se seguiu e a desgraça se espalhou pela região. Considerando que até aquele momento a cidade sempre prosperou, não demorou a surgirem rumores de que algo sobrenatural estava acontecendo, e que a cidade havia sido amaldiçoada. Em pouco tempo, a situação foi piorando com um clima atípico, pragas, pestilência, chuva ácida e gado misteriosamente morto no pasto, às vezes, com marcas de mutilação. 

Os rumores davam conta de que todos os infortúnios eram causados por bruxas, pois estas eram o bode expiatório mais comum. Uma cabala de feiticeiras, em conluio com o Príncipe das Trevas eram as responsáveis ​​pelos conflitos da cidade e as tragédias que seus habitantes enfrentavam. Havia fartura de histórias envolvendo avistamentos de bruxas realizando rituais pagãos nas matas, atos de devassidão e outros malefícios. Falava-se ainda de espíritos demoníacos conjurados, perambulando e até sacrifícios humanos e canibalismo vitimando criancinhas inocentes. Esses rumores na época se espalharam por toda parte e, logo, chamaram a atenção dos inquisidores de Gênova e Albenga, a diocese local.


Quando um Inquisidor Mor muito temido chamado Giulio de Scribani e o padre Girolamo del Pozzo chegaram à cidade para investigar os boatos, concluíram que Triora era um lugar sitiado por feitiçaria. A corrupção estava em toda parte e era tão densa que Scribani chegou a afirmar poder sentir o "fedor da feitiçaria no próprio ar". Uma investigação os conduziu até a região de Cabotina da Aldeia, que era uma miscelânea de cabanas deterioradas e imundas fora dos muros da cidade, habitadas pelos mais pobres e pelos indigentes. 

O tal cheiro ali era mais pronunciado e como um perdigueiro o Inquisidor começou a farejar a presença perniciosa da bruxaria. Scribani organizou buscas sistemáticas de casa em casa em Cabotina, bem como nas comunidades vizinhas, eventualmente prendendo dezenas de mulheres jovens e meninas suspeitas de serem bruxas. As acusações eram variadas e bizarras. Incluíam, a prisão de uma mulher por manter em casa uma cabra preta, a detenção de uma menina por menstruar muito cedo e de um rapaz por ter as feições delicadas de uma rapariga sedutora. Scribani era um ex-magistrado local, provavelmente o último que qualquer uma dessas mulheres queria ver, já que ele havia construído uma reputação bastante sinistra como um fanático incondicional com a intenção de eliminar a influência do Diabo na Terra e, por extensão, alegadas bruxas. Ele era conhecido por seu uso gratuito de tortura e violência, então sua presença provavelmente não foi bem-vinda por aqueles que moravam lá. O homem era um misógino que defendia a teoria, muito popular na época, de que as mulheres guardavam em si um potencial maior para o pecado.

A lista de suspeitos logo se expandiria para incluir parentes de nobres locais, a ponto de a Inquisição suspeitar que pudesse haver mais bruxas do que pessoas normais naquele lugar. O Inquisidor e seus assistentes submeteram os prisioneiros a um intenso interrogatório que incluía várias modalidades de tortura e constrangimento físico e psicológico. Suspeitas eram despidas, queimadas, cutucadas com agulhas e ameaçadas se não confessassem seus atos. O padre tinha uma fixação com bruxas que se deitavam com Satã e se dedicava a ouvir (com certo deleite) como se dava a conjunção carnal entre as feiticeiras e seu amante demoníaco.


Aquelas que não confessavam eram submetidas a maiores abusos e muitas acabaram morrendo vítimas dessa tortura. Uma jovem de 13 anos supostamente cometeu suicídio pulando de uma janela, marcando o dia em que os julgamentos tiveram início. Doze dos acusados ​​recusaram-se a confessar e uma menina de 12 anos foi libertada por razões não claramente explicadas. Alguns acusados foram executados, pelo menos quatro deles, mas no final, as bruxas restantes foram poupadas da execução. O Inquisidor de Gênova, chamado para avaliar os trabalhos, julgou que estavam ocorrendo abusos da parte de Scribani e seus associados. Ademais, naquele momento as execuções de bruxas estava se tornando um espetáculo antiquado e indesejado mesmo por Inquisidores. Scribani por sua vez estava sendo cada vez mais visto como um fanático. Certamente era tarde demais para salvar aqueles que morreram sob tortura ou por suas próprias mãos, mas a intervenção serviu para por um fim naquilo tudo. Alguns relatos dizem que outros envolvidos foram mortos secretamente, mas seus destinos permanecem indefinidos. No fim de sua vida, Scribani acabaria ele mesmo, sendo excomungado por seus modos, embora o estrago já estivesse feito.

Há várias suposições sobre a contagem final de vítimas em Triora. Diz-se que até 200 pessoas (mulheres em sua maioria) foram acusadas de feitiçaria no vilarejo e nas aldeias vizinhas, embora a extensão exata permaneça obscura devido aos registros incompletos da época. A economia de Triora continuou a se deteriorar e um êxodo da população, temerosa e enojada com os acontecimentos decretou sua decadência final. Ela jamais se recuperou e sobreviveu aos séculos como um povoado humilde. Nos anos seguintes, todo o incidente ganhou fama e ajudou a decretar o fim de procedimentos semelhantes naquela parte da Itália. Ainda assim, a notícia se espalhou e desencadeou um temor considerável nos países vizinhos. Na Suíça, França e Países Baixos, o pânico pelo sobrenatural foi às alturas.

Até hoje os julgamentos das bruxas de Triora repercutem pela região, e a cidade aproveitou isso realizando passeios nos quais turistas tem a oportunidade de conhecer a "cidade das bruxas". No passeio podem visitar o que restou da Cabotina e supostos lugares amaldiçoados pelas feiticeiras da época, além de um museu dedicado ao período. Até hoje a área possui relatos sobre assombrações e avistamentos de sombras e demônios que remontam a esse período. Convenções e encontros de bruxas modernas praticantes do neo-paganismo e wicca, se tornaram muito frequentes na região. A Triora de hoje é um local pacífico que não nega seu passado sombrio e parece ter feito as pazes com sua história.

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E sim, aparentemente o Jogo de Tabuleiro "Triora: Cidade das Bruxas", criado por Michael C. Alves, tem como inspiração justamente essa história sobre as bruxas do povoado italiano. Aliás, vale a pena conhecer esse excelente Boardgame, um euro com ótima estratégia, lançado pela Meeple BR e Arcano Games.

Conhecendo a história real, ele fica até mais legal!



sexta-feira, 22 de abril de 2022

O Povo Serpente do Mythos - A Origem das Víboras que Caminham


Desde os tempos mais remotos, nenhum animal aterrorizou e ao mesmo tempo fascinou mais o homem do que a Serpente. O homem primitivo rendeu a esse traiçoeiro réptil inúmeras homenagens e ergueu ao redor dele algumas das mais antigas religiões de que se tem notícia. Representação clássica da maldade, segundo a religião cristã, a Serpente simboliza o mal encarnado desde os tempos do idílico Jardim do Éden. A Serpente era a grande tentadora e o símbolo da queda e da perda do prestígio do homem diante de Deus.

Antes porém, a figura da Serpente tinha uma conotação diferente para muitos povos primitivo. Ela era a representação da astúcia, da sabedoria e do conhecimento. Vários deuses do passado assumiam a forma de serpente para receber adoração de seus seguidores e a serpente era glorificada.

No inclemente Universo dos Mythos, o Grande Deus Ancestral Yig é a divindade que congrega em si todos os aspectos da clássica Divindade Serpente. Yig não apenas tem forma reptiliana com características humanas, mas é conhecido como o Pai das Cobras. Ele rege todos os répteis rastejantes. Seu poder sobre eles é inquestionável, as serpentes o obedecem e atendem seu comando. Yig é tido como um dos Deuses mais influentes do passado remoto com cultos estabelecidos em vários continentes e com seguidores em praticamente todos os cantos do planeta. Ele é considerado um patrono do conhecimento e sabedoria, que compartilha de seu saber místico com seus seguidores, chegando até mesmo a ensiná-los os feitiços e rituais mais poderosos preservados à sete chaves.

Os primeiros seguidores de Yig em nosso planeta, entretanto, não foram humanos como pensam, muitos estudiosos do Mythos. Nem mesmo os povos das terras atávicas de Mu, da Lemúria ou mesmo da mítica Atlântida... não, antes deles haviam outros que se curvavam diante dos altares profanos de basalto negro e obtinham o favor do temido Pai das Cobras o chamando de Deus Supremo. Talvez por uma questão de identidade e familiaridade, o Povo Serpente constituiu o mais antigo secto de que se tem notícia devotado a Yig.


O Povo Serpente é uma raça de seres bípedes que guardam características tanto humanas quanto reptilianas. Chamados de Serpentes que Caminham eles apareceram durante o Período Permiano e rapidamente ascenderam na escala evolutiva fundando uma civilização avançada. Há teorias de que a raça como um todo teria vindo de Vênus, quando este planeta possuía uma atmosfera similar a da Terra. Eles teriam desembarcado aqui usando portais dimensionais, realizando um êxodo quando as condições ambientais se tornaram insustentáveis em seu mundo natal. Apesar de defendida em alguns tomos, essa hipótese parece pouco factível e a maioria dos acadêmicos do Mythos postulam que eles são nativos da Terra, tendo sido resultado de um processo evolutivo natural.

Se é verdade que eles são oriundos da Terra, é provável que essa espécie tenha firmado a primeira Grande Civilização inteiramente nativa de nosso planeta, com um avanço místico e posteriormente tecnológico invejável. Nos anais da história do próprio povo serpente, sua gênese decorre da vontade de Yig que os teria criado à sua imagem e semelhança, com o intento de conquistar a superfície do planeta e espalhar sua marca por todos os cantos. Com seu grande conhecimento de magia, e com a ajuda da fabulosa Coroa da Cobra, o Povo Serpente fundou o majestoso Império de Valusia no passado remoto pré-humano, no hiato das disputas territoriais entre as Coisas Ancestrais, os Fungos de Yuggoth e as hostes Xothianas lideradas pelo Grande Cthulhu.

O Império de Valúsia, se espalhou sem conhecer grandes adversários, ocupando uma área que hoje corresponde a África, Europa e o Mediterrâneo. No auge de sua regência, o Povo Serpente ergueu cidades de pedra com enormes torres de basalto, alamedas ladeadas por grandes palmeiras, zigurates, pirâmides escalonadas e magníficas esplanadas. Eles foram um povo construtor que dedicava igual devoção a erigir templos para honrar seu deus e laboratórios para desbravar as fronteiras da ciências. As maiores cidades desse povo empreendedor se ergueram orgulhosas, despontando como algumas das primeiras cidades de que se tem notícia. Hoje, a infame Cidade sem Nome localizada no Deserto da Arábia é a última das que se tem notícia, ainda que na forma de ruínas decrépitas. Outras cidades no entanto, podem ainda existir nas profundezas vulcânicas da Islândia ou no Norte da África nos recessos da Líbia. Há boatos de que cidadelas construídas no coração da selva amazônica também permanecem abandonadas, esperando serem encontradas.


Há divergência sobre o que causou o inevitável ocaso da Civilização dos Homens Serpente. 

Uma das hipóteses mais aceitas é que disputas religiosas acabaram por trazer instabilidade à sua sociedade até então perfeitamente equilibrada. Por milênios, o Culto de Yig deteve a preponderância sobre todas os demais seitas, sufocando as demais em alguns momentos, tolerando-as com reservas em outros. Contudo, com o passar do tempo, diferentes facções foram se formando, oferecendo lealdade a Byatis, Han, Shub-Niggurath e Tsathoggua. As disputas se tornaram cada vez mais frequentes, sobretudo aquelas entre os devotos que mantinham a fidelidade a Yig e os que descobriram em Tsathoggua uma fonte de poder e aprendizado arcano. Em determinado momento, é possível que essa cisão tenha fomentado movimentos separatistas e guerras civis que enfraqueceram decisivamente a coesão do Império.

Por volta do Triássico, severas alterações climáticas e o surgimento de novas formas de vida, em especial dos grandes sáurios, fizeram com que o Povo Serpente experimentasse um acentuado declínio. Muitas de suas cidades foram abandonadas ou destruídas, fazendo com que o antes vasto Império se fragmentasse em pequenas Cidades Estado, cada qual com seus deuses, leis e crenças. Nenhuma delas, entretanto, conseguiu se tornar preponderante e uma a uma, elas também foram desaparecendo.


A raça chegou perto de sua extinção, mas em algum momento do Período Pleistoceno, ela conseguiu se reestruturar e ressurgir. O Povo Serpente assistiu o surgimento dos primeiros mamíferos que herdaram o Reino dos Répteis que governaram a superfície por milhares de anos. Curiosos eles dedicaram sua atenção científica ao surgimento de uma espécie em particular com a capacidade de se adaptar e superar as adversidades que encontravam. É possível que o Povo Serpente tenha em algum momento estudado e até incentivado tribos proto-humanas, pouco mais do que simples primatas em seu processo evolutivo. Alguns conjecturam se a gênese dos mitos ancestrais disseminados em todo o mundo sobre Serpentes Sábias não remontam a essa interação. Há suspeitas de que os primeiros povos humanos que abandonaram o nomadismo, apenas o fizeram graças à mão do Povo serpente os guiando nesse sentido, ensinando a eles técnicas rudimentares de agricultura. 

Ironicamente foi justamente o sucesso dos humanos que motivou o declínio decisivo do Povo Serpente e sua Decadência. Durante a mítica Era Thuriana, a Valusia se tornou o mais poderoso dos reinos humanos, ainda que fosse governada das sombras pelo Povo Serpente que também exercia influência sobre Commorium, Verulia, Thule e demais reinos. O Povo Serpente estava satisfeito em se manter nas sombras, mas esse papel não duraria muito. Os humanos descobriram a presença do Povo Serpente e temendo seu vínculo com a feitiçaria, deram início a uma sangrenta guerra que se converteu em extermínio. Os esconderijos subterrâneos da Raça Reptiliana foram varridos pelos humanos em maior número e seus habitantes passados pelo fio da espada. Já em um estado de decadência progressiva, nem mesmo a feitiçaria e alta tecnologia os salvou da aniquilação. Nos tempos do lendário Rei Kull, chamado de Usurpador da Valusia, a presença do Povo Serpente era quase intangível. Uma última tentativa de tomar o trono da Valusia foi debelada pelo Monarca bárbaro que deu cabo de uma conspiração visando sua deposição.

O Período Thuriano foi sucedido pela era dos Filhos de Arrius, que chamaram seu tempo de Era Hiboriana. Nessa segunda época lendária, o legado do Povo Serpente foi explorado nos reinos sob a sombra sibilante do Deus Set (possivelmente um dos aspectos de Yig) que passou a ser venerado por humanos, sobretudo no Reino da Estígia. Os tesouros do Povo Serpente foram vasculhados e ajudaram a criar tradições arcanas representadas pelo Livro de Skellos. Na Era Hiboriana, feiticeiros poderosos como o terrível mago estígio Thoth Amon, aprenderam muito com a herança do Povo Serpente. Em determinado momento, Thoth Amon chegou supostamente a recuperar a mítica Coroa da Cobra que teria lhe conferido enormes poderes. Contudo, o artefato se perdeu em algum momento, frustrando os planos de conquista do mago.


Quando um novo cataclismo pôs fim a Era Hiboriana, enterrando seus reinos e história, o Povo Serpente parecia ter igualmente encontrado seu ocaso. Contudo, uma diáspora permitiu o surgimento de alguns bastiões da outrora orgulhosa raça. Estes resistiram retirando-se cada vez mais para as profundezas da Terra buscando proteção em cavernas escuras. Fixando-se em Yoth, nos arredores de K'n'yan e possivelmente na Terras dos Sonhos. Alguns deles conseguiram sobreviver a passagem das eras, assistindo o progresso dos seus desafetos humanos que moldaram o mundo ao seu bel-prazer.

Em tempos mais recentes, muitos dos membros remanescentes do Povo Serpente se colocaram em um estado de hibernação voluntária, ocupando receptáculos capazes de sustentar sua existência indefinidamente. Seus esconderijos ocultos no coração das suas cidadelas ancestrais permanecem intocados à despeito de guardarem tesouros valiosos muito ambicionados por feiticeiros. No Novo Mundo, as lendárias Cidades do Ouro procuradas pelos Conquistadores podem muito bem corresponder aos últimos baluartes do Povo Serpente. Os terrores que habitam esses lugares, junto com indescritíveis maravilhas, são matéria de debate há milênios. 

Existem ainda aqueles que experimentaram um processo de degradação que os conduziu à barbárie. Em sua maioria, estes pertencem ao Povo Serpente que se isolou nas profundezas de cavernas como as que existem em Gales, na Região da Apúlia e no Oriente Médio. Sua existência foi marcada por uma involução na qual eles se tornaram pouco mais do que bestas selvagens dedicadas a lutas tribais e disputas territoriais, um triste retrocesso para um povo tão ambicioso. As lendas de povos não humanos habitando os subterrâneos podem ter origem nesses seres que degeneraram em inúmeras formas. O Povo-Pequeno de Gales, os Anões das terras nórdicas, Kobolds da Alemanha e curupiras no Brasil são mitos que possivelmente decorrem de tribos degeneradas do Povo Serpente. 


Mas nem todos os membros desse povo atávico encontram-se inativos em câmaras de êxtase ou degeneraram em espécies espúrias. Alguns continuam vivendo entre os humanos, disfarçados e escondidos justamente entre eles. Eles descobriam formas de ocultar sua aparência e passaram a interagir com os humanos, imitando seu estilo de vida e desfrutando de sua era. Eles ocupam posições importantes nos campos que sempre dominaram. São magos extremamente poderosos, líderes de seitas religiosas ou homens santos que ao seu modo ainda desfrutam de influência numa época que não é a sua. Outros se juntaram a humanos que exploram as ciências e se tornaram cientistas, consultores e visionários, coordenando das sombras conglomerados de pesquisa e megacorporações. Eles agem discretamente, fomentando esquemas que levam décadas, por vezes até séculos, para render frutos. 

Em comum, todas as facções remanescentes do Povo Serpente dispersas pelo mundo se ressentem de seu Império decaído, remoendo o que eles enxergam como uma substituição indigna, na forma da humanidade que os sucedeu. Dentre eles há os que sonham com o retorno de sua prévia condição de Senhores do Planeta, ambicionando um dia retomar o que consideram seu por direito. 

Conspirações formadas por membros do Povo Serpente surgiram ao longo da história humana, urdindo planos e criando estratégias que lhes permitiram reaver o vasto poder que um dia detiveram. Certas facções consideram que é questão de tempo até que a Raça conquiste novamente o planeta, coisa que estaria prevista por seus Profetas. 


Ainda que poderosos estes grupos não parecem possuir uma liderança capaz de coordenar seus esforços em um mesmo sentido. Dada a natureza traiçoeira e individualista do Povo Serpente é pouco provável que eles sejam capazes um dia de coordenar um esforço que prive os humanos de sua hegemonia. Supostos esquemas visando o extermínio da raça humana sem dúvida foram concebidos, mas estes carecem de coesão para serem colocados em movimento. 

Uma vez que seus números foram dramaticamente reduzidos e cada um deles é dedicado às suas próprias agendas é improvável que algo assim venha a acontecer. De fato, tal coisa oferece certo conforto, já que o domínio de técnicas científicas e magia fazem do Povo Serpente inimigos formidáveis que poderiam acarretar em nossa destruição.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Occam's Razor - Resenha da Antologia de Cenários Modernos para Chamado de Cthulhu



A Editora Stygian Fox se tornou conhecida nos últimos anos por publicar suplementos de Chamado de Cthulhu direcionado para o público adulto. São em geral antologias de cenários mais pesados se passando nos dias atuais. 

O último lançamento é Occam's Razor, livro produzido por intermédio de uma campanha bem-sucedida de Financiamento Coletivo no Kickstarter em meados de outubro de 2018. Após alguns atrasos causados sobretudo pela Pandemia, o livro finalmente chegou aos apoiadores e está à disposição para compra primeiro em plataformas digitais e futuramente em versão física. Occams Razor contém sete cenários contemporâneos para a 7ª edição de Chamado de Cthulhu que podem ser jogados como one-shots ou como parte de uma campanha centrada nos mesmos personagens. 

O título do livro, Occams Razor (ou Navalha de Ocam) prenuncia de forma muito interessante o que o narrador irá encontrar nesse material. A Navalha de Occam, é uma expressão derivada de um princípio do mundo real. Ela estipula que a explicação mais correta para uma questão, geralmente acaba sendo a mais simples. O título telegrafa o contexto dos cenários: em cada um deles temos um problema no formato de um mistério a ser investigado e solucionado. Sendo cenários de Chamado de Cthulhu, os indícios e pistas apontam incialmente para o envolvimento do Mythos, mas a reviravolta é que os mistérios possuem uma explicação mundana. O Mythos não está presente diretamente nos casos, mas isso não os torna menos ameaçadores, mortais ou absurdamente aterrorizantes de resolver.

A ideia é confrontar os jogadores, especialmente aqueles que conhecem o cenário e estão habituados a suspeitar de criaturas, a encarar uma dúvida razoável se elas estão ou não envolvidas. Os canibais que estão escondidos no esgoto são ghouls ou apenas indivíduos que se entregaram a antropofagia? A estranha morte num museu foi causada por uma maldição ancestral ou por um complô de indivíduos gananciosos? O culto é realmente devotado a deuses ancestrais ou foi inventado para explorar as crenças alheias?


Sem dúvida, a dualidade dos cenários é o que diferencia Occam's Razor de outros livros. Aqui os jogadores jamais terão certeza de que o horror tem origem em algo realmente sobrenatural ou se não passa de algo fincado no mundo real. A possível natureza mundana dos cenários é algo refrescante que foge dos conceitos explorados inúmeras vezes nas aventuras canônicas. Em Occam´s Razor os personagens não saberão ao certo no que estão envolvidos ou se podem acreditar em suas suspeitas. 

A grande sacada, no entanto, é que as tramas permitem injetar níveis variados de influência do Mythos nos mistérios. O Guardião pode apresentar os cenários sem Mythos (apenas horror) ou acrescentar os elementos que ele julgar interessantes. Para tanto, os cenários incluem uma barra lateral "Must Have Mythos" (Deve haver Mythos). Estas barras oferecem sugestões viáveis ​​de como incorporar o Mythos ao mistério para aqueles que desejam esse tipo de narrativa. Essa incerteza é o que torna Ocams Razor tão interessante: alternando as histórias entre cenários de horror puro e outros com a presença do Mythos, os jogadores nunca vão ter certeza do que eles irão encontrar. E essa dúvida é perfeita para deixá-los fora de sua zona de conforto.

O ideal na minha opinião é alternar os cenários oferecendo mistérios que parecem ser motivados pelo Mythos mas que na verdade são mundanos, com outros que parecem mundanos à primeira vista, mas que se provam causados pelas forças insidiosas de Cthulhu. 


Cada cenário é independente dos demais; a maioria é jogável em uma única sessão de 4 a 6 horas; mas o prolongamento em uma segunda sessão é sempre possível. Em essência os cenários não formam uma sequência no formato de campanha, mas é perfeitamente viável encadear as histórias usando os mesmos personagens ao longo de uma série. De fato, o próprio livro oferece a sugestão de fazer com que os personagens sejam membros de uma Agência de Investigação Privada que se especializa em casos estranhos e incomuns. Usando esse modelo, é mais fácil encaixar os personagens em cada cenário. 

Da mesma maneira, os Guardiões que desejarem inserir qualquer um desses cenários em uma campanha existente não devem encontrar muitos problemas; nenhum deles depende de qualquer cidade ou localidade específica. Os cenários por serem contemporâneos permitem uma adaptação onde o Guardião quiser centrar a história. Por uma questão de conveniência, eles são concebidos para os Estados Unidos, mas com algum trabalho é possível mover para qualquer lugar, de Nova York para Sydney, de Londres para o Rio de Janeiro. 

Occam's Razor foi idealizado por Brian M. Sammons um dos melhores autores contemporâneos de RPG. Brian é um veterano de vários jogos e assinou uma quantidade impressionante de aventuras com seu nome. É dele a sensacional "Forget me Not", um dos melhores cenários modernos de Cthulhu, e um dos melhores publicados na 7a edição, inserido na antologia "The Things we Leave Behind". Brian é um conhecedor profundo do gênero de terror, com um insight perverso de como empregar o Mythos e com uma criatividade invejável para costurar tramas de terror e medo. Sua presença aqui é certeza de qualidade para o resultado final.


A maioria dos cenários começa com uma premissa semelhante envolvendo pessoas desaparecidas que precisam ser localizadas por parentes, amigos ou colegas. Os cenários são bem escritos e bem desenvolvidos, sem apelar para repetição de temas, ainda que a premissa seja frequentemente a mesma. As histórias tem uma roupagem moderna, com apelo à vida cotidiana: espere portanto personagens fazendo pesquisas na internet, buscando filmagens em câmeras de vigilância, tendo acesso a computadores e celulares e fazendo registros nas mídias sociais. Muitos Guardiões tem reservas quanto a aventuras modernas pois o charme de uma busca em biblioteca ou o isolamento total podem ser anulados pelas comodidades da era digital. Mas não se preocupe, quando as coisas esquentarem, os personagens se verão em situações em que tecnologia ajudará bem pouco.

Não pretendo entregar demasiadamente o tema dos cenários por isso vou ser bastante sucinto nos detalhes, apenas para pincelar do que tratam os mistérios oferecidos em Occams Razor. A seguir temos os títulos e uma breve sinopse de cada um: 

1 - Um Pacote Inteiro de problemas (A Whole Pack of Problems)

Kyle Alexander é um estudante universitário desaparecido já faz quatro dias. Seus pais estão muito preocupados e sem saber a quem recorrer, procuram os investigadores para que os ajudem. A polícia acredita que Kyle deve estar se recuperando das Férias de Verão e que vai aparecer em breve, já os investigadores, à medida que vão coletando pistas, não tem tanta certeza. Algo positivamente sinistro parece ter acontecido com o jovem estudante e os indícios se mostram aterrorizantes.    

2 - Os Olhos de quem vê (Eye of the Beholder)

Amy Langan, uma estudante de artes de 20 anos de uma faculdade local, está sumida há cinco dias. Sua colega de quarto não está ciente de nenhum plano de fim de semana e não vê ela ou seu carro desde então. À medida que os investigadores seguem as pistas, eles rapidamente descobrem que há mais do que aparenta nesse mistério. Em última análise, eles terão de encontrar Amy, viva ou morta. Suas ação ou inação determinarão o destino de Amy. Os investigadores terão muitas escavações a fazer e pistas a coletar até juntar as peças e saber o que está acontecendo.


3 - Passos Congelados (Frozen Steps)

O melhor amigo de um dos personagens falta a um almoço mensal programado antecipadamente. É algo estranho, pois essas reuniões são importantes para ambos e cumpridas há tempos. Ele não responde a ligações ou mensagens de texto - ele parece ter sumido no ar. Preocupação se transforma em dúvida que gera temor de que algo macabro possa estar acontecendo. Juntar as peças desse mistério levará os investigadores a descobrir uma verdade atroz nas profundezas das Florestas de Michighan.

4 - Escuro e Profundo (Dark and Deep)

Um snuff film surge nos recessos escuros da deep web e chama a atenção dos investigadores. A filmagem parece genuína, filmada em Nightvision, e retrata uma bela mulher de 20 e poucos anos correndo pela praia. Ela está ofegante, realmente apavorada e chorando, movendo-se em direção à água e às ondas. A filmagem termina com sua morte nas mãos de uma criatura bizarra. Seria a fita verdadeira ou uma chocante fraude? O que seria o ser bizarro captado em filme? E que segredos estão ocultos nessa caso? 

5 - Visões do Além (Visions from Beyond)

James Weiter parece ser apenas mais um estudante universitário tentando se encontrar: ele é socialmente normal, pertence a uma fraternidade e possui seus hobbies. Tarde da noite, ele liga para um dos investigadores (seu tio/professor/colega) em um preocupante estado de pânico e euforia. Ele fala de modo incoerentemente sobre ter ido longe demais, diz que precisa de ajuda e teme estar em grave perigo. A ligação então se encerra e assim tem início um mistério. O que teria acontecido? No que James estava envolvido e o que poderia ter terminado por subjugá-lo? 

6 - Os Vigilantes (The Watchers)

Linda Lopez uma mulher desesperada entra em contato com os investigadores. Ela acredita que um grupo de indivíduos não identificados a está perseguindo por razões desconhecidas e que pretendem lhe causar algum tipo de mal. Mas seriam as suspeitas dela mera mania de perseguição ou haveria algo realmente sinistro acontecendo conforme ela suspeita? Os investigadores terão de separar ilusão de realidade e tomar cuidado com as decisões que tomarem.  


7 - Chama Purificadora (A Cleansing Flame)

O respeitado professor Jason Seeley tem conexões diretas com um ou mais personagens dos jogadores. Envolvido em importantes pesquisas, ele não sabe exatamente o risco que está correndo. Os investigadores descobrem sua morte prematura na garagem da faculdade e concluem que as circunstâncias são no mínimo suspeitas. Investigando o caso, eles começam a descobrir muitas camadas, mas nem tudo é o que parece ser nesse caso aterrorizante.

Cada história é apresentada com riqueza de detalhes, os NPCs possuem motivações bem definidas e a conclusão enseja em várias ocasiões em questionamentos éticos e morais. É preciso salientar que as tramas são bastante pesadas e voltadas para o público adulto uma vez que envolvem elementos bastante perturbadores, incluindo mas não se limitando a violência, uso de drogas, abuso físico, mental e sexual, sacrifício, tortura, canibalismo e insanidade. Cada história oferece um breve resumo do que o cenário enseja e dos aspectos mais grotescos para que o Guardião esteja ciente desde o início no que está se metendo.  

Apresentação

Occam´s Razor é um belo livro de capa dura com 156 páginas coloridas. A arte em cores do interior evoca o tema dos cenários em que estão incluídos e complementa bem com o texto. Não há escassez de arte neste livro, as páginas são cobertas por ilustrações feitas de maneira evocativa. A cartografia à cargo de Guillaume Tavernier é maravilhosa, realmente dando ao jogador a sensação de estar lá. Sugiro ao narrador fazer uma ampliação dos mapas e permitir que os jogadores tenham acesso a eles durante as aventuras para que possam explorar as cenas usando-os como referência. 


Temos os já familiares apêndices no final do livro com a reprodução dos Recursos do Guardião e Mapas dos Cenários, juntamente com seis investigadores prontos. Eu gostei do acabamento e qualidade dos Recursos, alguns deles nos formatos de páginas de mídia social, diários e jornais, que podem ser copiados e entregues diretamente aos jogadores. Os personagens prontos fazem parte da mesma Agência de Investigação e encaixam bem nas histórias facilitando o trabalho do Guardião se os jogadores optarem por seguir essa sugestão, francamente, acho uma boa pedida para facilitar as coisas.

Pensamentos Finais

Occam's Razor quebra o cânone dos suplementos de cenários e é excepcionalmente diferente na melhor acepção da palavra. Ele possui um certo apelo e charme que a meu ver os Guardiões mais experientes apreciarão. A proposta original de que as histórias podem alternar elementos do Mythos com outros cuja explicação é mais mundana (mas nem por isso menos aterrorizante) é um achado. Perfeito sobretudo para histórias contemporâneas em que o ceticismo e a dúvida são um componente adicional de nossos tempos. 

Consigo entender, no entanto, que alguns Guardiões, especialmente os mais novos, possam se sentir um tanto quanto frustrados ao ler as aventuras e não encontrarem aquilo que buscam: HORROR CÓSMICO! É importante entender qual a proposta da antologia - conciliar o certo e o duvidoso, o possível e o razoável e criar um clima de paranoia no grupo. O livro poderia deixar mais claro na contracapa para não causar um descontentamento naqueles que o adquirem esperando uma coisa e recebem algo diferente.

Da minha parte, achei o livro muito interessante e já penso em dar o pontapé inicial em uma série de one-shots com esse material.

Eu considero Occam's Razor uma excelente aquisição para quem quer fugir um pouco do período clássico (1920) e investir em cenários modernos onde nem tudo é o que parece ser. O PDF pode ser encontrado na página oficial da Stygian Fox ou em sites de compra de PDF como o Drive Thru.



domingo, 17 de abril de 2022

Rio de Sangue - A Macabra lenda da Barcaça Maldita


Sempre existiram histórias sobre locais e objetos amaldiçoados. Por algum motivo, esses lugares e coisas atraem forças insidiosas que fazem com que o infortúnio, a miséria e até a morte gravitem em torno deles. Há exemplos de terras amaldiçoadas, edifícios, ilhas, bonecas, carros, joias, tudo que possa ser imaginado, de lugares a objetos, tiveram algum caso de maldição anexada a eles. Um exemplo bastante estranho de uma história envolvendo um objeto amaldiçoado é a de uma Barcaça que se tornou infame no século XIX e em pouco tempo começou a atrair todos os tipos de acontecimentos sinistros.

Em 1820, um conhecido empresário americano chamado Moses Tousey decidiu iniciar um serviço de travessia pelo Rio Ohio entre Lawrenceburg, Indiana e Touseytown, Kentucky. Ele levaria passageiros e carga de costa a costa numa barcaça. Para ajudá-lo, ele contratou um recém-chegado a Touseytown chamado William McGregor, que acabara de se mudar para lá com sua filha adolescente Elinor. Embora McGregor fosse muito bom em construção e tenha ajudado a colocar a balsa em funcionamento, ele não era muito querido na cidade. Descrito como um bêbado e valentão de gênio difícil, havia rumores dele estar envolvido com toda sorte de atividade criminosa. Mesmo acumulando uma reputação bastante ruim na cidade, Elinor começou a namorar um professor chamado Randolph Chester, e é a partir desse ponto que a barcaça maldita começaria sua jornada para um mundo obscuro e sinistro.

Até onde se sabe, o pai da moça, William MacGregor não aprovava o relacionamento. Ele proibiu a filha de ver Chester novamente, mas os dois pombinhos continuaram a namorar em segredo. Quando MacGregor descobriu sobre o caso secreto, ficou menos do que satisfeito. Ele realizou um plano para matar o desafeto. Certo dia os confrontou durante um de seus encontros depois de tê-los seguido se escondendo à espreita em seu local favorito numa área isolada da floresta. MacGregor saiu do esconderijo e começou a disparar seu rifle contra o casal, mas errou o adversário, acidentalmente alvejando a própria filha. Enfurecido, ele tentou atacar Chester com seu rifle vazio, empunhando-o como um porrete, mas o professor tinha uma pistola que havia escondido em seu casaco. Chester disparou a pistola e matou o oponente. No fim do embate, haviam dois cadáveres esparramados na clareira - pai e filha. 


Chester agiu em legítima defesa e não foi acusado de nenhum crime na morte de MacGregor. De fato, quando a polícia descobriu que o morto estava usando a barcaça para realizar operações de contrabando de bens roubados e outras atividades ilícitas, parecia que Chester havia feito um favor a eles. Todo o incidente chocou a cidade normalmente calma e pacífica, especialmente a morte de Elinor, que ao contrário de seu pai, era muito popular e bem quista na cidade. Foi uma época sombria, com muito luto e tristeza, mas o pior ainda estava por vir, já que outra tragédia cairia sobre Touseytown. 

Dizem que após a morte de Elinor MacGregor, a cidade outrora próspera começou a enfrentar um declínio repentino. Muitos reputam essa decadência a uma maldição rogada por McGregor no momento da sua morte, mas não se sabe ao certo se isso é mera lenda. Seja como for, houve colheitas ruins, acidentes, mau tempo e várias calamidades que atingiram a área, bem como problemas econômicos, que conspiraram para fazer com que as pessoas começassem a se mudar da região. O êxodo em massa de moradores tornou Touseytown uma cidade fantasma. 

Contudo, a barcaça de Tousey continuou em operação mesmo quando a cidade se desintegrava ao seu redor. Em 1845, a balsa foi comprada pela proeminente família Piatt, que a transformou em um luxuoso barco movido a vapor, mas isso teria vida curta. Um acidente estranho envolvendo o motor causaria a morte de cinco pessoas em 1846. A embarcação avariada foi consertada e revertida à versão antiga quando Abraham Sedam Piatt a vendeu para John Kizex em 1860.


Kizex, assim como MacGregor, era um brigão mal-humorado envolvido em atividades criminosas. Ele comprou a barcaça para fins insidiosos. Foi esse personagem desagradável que levaria a outro incidente sinistro. Em 1862, Michael Piatt, filho do patriarca e ex-proprietário da barcaça pegou a balsa para Kentucky no caminho de volta de Cincinnati, junto com um associado chamado Wilson Adams. Os dois eram conhecidos por serem bastante ricos e, de fato, carregavam cerca de US $ 1.000, o que era uma quantia considerável naqueles dias. Eles imediatamente se destacaram entre os pobres e rufiões que Kizex levava através do rio. O Capitão e seis de seus tripulantes planejaram roubar a dupla. 

Sentindo uma premonição de que Kizex e seus homens tinham planos malignos, Piatt habilmente os informou que havia colocado todo o seu dinheiro no banco antes de deixar Cincinnati, mas Adams deu a entender que carregava algo consigo. Perto de chegar ao Kentucky os bandidos fizeram seu movimento. Eles atacaram os dois comerciantes e os arrastaram para o porão. Lá Piatt ainda conseguiu sacar uma arma e atirar contra os ladrões, mas em maior número eles acabaram por dominá-lo. Em seguida os dois foram literalmente massacrados pelo bando. Para se livrar das evidências, os cadáveres foram esquartejados e lançados no rio amarrados em trouxas com pedras para afundar.

O desaparecimento dos dois rapazes, é claro levantou suspeitas sobre Kizex e seus homens, mas como não haviam provas nada pode ser levantado contra ele. Entretanto, Kizex começou a ficar paranóico, acreditando que algum de seus associados acabaria mais ou cedo ou mais tarde confessando o crime. Ele então passou a atrair os homens um a um para a barcaça, usando qualquer pretexto. No meio da viagem, os assassinava usando veneno, arma de fogo ou faca. Levava então os corpos para o porão, onde os esquartejava e jogava os restos nas águas do Rio Ohio como haviam feito anteriormente. O Capitão se livrou de pelo menos cinco de seus colegas dessa maneira, sendo que um dos envolvidos, um rapaz chamado Tom Robards foi mais esperto e fugiu.


Alguns anos depois, Kizex, que era um simpatizante do sul durante os tempos da Guerra Civil, conheceu um ex-soldado da União chamado George Fulcher. Aparentemente Fulcher, fazia viagens regulares na barcaça e dormia no porão. Ele reclamava de experimentar pesadelos macabros naquele lugar envolvendo homens horrivelmente mutilados. Certa noite, sem motivo aparente, Fulcher foi até o quarto do Capitão Kizex e cortou sua garganta. Ele foi encontrado em choque ao lado do corpo degolado com a faca ensanguentada ainda na mão. Fulcher não soube explicar porque havia feito aquilo, mas disse que os espíritos de homens que haviam morrido no porão o usaram como instrumento para sua vingança. O ex-soldado foi considerado insano e internado em um asilo para militares onde morreria anos mais tarde. 

Depois disso, a balsa foi comprada pelo Juiz local do Kentucky, capitão James Torril que manteve o trajeto em operação por algum tempo apesar de não ser nem um pouco lucrativo. Torril relatava histórias estranhas sobre sons misteriosos - gritos, choro e risadas, vindo do porão da barcaça. Dizia ainda que em dias especialmente quentes o porão exalava um fedor de carniça insuportável e que as pessoas que dormiam nele despertavam de pesadelos aos gritos. Sendo um juiz, Torril começou a pesquisar a história da embarcação e conseguiu localizar Tom Robbards que vivia no Kansas. Ele relatou toda a história da embarcação e confessou ter participado do assassinato de Piatt e Adams anos antes. Além disso, revelou suas suspeitas de que vários comparsas teriam sido mortos no porão. O serviço de transporte foi desativado em 1875. As pessoas temiam que a balsa era assombrada e poucos tinham coragem de viajar nela através do Rio.

Mas a história ainda não terminaria! Em 1892, um capitão chamado William Huff assumiu a operação acreditando que as histórias sobre maldição não passavam de mera superstição. Mas não demorou muito para a embarcação se acidentar num banco de areia. A causa para o acidente teria sido uma briga que eclodiu no convés entre cinco tripulantes bêbados e passageiros. Após o acidente matou duas pessoas e deixou ao menos 5 feridos.


A barcaça ainda que seriamente danificada foi recuperada do banco de areia e rebocada até uma doca para reparos. Considerando que haviam muitas outras balsas operando na área na época e nenhuma delas havia sido assombrada por tanto infortúnio e morte, começaram a circular rumores de que ela era realmente amaldiçoada. Uma história popular dava conta de que a décima terceira pessoa a possuir a balsa encontraria uma "ruína terrível". Isso não impediu que uma vez reparada, ela ainda mudasse de dono várias vezes. 

Aparentemente a Lawrenceburg Ferry permaneceu em operação até 1947, quando faliu com a abertura da mais sofisticada Aurora Ferry. O último registro que se tem da barcaça maldita é que ela teria sido destruída e queimada pelo seu último proprietários, um homem chamado David Hadcliff que sendo o décimo segundo dono não se sentiu à vontade para passá-la adiante. Hadcliff teria ordenado que ela fosse levada para o rio, coberta de gasolina e incendiada, embora isso possa ser apenas um rumor. Outro boato é que quando afundava a Barcaça Maldita emitiu sons semelhantes a gritos e um fedor horrível de carne queimada.

Seriam essas histórias simples coincidências sombrias girando em torno de uma embarcação comum? Elas seriam tão somente os atos de pessoas aleatórias? Ou haveria algo de realmente macabro nisso tudo? No final, é certamente uma esquisitice assustadora, mas com tantos relatos sinistros quem pode saber ao certo.