segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Madeira Morta - Árvores incrivelmente assustadoras e terrivelmente sinistras


O nome é Dendrophobia.

Enquanto a maioria das pessoas acham a visão de árvores algo tranquilizador e pacífico, aqueles que sofrem de Dendrophobia ficam absolutamente aterrorizados ao encarar galhos retorcidos e folhagem densa.

O medo irracional de árvores é algo muito mais comum do que se pode imaginar. 

Na verdade, árvores são categorizadas entre os cinco itens que mais causam aflição e terror nas pessoas ao redor do mundo. A fobia possui mais casos diagnosticados do que medos considerados comuns como aracnophobia (medo de aranha), cynophobia (medo de cães) e aquaphobia (medo da água).

Diferentes tipos de árvores podem afetar a pessoa afligida por essa condição, evocando uma sensação indescritível de ansiedade e paranoia. Em casos realmente graves, a pessoa desmaia, sofre ataques de pânico ou fica paralisada se forçada a se aproximar de uma árvore.

Mas o que causa esse medo tão específico?

O receio de ser esmagado por uma árvore em queda é um gatilho conhecido de Dendrophobia. O indivíduo evita florestas ou áreas com densa vegetação acreditando que pode ser vítima da queda fatal de uma árvore. O peso e o tamanho de algumas árvores despertam o terror no indivíduo. Às vezes, árvores sofrem infestações ou apodrecem por dentro e é isso que causa o medo irracional. A ideia de que árvores escondem em suas cascas insetos ou fungos pode também ser a causa da angústia.

Para alguns o medo só vem à noite, quando árvores anciãs projetam sombras sinistras como se seus galhos secos e contorcidos fossem braços se esticando para agarrar e puxar. A literatura gótica usava muito a imagem de velhas árvores - olmos, castanheiras e carvalhos - cujos galhos secos balançavam ao sabor do vento.

As lendas sobre árvores vivas - os Treants (Entes no folclore nórdico e na literatura do Senhor dos Anéis de Tolkien) - são muito antigas e remontam a Grécia, sendo também difundidas entre os povos britânicos e celtas. Longe de serem guardiões benevolentes da natureza interessados em proteger as florestas e matas virgens, as Árvores Vivas do mito original são entidades vingativas que odeiam os homens por cortar suas irmãs. Eles perseguem e esmagam aqueles que entram nas florestas em busca de lenha.

Em outros mitos difundidos na Idade Média, certas árvores podiam se tornar malignas quando cresciam nos arredores de cemitérios, valas e campos de batalha onde notoriamente haviam ocorrido muitas mortes violentas. No folclore medieval, as árvores que cresciam nesses lugares eram envenenadas a medida que suas raízes profundas tocavam nos cadáveres sepultados e deles se alimentavam. O próprio solo se tornava negro com as carcaças e isso repercutia na vegetação, sobretudo nas árvores. Quando uma árvore crescia se contorcendo acreditava-se que isso representava a agonia dos mortos sepultados aos seus pés.

Na mesma época, algumas árvores passaram a ser associadas com crueldade e sofrimento. As árvores dos enforcados (hangman tree), eram usadas para executar criminosos conforme a brutal justiça medieval. Árvores de troncos grossos e fortes eram escolhidas para essa tarefa. Ao redor deles se lançava uma corda e na ponta o condenado era pendurado até sufocar. Após a morte, o corpo ficava pendurados por dias a fio como recado para outros criminosos. No entender medieval, as árvores ficavam contaminadas pelo mal dos homens nelas enforcados ou fantasmas podiam possuí-las malignamente.

Mas nem sempre foi assim. Antes da Cristandade se instalar na Europa, algumas árvores eram consideradas sagradas por culturas pagãs. Os Druidas celtas e bretãos reverenciavam as grandes e antigas árvores que cresciam magnânimas nas florestas primordiais da Europa. Aquelas que eram tocadas pelos deuses (por exemplo um carvalho atingido por um raio) eram consideradas ainda mais importantes para os rituais. Nas celebrações pagãs, as árvores desempenhavam um papel fundamental como testemunhas dos deuses, daí o costume de entalhar rostos humanos nos troncos.

Talvez por terem representado uma comunhão divina para as comunidades pagãs, é que os primeiros cristãos difundiram a ideia que certas árvores eram malignas. Quando os cultos pagãos foram desarticulados, centenas de árvores vieram abaixo com eles. É possível que o temor pelas árvores seja uma reminiscência desse temor antigo ainda causando danos psicológicos.

Vou confessar uma coisa: árvores me deixam nervoso. Longe de ser uma fobia, mas não me sinto muito à vontade perto delas, sobretudo aquelas que tem troncos parecidos com rostos distorcidos ou galhos que lembram braços.

Mas acho que não seria o único a ficar intimidado diante de árvores bizarras como estas das imagens à seguir:



Essas árvores estão em um Parque do Canadá e são consideradas (junto com a árvore no topo desse artigo) como as três árvores de aparência mais sinistra do mundo. Essa mais de baixo é incrível, parece ter sido moldada como um ídolo com braços erguidos, uma barba espinhosa e costelas na base do "corpo".


Essa daqui é bisonha demais... parece a face deformada de um animal. Olhos, nariz e boca ficam muito claros nessa ângulo.



Ruínas de Angkor Wat, no Camboja

Árvores com mais de 1000 anos virtualmente engoliram os restos da antiga cidade crescendo (quase se derramando) por cima dos prédios de pedra que sobreviveram. As raízes são tão grandes que destruíram o piso de pedra e envolveram as construções fundindo-se a elas de maneira orgânica.



Uma árvore particularmente bizarra em Ontário, Canadá. 

Um dos principais parques nacionais do Canadá, o Ridgemont Reserve, é considerado o parque com os mais bizarros troncos do mundo. Uma placa na entrada do parque possui inclusive um aviso para que pessoas impressionáveis evitem entrar sozinhas.


Screaming Trees (Árvores gritadoras), no parque Hither Hills, interior de Nova York.


As árvores do Parque de San Francisco, na Califórnia, são consideradas as mais contorcidas da América. Elas tem a estranha característica de se torcer de maneira absurda e seus galhos parecem imensos tentáculos.


Um dos temores mais recorrentes entre os indivíduos afligidos pela Dendrophobia é justamente o temor de serem agarrados e ter seus movimentos restringidos por galhos de árvore. Estas pessoas tem verdadeiro pavor de encostar em galhos e o simples roçar da pele em madeira causa um efeito danoso.

Em 2001, uma pesquisa feita pela Associação de Psiquiatria Norte Americana relacionou os materiais que mais causavam desconforto nos entrevistados. O primeiro lugar foi para substâncias porosas, a segunda posição coube a madeira.


Rostos distorcidos, faces macabras e sorrisos maldosos nos tronco de árvores.


Na antiguidade algumas religiões pagãs acreditavam que árvores antigas eram capazes de reter a alma das pessoas que ficavam aprisionadas pela eternidade. Isso fazia surgir nos troncos os rostos transfigurados em agonia dessas pessoas. 

Alguns rituais celtas envolviam sacrifícios ocorridos em florestas nos quais o Druida executava a vítima amarrada no tronco de uma árvore afim de que seu espírito se fundisse com a madeira. O sangue da vítima por vezes era drenado e injetado no interior do caule, ou então derramado nas raízes para que pudesse ser sorvido. A ideia é que o sangue da vida se misturava à seiva da árvore unindo os dois para sempre.

Embora fosse uma punição cruel, alguns Druidas se submetiam a esse ritual para se converter em eternos guardiões das clareiras sagradas.


Essa famosa árvore do interior da Nova Inglaterra foi usada como base para a criação da "Twisted Tree" que aparece no filme "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" e também no filme "Alice no País das Maravilhas", ambos do diretor Tim Burton. 


A clássica árvore no meio do nada... não dá uma sensação estranha imaginar porque apenas essa árvore restou no local?

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Natureza Assassina - Relatos sobre árvores capazes de matar



Nesse planeta verdejante e fértil, as árvores estão ao nosso redor, e para a maioria das pessoas elas não passam de parte da paisagem. Um mar verde tranquilizante no meio do qual nós vivemos. Em geral as pessoas não pensam muito a respeito de árvores, e elas não são tipicamente consideradas ameaçadoras, insidiosas ou mortais. Afinal, são "apenas" árvores, certo?

Ainda assim, ao longo da história existem narrativas de algumas árvores que desafiam esses conceitos, e se tornam objetos de pavor. Essas são as misteriosas árvores do mundo, que se recusam a ser meramente parte da paisagem, e que segundo as lendas, tem sede de sangue. Essas são as árvores que ameaçam pessoas e possuem a bizarra reputação de ser muito mais do que troncos, folhas e galhos... elas são assassinas sinistras.

Histórias de árvores homicidas podem ser encontradas no mundo inteiro e surgem de várias formas. Uma muito curiosa surgiu em 1885, quando uma expedição alemã à Nova Guiné, comandada pelo Tenente von Immer Gassende, integrada pelo famoso Dr. Kummel, encontrou uma estranha e até então, única, árvore na densa selva infestada de mosquitos daquele país. A expedição aportou na costa do Cabo Della Torre e seguiu se embrenhando numa selva pantanosa, repleta de tribos hostis e hordas de animais venenosos. Após uma fatigante jornada de 12 dias através de um território de vegetação quase impenetrável, atormentados por ataques de nativos, e incontáveis obstáculos naturais, eles conseguiram finalmente escalar uma elevação e acessar um platô, onde encontraram uma área aberta, bem mais fácil. Mas essa área aparentemente pacífica trazia seus próprios desafios. Para começar, as bússolas se comportavam de uma maneira que Gassende descreveu como "absurda".  Encontraram também estranhos esqueletos de animais espalhados pelas clareiras e a curiosa ausência dos sons típicos de uma selva.

Através de toda jornada, o Dr. Kummel incansavelmente procurava por novas espécies de animais e plantas, e ele teve sucesso em catalogar várias descobertas. Contudo, naquele lugar agradável que eles haviam chegado, não encontravam nada digno de nota. Entretanto, em determinado ponto de uma clareira ele se deparou com uma imensa árvore diferente de todas que ele havia visto até então na sua carreira de botânico. A área ao redor da árvore estava cercada por estranhas protuberâncias que pareciam brotar do solo formando um círculo. Era certamente uma descoberta surpreendente, sobretudo porque essas estruturas pareciam se formar a partir das raízes da árvore principal. Em um determinado momento, um dos homens fez um corte numa dessas protuberâncias com sua machete e foi então que as coisas ficaram realmente estranhas.     

O corte casual no galho revelou que a seiva era escura e viscosa em seu centro. Dr. Kummel, que nunca havia visto nada semelhante, se apressou para coletar uma amostra do espécime, mas antes de conseguir fazê-lo começou a gritar até que perdeu os sentidos. Quando outros membros da expedição correram para acudi-lo, o botânico relatou o que havia acontecido. Quando ele estendeu a mão para coletar a amostra, recebeu uma forte descarga elétrica. Um dos homens se mostrou cético diante da explicação, e também tentou tocar a planta, imeditamente ele experimentou um choque que o jogou no chão. Nesse momento, Gassende resolveu tentar uma experiência. Ele apanhou um fio de cobre e colocou uma extremidade de cada lado, o que gerou uma reação impressionante com faíscas que evidenciaram uma "poderosa corrente". Gassende escreveu em seu diário da expedição:

"Cada galho e graveto da árvore, apresentava uma corrente elétrica bastante forte. O mais grosso era o que apresentava a carga mais poderosa e medindo a potência logo ficou claro que uma corrente circulava através de todo o sistema. Como ele se manifesta, nenhum de nós foi capaz de determinar, mas sabemos que a descarga é forte o bastante para derrubar um homem adulto. Nós fizemos vários experimentos com a curiosa árvore, e a teríamos cortado em busca de mais respostas, mas tudo a respeito dela parecia extremamente perigoso. Nós encontramos outras árvores similares na floresta e descobrimos que ela não era o único espécime presente".


Infelizmente, pouco depois, a expedição foi forçada a retornar para sua base, quando Gassende e outros membros contraíram uma grave febre tropical. As investigações a respeito da árvore elétrica se encerraram nesse ponto. Os membros da expedição coletaram amostras das árvores, incluindo pedaços de sua madeira, da seiva, algumas sementes e folhas. Esse material, acabou se perdendo quando um dos barcos de carga que compunham a expedição naufragou. O Dr. Kummel mais tarde especulou sobre a possibilidade da árvore elétrica ser a responsável pela grande quantidade de ossadas de animais nas clareiras, uma vez que os potentes choques elétricos poderiam facilmente matar animais de médio porte que delas se aproximassem. Ele batizou a árvore com o nome Elassia elétrica. Considerando que não existia nada semelhante a essa espécie no mundo vegetal conhecido, tratava-se de uma incrível descoberta, que jamais pode ser corroborada.

Expedições posteriores que conseguiram chegar ao local quase uma década mais tarde não descobriram sinal das árvores elétricas, embora o platô tenha sido encontrado usando os mapas feitos por Gassende. Uma das expedições verificou que alguns anos antes, uma enorme enchente havia atingido o platô destruindo boa parte da vegetação que foi arrastada para o vale abaixo. Isso poderia explicara a ausência quase completa de árvores adultas nas cercanias. Vale a pena notar que a expedição posterior verificou a existência de muitas ossadas no terreno, sem que existisse uma explicação para a concentração elevada de animais mortos. Não se sabe se as Árvore elétricas da Nova Guiné, se é que existiam, foram responsáveis por matar os animais, mas sem dúvida descargas elétricas seriam um mecanismo de defesa impressionante. 

Na natureza, entretanto, existiria um outro exemplo de árvore capaz de caçar e matar suas presas. Escondida nas remotas selvas do sul do México acredita-se que existe uma espécie de árvore predatória conhecida vulgarmente como "Árvore Cobra". Essa misteriosa árvore cresceria até atingir seis metros de altura, desenvolvendo um tronco maciço e nodoso. A árvore não teria folhagem, e era segundo testemunhas cheia de galhos finos e flexíveis, semelhantes ao corpo de serpentes. Mais aterrorizante, os galhos se encolhiam e estendiam, como se tentassem agarrar e puxar, exatamente como répteis famintos. Quando um pássaro ou mamífero pequeno se aproximava da árvore, ela supostamente lançava um de seus galhos como um tentáculo para capturá-lo. Ainda supostamente, a árvore agarrava suas presas com o intuito de puxa-la para perto de suas raízes onde estas drenavam seu sangue e o usavam como nutriente. Ao redor do tronco da árvore, os restos de presas se empilhavam deixando um horrendo cartão de visitas.

Embora a árvore cobra aparentemente se alimentasse de pequenos animais, existe ao menos uma narrativa de tais plantas tentando atacar um ser humano. Em um relato datando de 1890, um botânico que estava no México catalogando novos espécimes encontrou uma árvore cobra, no exato momento em que ela agarrava um pássaro. O botânico, curioso com sua descoberta, se aproximou para ver melhor, quando sem aviso vários galhos se esticaram na sua direção tentando capturá-lo:

"Eu me aproximei o máximo possível para examinar a planta. Ela era baixa, não tinha mais do que quatro metros, mas ela cobria uma grande área. Seu tronco era grosso, cheio de nós e com um aspecto escamoso. No topo do tronco, a alguns metros do chão, seus galhos se curvavam e se lançavam no ar como se fossem dedos compridos que se moviam. Sua aparência era a de uma imensa tarântula aguardando pela sua presa. Eu toquei levemente um dos galhos e ele se moveu como que por instinto, tentando segurar com força".


Outra árvore agressiva teria sido encontrada na parte mais selvagem do estado do Arizona, nos Estados Unidos. Em 1894 foi feito o relato a respeito de uma árvore de espécie conífera, medindo pelo menos 7 metros de altura, com galhos finos e afiados como um porco-espinho. Quando em estado relaxado, os galhos se mantinham próximos do tronco, e ela espalhava no ar um cheiro agradável ao seu redor. Entretanto, quando alguém se aproximava os galhos imediatamente se expandiam e o odor agradável era substituído por um fedor ocre. Segundo as pessoas que diziam conhecer essa árvore, essa reação ocorria sempre que alguma coisa se aproximava da árvore, fosse um cão, um urso, coiote ou leão da montanha. Se um animal chegasse perto o bastante, a árvore fazia seu ataque e agarrava a presa com força. A medida que ela restringia seu movimento, mais galhos iam se juntando para paralisar o inimigo até esmagá-lo. Os galhos seriam tão resistentes quanto flexíveis, suportando golpes de lâmina e até armas de fogo. 

Um oficial do exército americano, o Coronel Brace Dion, escreveu a respeito da bizarra árvore:

"Entre as coisas estranhas que eu encontrei em meu período de serviço no Arizona, nada era mais esquisito do que uma árvore que agia com temperamento agressivo contra qualquer pessoa que dela se aproximava. Alguns habitantes de Houck Tank chama ela de Árvore porco-espinho, embora alguns se referem a ela como Árvore gambá, por causa do fedor que dela exala. Eu a chamo de Árvore do Horror. Mas não importa do que você a chame, ela é uma aberração da natureza, e um fruto do solo do Arizona". 

Uma árvore bizarra e perigosa também teria sido descoberta na parte norte do Havai em 1895. Um botânico inglês estava explorando a região quando entrou em uma ravina que seu guia local o advertiu para não invadir. O homem não queria explicar os motivos para sua aversão a respeito da área, mas ele claramente estava incomodado. Acreditando se tratar de apenas alguma superstição, o botânico decidiu seguir adiante encontrando um descampado de 100 jardas com vários buracos profundos no solo. Próximo de alguns desses recessos estavam ossadas amareladas de animais e até memso seres humanos. Ele percebeu que não havia outras plantas nos arredores e que tudo estava incrivelmente quieto. No centro do descampado, de um buraco maior, surgiam alguns ramos de trepadeira, semelhante a gavilhas que se estendiam pelo chão.  

Uma vez que estava perto de escurecer e o guia não parava de chamar por ele e implorar para irem embora, o botânico acabou desistindo de sua investigação. No dia seguinte, ele retornou acompanhado de outro guia nativo que realizou um tipo de "ritual de proteção" que os protegeria contra todo mal. Enquanto se aproximavam da área, o guia mostrou ao botânico um buraco semelhante de onde brotavam as mesmas gavilhas de aspecto curioso. Quando fez menção de se aproximar, o guia o conteve e apontou para os vários ossos que estavam ocultos ao redor da depressão. O guia então apanhou uma pedra e jogou entre os ossos e os dois viram as gavilhas se mover rapidamente para tentar agarrar e puxar para dentro do buraco. 


Acreditando estar diante de algo perigoso, o botânico começou a se afastar da bizarra árvore, mas a medida que ele o fez não percebeu que havia outro buraco oculto e perdeu o equilíbrio, quase caindo nele. O guia o ajudou a levantar, mas antes ele percebeu que as gavilhas agarraram suas pernas e começou a puxar para baixo. Ao mesmo tempo, ele ouviu um ruído que preencheu o ar como uma vibração baixa. O botânico jamais soube exatamente o que vivia no interior daquele buraco, mas acreditava que se não fosse a ajuda do guia, ele teria sido arrastado lá para dentro. 

É claro, a história não passa de um exagero sensacionalista, ainda assim, no folclore havaiano não faltam lendas sobre árvores assassinas que atraem e devoram animais e homens. Existe um espírito de aventura e mistério em várias dessas histórias, com exploradores corajosos em terras exóticas, confrontados por bizarras plantas assassinas em regiões desconhecidas e perdidas do planeta.  

Outra narrativa semelhante diz respeito a uma árvore mortal que supostamente seria nativa da Ilha de Java, nos domínios das Índias Orientais, e que receberam o nome de Bohon Upas, sendo "upas" a palavra javanesa para "veneno". No oriente, os nativos conheciam a mesma planta com o nome de "A Árvore mais mortal". Uma das primeiras menções a essa árvore foi feita pelo Frade católico francês Jordanus, que no século XIV escreveu a respeito de árvores que produziam flores capazes de lançar uma nuvem de veneno para matar quem delas se aproximava. Relatos semelhantes a respeito de árvores igualmente malignas surgiam esporadicamente e compêndios de Ciências naturais. Quando os exploradores começaram a entrar nas selvas de Java, alguns devem ter se lembrado dessas lendas. Java se tornou em pouco tempo o paraíso (ou seria inferno) das plantas venenosas.   

A lenda da Bohon Upas realmente ganhou fama e popularidade no século XVIII, quando um médico e naturalista alemão chamado J.N. Foersch afirmou ter encontrado um espécime dela em 1783. Ele publicou um artigo na London Magazine no qual contava sua experiência com árvores assassinas existentes nas colônias holandesas do oriente. Como cirurgião servindo na região, ele alegava ter participado de várias expedições e encontrado as árvore frente a frente. Em seu relato Foersch disse que conhecia apenas uma árvore dessa espécie, e que ela havia sido encontrada nas selvas de Java em uma área isolada no sopé das altas montanhas centrais. A árvore tinha uma reputação conhecida entre os nativos. Uma vasta área ao redor dela era destituída de vida animal e vegetal, nem mesmo grama crescia nas imediações e todos os animais que entravam em sua área acabavam intoxicados pelo "fedor pútrido que ela exalava". Mesmo pássaros que passavam voando à grande altitude eram afetados e mergulhavam para a morte. 


Foersch contou ter circunavegado este deserto mortal e se aproximou de um eremita que vivia nos limites da terra desolada. O homem contou que era uma espécie de guardião que impedia a aproximação de pessoas desavisadas. Ele também contou que os nativos mandavam de tempos em tempos um inimigo capturado ou criminoso para se aproximar da árvore e obter sua resina extremamente potente e desejada. Aqueles que conseguiam retornar trazendo uma amostra conquistavam sua liberdade e ainda recebiam uma recompensa. O velho explicou que os criminosos recebiam uma roupa com capuz e dois pedaços de vidro para cobrir os olhos, material para se proteger do veneno mortal. Para remover a seiva usavam luvas grossas feitas de lona e uma faca especial para sangrar o tronco da árvore e coletar numa cabaça a seiva tóxica. De acordo como velho, apenas um entre dez desses pobres diabos conseguia completar a tarefa, os outros ficavam pelo caminho. Suas carcaças inchadas cobriam o percurso e depois seus ossos secavam ao sol. De acordo com Foersch, a resina venenosa coletada da árvore era usada como um poderoso narcótico em rituais ou para matar inimigos que morriam em uma agonia indescritível, contorcendo-se de forma medonha.   

Por mais detalhada que seja essa narrativa, é poiuco provável que essa árvore seque tenha existido. Mesmo na época em que o artigo foi divulgado, vários botânicos vieram à público dizer que tal árvore era impossível, e que a história não passava de um conto de ação e aventura para glorificar o próprio Foersch. A história no entanto parece ter sido amplamente pesquisada pelo botânico que aproveitou várias lendas de nativos para construir seu mito. Por exemplo, existe de fato uma árvore chamada Upas, na qual os nativos embebem as flechas afim de envenenar seus inimigos. A árvore realmente possui um odor pungente de podridão que se espalha por várias milhas, sendo carregado pelo vento e empesteando tudo nos meses que ela floreia. Apesar do fedor, ela não produz nada além de um incômodo. É possível que o trecho a respeito do veneno tóxico também contenha um fundo de verdade, mas por outros motivos. Java fica em uma área de grande atividade vulcânica, com fossos de ventilação de câmaras térmicas exalando gases carbônicos e enxofre. O veneno mortal poderia ser criado pelo vapor vulcânico que era chamado "Guava upas" (Ar venenoso) pelos indígenas. Isso explicaria a quantidade de esqueletos de animais e homens na selva. 

Mesmo a ideia de homens indo buscar resina na selva, pode ter se originado de tradições das tribos javanesas que usavam seus prisioneiros para missões perigosas. Buscar enxofre na beirada de crateras vulcânicas era uma das atividades mais perigosas e em geral ela era oferecida a criminosos e inimigos feitos prisioneiros. Não se sabe se realmente uma árvore chamada Bohon Upas existiu ou não, mas é, sem dúvida, uma fábula intrigante.     

Outra árvore venenosa assassina semelhante a Bobon Upas alegadamente existia em uma área selvagem da África do Sul. Ela se tornou conhecida no século XIX e seria nativa da Terra dos Zulus. Chamada Umdhlebi ou Umdhlebe, o que significa nada menos do que "A Árvore da Morte" no idioma zulu, segundo a lenda a árvore matava suas vítimas com um perfume adocicado fatal que era lançado pelas suas flores. Ela não devorava suas presas, ao invés disso, aqueles que morriam próximos a ela acabavam fertilizando o solo permitindo que a árvore se beneficiasse. Ainda segundo as lendas, próximo da árvore existiam pilhas de esqueletos e carcaças de animais em decomposição. Inalar o perfume não era perigoso, contudo quando a árvore lançava uma nuvem concentrada do polem tóxico, estar perto, já podia ser fatal. 

Exploradores que se aproximaram excessivamente da Umdhlebi relatavam uma série de sintomas desagradáveis: dores de cabeça, náusea, tontura, olhos vermelhos, delírios e é claro, a morte. Além disso, uma severa coceira alérgica também era um dos sinais indicativos de que o veneno estava em ação. A seiva da árvore podia causar queimaduras e até derreter metal. Sua madeira também era tóxica e se usada inadvertidamente como lenha produzia uma nuvem venenosa capaz de matar uma aldeia inteira. Algumas lendas afirmavam que a árvore era capaz de sair do chão e caminhar por conta própria, movendo-se de um ponto para outro quando as presas se tornavam escassas numa área em que sabidamente ela se encontrava.


É interessante que segundo o mito, o único antídoto para o veneno da árvore seria o seu próprio fruto que tinha uma forma vermelha e preta, parecendo tão letal em aparência que ninguém ousava experimentá-la. Também de interesse é que vários biólogos como Henry Callaway e o botânico William Turner Thiselton-Dyer, fizeram uma comparação direta entre o Umdhlebi e a Bohon Upas, indo ao ponto de sugerir que elas poderiam ser espécies próximas.

Pode ser que nunca saibamos ao certo se qualquer uma dessas incríveis Árvores Assassinas realmente existiram ou não. Elas jamais foram encontradas ou formalmente estudadas pela ciência, portanto, podemos meramente especular a respeito delas. Entretanto, o que podemos ter certeza é que a ideia de árvores ameaçadoras estabeleceram uma poderosa presença em nosso imaginário coletivo. Há algo de peculiar, macabro e ao mesmo tempo fascinante na noção de que tais organismos, que parecem tão tranquilos e pacíficos, possam na verdade esconder instintos predatórios. A noção de que árvores podem matar é estranha e bizarra, provavelmente até insensata, mas ainda assim, nos cativa a imaginação.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O Campo desolado e a Árvore do Diabo - Uma investigação interrompida


Por LP Giehl

Arquivo encontrado num laptop.

Perto de Serro Negro, existe um campo desolado. 

O lugar é distante e pouco acessível, nenhum morador local vai até lá e quem tem juízo tende a evitá-lo. Eles acreditam que em meio a vegetação mal cuidada e selvagem daquela campina, cresce algo muito ruim.

É uma área remota, que fica a pelo menos duas horas de caminhada por um trecho onde não há casas ou habitações. A trilha que conduz ao local, segundo todos que consultei, é traiçoeira, segue por um trecho coberto de erva daninha e urtiga. Também há espinheiros enormes e atoleiros que são praticamente inevitáveis. Até mesmo a vida selvagem evita o lugar, tanto que não se ouve o piar de aves, o ruído ocupado de grilos ou o zumbido de abelhas. É difícil se guiar por esse matagal sem sofrer um corte ou um ferimento leve que seja. Os habitantes de Serro Negro que conhecem a área, dizem que isso até é bom: "Mantém as crianças longe!" afirmam as mães preocupadas.

Chegar até o descampado pode não ser fácil, mas uma vez se aproximando dele, é impossível não reconhecer o lugar exato e entender os motivos para tanto disse me disse. A aura ali, reforçam as testemunhas, é pesada. Alguns desencorajam que indivíduos sensíveis ou impressionáveis se aproximem do lugar, pois ele costuma afetá-los de maneira negativa. 

Minha mãe que nasceu e viveu em Serro até os 21 anos, conta que quando era adolescente, ouviu a seguinte história que suas amigas relatam na forma de confidência. Um casal de namoradinhos procurava o local exato das histórias que ouviam desde a infância. Ao chegar perto, a moça começou a sentir uma inquietação crescente que aos poucos se converteu em uma paranoia insuportável. Ela fugiu em disparada, amedrontada por algo que aparentemente só ela era capaz de perceber. O rapaz tentou contê-la, mas não teve jeito. Ao menos ele teve o bom senso de buscar ajuda e contar o que havia acontecido. A moça só foi encontrada três dias depois por um grupo de voluntários que vasculharam o local. "Estava em estado de choque, quase morreu de medo", contou minha mãe.

Quando perguntei quando isso aconteceu, ela deu de ombros: "Foi há muito tempo", e quando eu ri, ela me olhou com uma expressão muito séria. "Eu conhecia a moça, ela era dois anos mais velha que eu" e depois não quis falar mais a respeito apesar de eu me desculpar e insistir para ouvir mais algum detalhe. 

Eu sei bem como é isso. O povo de Serro Negro tende a ser muito introvertido quando o assunto são as coisas esquisitas de sua terra. Alguns mencionam, mas poucos confirmam essas e outras histórias. 

Em minha última passagem por Serro Negro, essa pitoresca cidadezinha do interior do (---), com pouco mais de 80 mil habitantes eu procurei saber um pouco mais a respeito da história local. Afinal, embora tenha nascido lá, meus pais partiram um ano depois para viver na cidade grande. Mas, uma vez que uma parte substancial da família ainda reside por lá, de quando em quando, nós fazemos uma visita e eu aproveito para entrar em contato com sua peculiar história. 

Apurei, fazendo perguntas a parentes, amigos e conhecidos que boatos a respeito dessa área remontam ao passado da cidade quando os primeiros colonos se fixaram na região, isso por volta de 1840. Muitas histórias mencionam uma presença maligna que permeia esse trecho de floresta fechada. Penso que se uma pequena parcela dessas histórias forem verdade, o local desolado deve ser realmente aterrorizante. 
  
Mas o pior é, conforme o consenso geral, o marco único que cresce no descampado. Erguendo-se solitário, em meio a campina isolada encontra-se um carvalho ancestral. Com incontáveis anos de idade, seus galhos sem folhas, parecendo dedos descarnados, se esticam para o céu cinzento, como se capazes de arranhar o firmamento. Sempre esteve lá e aparentemente sempre estará.

Ela é conhecida como a Árvore do Diabo.

Sobre essa árvore velha abundam lendas de um poder maligno que afeta quem dela se aproxima. Uma das minhas histórias favoritas, ouvidas do avô de uma amiga, diz respeito a um fazendeiro chamado Heitor Gouveia de Camargo que arrendou as terras próximas que faziam fronteira com a tal campina proibida. Tudo ocorreu em 1900 e a fazenda que pertenceu aos Gouveia de Camargo ainda existe, corroborando, segundo o avô dessa amiga, cada um dos fatos medonhos. 

Diz a lenda que em um momento especialmente exasperante de estiagem, a fazenda entrou em franca decadência. Uma vez que nada crescia na terra estéril, a depressão lançou sementes na mente de Heitor, a única coisa que floresceu naquela temporada. Sofrendo com seu fracasso, o agricultor reuniu sua família e pediu que eles o acompanhassem em um picnic aos pés da árvore sinistra. Apesar de estranharem o convite, uma vez lá, a família formada por três crianças e mais a mulher, comeu, bebeu e se divertiu como não fazia há tempo. Lá pelas tantas, uma das crianças começou a sentir um incômodo, depois a outra e logo todas e mais a mulher estavam sem ar e vomitando. O pai então revelou que havia envenenado a limonada que eles haviam bebido. 

A medida que a família sofria com os efeitos do veneno, Heitor assistia seus filhos e esposa sofrerem convulsões e espumar pela boca: mas apesar do sofrimento, o alívio da morte não vinha! A quantidade de veneno na jarra de suco havia sido mal calculada e não fora suficiente para matá-los, ao invés disso, os levou a um bizarro estado espasmódico.

Transtornado, Heitor correu para a fazenda e voltou às pressas carregando consigo um machado que apanhou no galpão. A lâmina afiada fez o serviço que o veneno não cumpriu. Ao fim da medonha tarefa, a campina estava vermelha, a grama e o solo beberam avidamente o sangue dos inocentes. Sob o peso incomensurável da culpa, o fazendeiro lançou uma corda em um dos galhos do velho carvalho e nele se enforcou. Por horas seu corpo pendeu sem vida, de um lado para o outro na brisa até ser achado por um morador que passava por ali.

"Alguns afirmaram ver uma sombra espectral pendendo no mesmo galho", salientou o velho de 83 anos, lúcido como se tivesse metade dessa idade.

Ele concluiu a história dizendo que depois da tragédia, como que por um feitiço maldito, a fazenda se tornou fértil e os campos já semeados pela família Gouveia de Camargo renderam uma colheita incrível. Mas como ninguém ousou fazer a colheita, tudo permaneceu ali, intocável até se deteriorar.

Mas essa não foi a única história diabólica a respeito da Árvore do Diabo que apurei. 

Há outra que data de 1927 e sobre a qual encontrei comprovação no semanário local, um jornaleco chamado Gazeta Serrana que já se tornou centenário. É surpreendente que na sede do jornal, exista um registro completo de suas publicações, desde sua fundação no ano de 1918. No arquivo repleto de edições amareladas e com tinta já desaparecendo, achei a história que foi complementada pela narrativa de V(---) G(---), irmão mais velho do meu pai. 

Eu sabia de certas coisas sobre o passado de Serro, mas ler a respeito disso foi impressionante. Na época, havia muito preconceito em Serro e em várias cidades do interior. E esse preconceito ganhava força através da ação de grupos que se organizavam para "agir nos interesses dos cidadãos de bem". V(---) contou que entre os membros desses grupos formados por cidadãos respeitáveis estavam muitos donos de terras. Os encontros deles costumava acontecer justamente no descampado proibido, um lugar afastado que se prestava perfeitamente ao sigilo que procuravam. O grupo não apenas se reunia para discutir ali seus assuntos, mas costumavam fazer lá seus atos de justiçamento.

Um galho da Árvore do Diabo que crescia mais grosso e forte ganhou fama como "o galho da corda". Era ali que linchavam aqueles que desafiavam as convenções sociais: Um rapaz de cor que havia cometido a ousadia de se engraçar com uma "moça de família", um ladrão de galinhas apanhado no ato e um rapaz que entrou numa casa e roubou algumas quinquilharias... É irônico, mas até então as atividades do bando não haviam despertado a atenção das autoridades. Bastou entretanto, que seus membros enforcassem um outro dono de terra que não compartilhava de suas crenças para que a polícia agisse. Cinco homens foram presos após grande pressão popular. Meu tio lembrava o nome de cada uma dessas pessoas e quando comparei com a notícia no jornal, descobri que ele estava absolutamente certo. Para minha vergonha, um deles, ele contou sorrindo, era inclusive parte de um ramo distante da nossa família. 

Entre os acusados havia também um emérito vereador que meu tio disse "foi o único a escapar livre. Se elegeu por outra cidade anos mais tarde. Morreu em 1950" Todos os acusados foram levados até o local, onde forçados a cooperar mostraram onde suas vítimas foram enterradas: perto da Árvore do Diabo. 

Em um detalhe final de perplexidade, um dos acusados confessou que para lembrarem de quem havia sido linchado, após cada homicídio, uma orelha era removida e colocada em um buraco no tronco da árvore amaldiçoada. Dentro do tal buraco, um delegado (pai de um colega de pescaria de meu tio!) encontrou um fio de arame com meia dúzia de orelhas trespassadas, como se fossem as contas de um colar macabro.

Quando meu tio terminou de contar a história, assegurou que aqueles eram outros tempos e que as pessoas então faziam coisas horríveis. Ele me assegurou que não era mais assim em Serro: "Já faz um tempo!".

Ainda enquanto procurava histórias a respeito da região, encontrei outro fragmento de lenda curioso que transcrevo aqui: 

Aparentemente em 1955, um sujeito misterioso, um eremita que habitava as cercanias e que atendia pelo apelido de "Velho Nicolau" espreitava o perímetro monitorando a atividade de estranhos. Histórias sugerem que esse "guardião" cortava as estradas marginais de terra dirigindo uma caminhoneta Ford preta em alta velocidade. Ele perseguia qualquer um que se aproximasse da árvore, tentando atropelar quem desrespeitasse aquela ermida profana.

Certa vez dois meninos chamados F(---) e B(---) voltaram esbaforidos de uma expedição ao bosque na qual se aproximaram demais de onde não deveriam. Contaram ter sido perseguidos pelo "Velho Nicolau" e sua caminhoneta preta que empreendeu uma perseguição homicida pelas trilhas de terra batida. Um outro menino de 10 anos chamado S(---) não teve a mesma sorte e a família preocupada, sem saber dele, pediu ajuda ao delegado (que por acaso, era o mesmo delegado do caso anterior!).

Os grupos de busca adentraram na mata e procuraram pelo menino sumido sem achar sinal de seu paradeiro. Por fim, um grupo, guiado por cães, seguiu uma pista que os levou até a Árvore do Diabo. Acharam ali marcas de pneu na relva amassada. Ao seguir a trilha fresca se espantaram uma vez que os rastros de pneu, condizentes com uma caminhoneta Ford, desapareciam exatamente diante do tronco do velho carvalho. Do menino S(---), nunca mais se ouviu falar. Já a caminhoneta do Velho Nicolau se tornou uma assombração recorrente nas estradas marginais de Serro.

Essa história eu ouvi do neto do Delegado que esteve presente em ambos os casos, nesse e dos linchadores. Esse senhor, depois de uma relutância inicial, teve a gentileza de me mostrar uma caixa de sapatos onde seu avô guardava os papeis e documentos da época, entre os quais estavam recortes de jornal e outros documentos muito interessantes. Ele disse que o avô nunca falou abertamente sobre suas experiências como delegado em Serro Negro e que apesar de ter nascido, vivido e morrido na cidade sempre contemplou o ideal de ir embora pois "o lugar e sua gente não prestavam". 

Com todas essas histórias aterradoras, eu comecei a me perguntar, por que a maldita árvore continuava ainda de pé e ninguém ousava colocá-la abaixo. Senão por superstição, ao menos para alívio de toda comunidade, alguém poderia já ter feito isso.

Fato é que falar, nesse caso, é mais fácil do que fazer. 

O velho carvalho pelo que contou tio V(---) era impossível de ser destruído. Habitantes locais juravam que o vento que fazia toda vegetação se curvar não vergava os galhos que desafiadores suportavam o castigo. Mesmo depois de fortes chuvas como a que desancou em 1978 e 1982, ele continuava lá. Muitos tentaram em vão lenhá-lo, com machado e serra, mas nada foi capaz de derrubar a Árvore do Diabo. 

Haviam marcas e sinais atestando as tentativas realizadas, mas todas tentativas fracassaram em determinado ponto. Por muito tempo, um rumor dava conta de que um sujeito chamado J(---) L(---), dono de um comércio na cidade tentou extirpar o mal daquela árvore maldita: após cortar fundo em seus flancos passou uma corda ao seu redor e tentou tombá-la puxando com toda força de sua pick-up. Em determinado momento, entretanto, a corda rompeu e o veículo desceu a ribanceira chocando-se violentamente contra um obstáculo. L(---) morreu imediatamente. Isso teria acontecido em 1976, mas não achei nada a não ser o obituário tratando o falecimento como acidental.

Também descobri através de meu tio que tentaram queimar a árvore, mas a casca grossa não se incendiou nem quando alegadamente lançaram nela um galão de gasolina. Na ocasião, dois homens sofreram queimaduras leves, mas as explicações para o acidente não foram bem explicadas. Meu tio contou que os dois personagens nesse caso estavam bêbados e que ninguém se surpreendeu com suas ações descuidadas.  

Depredações desse tipo fizeram com que a prefeitura de Serro Negro tomasse uma medida. Envolveram a base do velho carvalho com uma cerca de ferro para afastar outros vândalos em 1980.

Mas ainda há algo mais a respeito da Árvore do Diabo e talvez seja essa conexão que lhe rendeu o apelido infame. Há uns quatro anos atrás, assegurou uma prima chamada S(---), símbolos estranhos e frases foram pichadas com spray no tronco da árvore. "Aconteceu justo na véspera da Páscoa" contou ela, quando a visitei para uma daquelas visitas protocolares de parentes. 

Um pedregulho próximo, chamado de "Pedra Quente" - que dizem permanece aquecido a despeito do sol incidir ou não sobre ele - também foi vandalizado. Escreveram nele com tinta vermelha as palavras "O Demônio vive aqui!" enquanto que o Carvalho recebeu garranchos dizendo: "Essa é a Árvore do Diabo".

Dada a fama do lugar, rumores a respeito de pessoas se reunindo aos pés da Árvore para algum tipo de ritual e magia negra, eram recorrentes em Serro Negro. "Vez ou outra alguém contava histórias desse tipo", embora ninguém levasse tais rumores muito à sério garantiu S(---) e seu marido P(---). 

Vigora uma crença entre os habitantes de Serro Negro que aqueles que testam os limites da Árvore do Diabo acabam tendo uma morte terrível. Visitar a Árvore já era ruim o bastante, mas vandalizar o lugar? Só alguém de fora cometeria esse tipo de sandice. Acidentes de carro e suicídios estavam na conta do velho carvalho, por isso é compreensível que poucos se aproximassem dele.

Entretanto, quando a árvore apareceu pichada, as pessoas se perguntaram o que aquilo poderia significar e alguns resolveram engolir o próprio medo e ir até lá para saber o que havia acontecido. Os que vasculharam a área encontraram indícios de que um grupo de pessoas, provavelmente adolescentes havia acampado ali perto. Recolheram muito lixo num acampamento improvisado: garrafas de vodka e refrigerante, sacos de biscoitos, latas de cerveja e uma lona amarrotada que parece ter sido usada como colchão. Procurando mais à fundo acharam em uma trilha peças íntimas femininas enroladas em algo mais preocupante: uma faca suja de sangue. Na base da árvore encontraram ainda velas pretas e vermelhas que queimaram até o chão, deixando poças solidificadas de cera colorida junto do tronco.

A gazeta local, a mesma Gazeta Serrana dava conta de que a Defesa Civil, convocada para varrer as cercanias procurou exaustivamente, mas não achou nada que pudesse revelar quem eram as pessoas que deixaram a pedra e a árvore pichadas. Uma vez que ninguém comunicou desaparecimentos, tudo indicava que ou as pessoas eram de fora ou que aquilo não passou de um tipo de travessura idiota. Para todos os efeitos adolescentes costumam fazer esse tipo de bobagem inconsequente. 

O estranho, é que dias mais tarde, quando alguém finalmente passou por ali percebeu que algo estranho havia ocorrido. Na noite anterior havia chovido pesado e o vale inteiro ficou alagado, mas mesmo assim, era difícil explicar o que havia ocorrido de uma maneira razoável. Os grafites na pedra e na árvore haviam simplesmente escorrido, quase que por inteiro. De fato, as frases haviam sumido, com exceção de duas palavras que continuavam tão claras e legíveis quanto quando apareceram na véspera da Páscoa: "Diabo" e "Demônio"

Curioso que poucas pessoas mencionaram esse incidente. S(---) disse que não quis ir até lá, mas seu marido P(---) contou que foi até o lugar para ver com os próprios olhos. Pouco depois, a prefeitura tratou de pagar para remover as palavras agourentas que demoraram a sumir mesmo com o uso de mangueiras potentes e detergente industrial.

Desde a semana passada, quando cheguei à cidade, visitei várias pessoas, conversei com outras tantas e passei muitas horas apertando os olhos tentando ler as edições antigas da Gazeta Serrana. Fiz até amizade com o pessoal da pequena redação. Curioso que nem todas as pessoas que procurei aceitaram falar comigo, sobretudo depois que disse que a conversa seria sobre a Árvore do Diabo. Muitas alegaram não saber de nada - embora, outros garantissem que eram elas, fonte valiosa de informações. Suponho que mesmo hoje em dia exista um certo grau de superstição e crendice, mesmo nos nossos tempos modernos. Uma vez que a maioria das pessoas se mostraram reticentes a respeito de eu citar seus nomes, preferi usar apenas as iniciais delas.

Não escondo meu interesse em pesquisar assuntos como esse. Serro Negro parece ter inúmeras histórias curiosas e interessantes e eu sempre tive interesse de, quem sabe, escrever um livro a respeito de minha cidade natal. Já ouvi tantas histórias estranhas e quem sabe, esse pode ser o ponto de partida para finalmente organizar as coisas.

Bom, com tudo isso, creio que o próximo passo lógico nessa minha "investigação" informal a respeito dessa parte peculiar da história de Serro Negro seja ir até o descampado e visitar a famosa "Árvore do Diabo".

Comecei a me preparar para o que estou encarando como minha "expedição de campo". Venho antecipado ansiosamente essa visita desde o início, mas confesso que depois de pesquisar as histórias locais é impossível afastar alguns pensamentos. Não que eu acredite em qualquer uma dessas coisas que apurei, mas... sabem como é.

De qualquer maneira fui às compras: adquiri material básico de camping, alguns suprimentos e outras coisas que podem ser úteis. Pretendo fotografar o local e fazer um pequeno vídeo e já tenho todo material para isso. Eu me informei com algumas pessoas e estas me apontaram as direções, para onde eu devo ir e a maneira mais direta de como chegar ao descampado e à Árvore do Diabo. Não deve ser uma caminhada muito desgastante, o que é bom, já que não estou no melhor da minha forma física.

Estou concluído esse registro no meu laptop. 

Amanhã vai ser um dia cheio.

L(---)

11 de janeiro 2017

*     *     *

O seguinte registro foi encontrado em um arquivo de laptop pela polícia da cidade de Serro Negro que teve acesso a esse computador após o desaparecimento do autor.

As buscas prosseguem, mas depois de cinco dias desde a comunicação do desaparecimento, as chances de localizá-lo se tornam menores.

O material foi levado para a Delegacia de Serro Negro e as pessoas citadas serão entrevistadas para a formulação do inquérito.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

RPG do Mês - A Bandeira do Elefante e da Arara - Um jogo com o DNA do Brasil




Uma coisa que sempre me incomodou profundamente no cenário de RPG brasileiro é o fato de que muita gente considera nosso país um lugar pouco interessante para criar ambientações de jogos.

É sério... não estou inventando.

Não foram poucas as pessoas que encontrei nesse tempo todo jogando RPG que disseram que o Brasil não possui "nada de interessante" para ser aproveitado em suas mesas de jogo. Francamente, acho que o problema vai muito além de desconhecer o folclore nacional e nossas tradições. Desmerecer o que é nosso, para alguns é uma maneira de ser descolado. Vai entender... Muitos jogadores preferem incorporar elementos de outras culturas, preterindo o folclore brasileiro como um todo, o que é bastante injusto.

Calma! Antes que digam que eu sou um desses defensores da proibição da Comemoração do Halloween no Brasil ou da implantação de aulas de tupi-guarani em escolas públicas, é bom traçar uma linha. Eu amo conhecer outras culturas e claro, como jogador de RPG, adoro explorar mundos inspirados pela Europa Medieval, me aventurar pela América Colonial, pelo Japão dos Samurais, por ambientações típicas dos povos nórdicos ou baseadas nas ricas tradições árabes como as mil e uma Noites. Existem RPG que usam essas culturas e suas tradições mais profundas como base para aventuras e que envolvem os jogadores de tal maneira que tornam a experiência de jogar muito mais do que uma brincadeira de "contar história". Fazem do simples ato de sentar em  uma mesa e rolar dados, uma forma de conhecer e aprender sobre esses povos e suas culturas.


Existe alguma dúvida de que quando jogamos num cenário se passando no Velho Oeste aprendemos a respeito da vida na fronteira? Quando nos aventuramos em um Cenário de Guerra, não conhecemos detalhes históricos que quase valem por uma aula? E o que dizer das histórias que bebem da fonte da mitologia apresentando para nós minotauros, medusas, rackshasas, golens, krakens e outras criaturas que estão enraizadas no folclore de outros povos. Tudo isso nos permite aprender, e que melhor maneira de aprender senão nos divertindo?

A pergunta central é: "Onde está o rico folclore brasileiro e nossas tradições quando se fala de RPG"?

Eu sei o que os jogadores mais antigos vão dizer: "E quanto aquele jogo que se passava no Brasil colônia"?

Sim, vocês estão certos! Décadas atrás existiu um sistema/ambientação 100% nacional chamado "Desafio dos Bandeirantes - Aventuras nas Terras de Santa Cruz"  que até onde sei, foi o primeiro RPG a abordar essa questão. Lançado no início dos anos 90, escrito por Carlos K. Pereira, Flávio Andrade e Luiz Eduardo Ricon, Desafio foi editado pela GSA e conquistou um lugar no coração da velha guarda dos jogadores brazucas.


As aventuras de Desafio dos Bandeirantes se passavam nas míticas Terras de Santa Cruz, um lugar que embora não fosse exatamente o Brasil Colônia guardava com ele enormes similaridades. Era um jogo muito interessante e com uma proposta incrível para a época!

Mas como todo empreendimento pioneiro, Desafio teve de lidar com alguns problemas que iam desde as regras - consideradas por alguns "pouco práticas", a produção tida por outros como desleixada, até a dificuldade de encontrá-lo para venda. Se RPG é uma mídia de nicho hoje em dia, que dizer dos anos 1990 quando o boca a boca era tudo que existia para divulgação e propaganda. Eu devo ter jogado Desafio umas duas, talvez três vezes em eventos, adorei o jogo, mas depois de um tempo ele simplesmente sumiu de circulação. Os rumores davam conta de que ele tinha sido descontinuado e que os autores não tinham interesse de trazê-lo de volta.

De lá para cá, o hiato foi extremamente longo.


Jogos com a temática "folclore nacional" praticamente sumiram no Brasil. Apesar de ter havido um fôlego aqui e ali, com GURPS e mais alguns jogos, não havia nada de muita expressão. Nesse período cansei de ouvir frases como: "não existe porque ninguém quer jogar isso", "essas coisas não interessam", "Saci, Cuca e Mula sem Cabeça são muito bobos" e tome blá, blá, blá...

Esse artigo a respeito de RPG com Temática Nacional terminaria aqui, não fosse uma reviravolta ocorrida em 2017.

Entra em cena um sujeito chamado Christopher Kastensmidt cujo nome indica claramente a sua origem estrangeira. Nascido em Houston, a bem sucedida carreira desse texano estava intimamente ligada ao mundo digital através do desenvolvimento de games, ao menos até ele resolver se dedicar exclusivamente a literatura. Casado com uma brasileira, ele se radicou no Brasil em 2001 e nesse período começou a se interessar pelo Folclore do país onde decidiu viver.

Sessão de autógrafos na Livraria Cultura no Centro do Rio de Janeiro. 
Foto ao lado do autor Christopher Kastensmidt e do ilustrador Rodrigo Camilo
A série "A Bandeira do Elefante e da Arara" se tornou rapidamente sua obra mais conhecida. O reconhecimento veio através da indicação de seu conto "O Encontro Fortuito de Gerard van Oost e Oludara", para o importante Prêmio Nebula

Passando-se no Brasil do século XVI, os livros da série "A Bandeira do Elefante e da Arara" saíram aqui pela Devir. A série narra as aventuras e desventuras de um holandês (Gehard Von Oorst) e de um Guerreiro africano (Oludara) durante o Período Colonial. Além de ter como pano de fundo as relações e conflitos entre nativos e colonizadores, as histórias se concentram no folclore nacional  e apresentam inúmeros seres mágicos como a Cuca, o Boitatá e o Saci habitando um mundo que mistura fatos históricos e fantasia.

Com todos esses elementos, não é de causar surpresa que a série "A Bandeira do Elefante e da Arara"  encontraria seu caminho e faria a transição do mundo da literatura para o Reino dos RPG de maneira quase natural. Obviamente, em nada atrapalha o fato da Devir por muito tempo ter sido quase que a única editora nacional, responsável por RPG no Brasil. Mas o elemento fundamental para que o livro se tornasse um jogo de mesa é o fato dele se encaixar perfeitamente nessa mídia. Sendo bem claro, "A Bandeira do Elefante e da Arara" possui todos os elementos de uma típica ambientação de RPG.


O RPG "A Bandeira do Elefante e da Arara" (doravante ABEA, por questões de economia e sanidade) se passa no mesmo mundo da série de livros de mesmo nome. Diferente de Desafio dos Bandeirantes, que utilizava um continente fictício, ABEA tem lugar no bom e velho Brasil de 1576, uma terra cheia de mistérios. 

Ainda em processo de exploração e ocupação pela metrópole portuguesa, a Colônia do Brasil constituía um enigma praticamente indecifrável para os exploradores e aventureiros que vinham dar por estas bandas. Os forasteiros que chegavam em busca de aventura e riqueza, em nome da fé ou da glória, nem imaginam o que encontrariam nessas paragens de beleza luxuriante. Até então, apenas uma pequena parte do litoral havia sido mapeada pelos homens brancos, pequenos assentamentos pontilhavam a costa recortada - com plantações, fortes e povoados simples. Seus moradores eram pessoas corajosas e endurecidas, vindas da cinzenta e fria Europa que se surpreendiam com o calor e as cores vibrantes do Novo Mundo. 

Enquanto isso, o interior, fascinante e incrivelmente perigoso, ainda era pouco conhecido. Nas florestas indevassáveis, com sua rica fauna e flora, diferente de tudo visto até então, habitavam orgulhosas tribos de nativos. Divididos em grupos étnicos e linguísticos, os índios - como eram chamados de maneira genérica, viviam em contato com a natureza, habitando grandes aldeias, tendo suas próprias tradições orais e costumes tribais, fazendo guerra ou celebrando a paz com seus vizinhos. Na marcha para o interior, em busca de ouro e pedras preciosas, os colonizadores cruzariam o caminho desses povos nativos, na maioria das vezes resultando em estranhamento, em outras tantas, em violência.


Finalmente, um terceiro elemento cultural se juntaria a esse cenário. Os negros africanos trazidos da África como escravos, tinham seus próprios costumes e crenças que passariam a ser, com o tempo, parte indissolúvel da mistura de raças, povos, línguas e tradições que dariam origem ao país. Dessas três raças básicas, nasceria uma miscigenação que marcaria para sempre o perfil do povo brasileiro. 

Mas além dos tipos humanos, o cenário é rico em habitantes fantásticos. EM ABEA as florestas fervilham com animais e vegetação selvagem além de seres míticos saídos direto do nosso folclore. Estão lá a Cuca, Curupiras, Capelobos, Mulas sem Cabeça e tantas outras lendas conhecidas e obscuras. Assim como acontece em outros RPG, esses monstros e seres mágicos se apresentam como os desafios e ameaças a serem superados pelos personagens dos jogadores.

Os jogadores assumem o papel de exploradores, bandeirantes, guerreiros indígenas, pagés, sacerdotes africanos e outros aventureiros. Não existem classes de personagem, os jogadores tem ampla liberdade para criar o tipo de personagem que bem entenderem, sem estarem ligados a pacotes de habilidades ou requisitos. Isso concede grande liberdade para a construção dos personagens, tornando o background mais importante do que combinações de números. Diferente de outros RPG, a ficha também não possui atributos básicos - não há Força, Destreza ou Inteligência, todas as características fundamentais são fornecidas pela lista de habilidades compradas pelo jogador durante a criação do personagem.


Criar um herói em ABEA é extremamente fácil. Todo o processo não demora mais do que alguns minutos, sendo que escolher um "Histórico" para o personagem é a etapa mais importante. O jogador escolhe aquilo que define seu personagem em poucas palavras - em geral, uma ocupação ou ramo de atividade seguido por ele. Com base nisso, escolhe sua raça, nacionalidade, natureza, comportamento e quais as suas motivações e código de conduta. O exercício de criação do histórico pode ser amplo e cheio de perguntas a serem respondidas (por exemplo quem são seus pais, qual a sua cultura, o que ele conhece do mundo etc.) ou mais rápido, se restringindo a alguns poucos pontos chave que ajudam a compor o perfil de seu aventureiro.

Uma vez definida a história, a etapa seguinte define o que o seu herói sabe fazer e o quão bem ele desempenha essas tarefas. Durante a escolha das habilidades, o jogador tem que escolher entre várias opções reunidas em uma longa lista que inclui desde perícias com Armas de Fogo e Esgrima, até Cartografia e Medicina de Campo. Existem três níveis ascendentes de conhecimento das habilidades - Aprendiz, Praticante e Mestre, cada um deles concedendo bonificações nos testes realizados.

Durante a criação do personagem, o jogador deve escolher UMA habilidade em que ele é Mestre, DUAS de nível intermediário em que ele é Praticante e SEIS habilidades em que ele é aprendiz, além de uma língua nativa. A ficha é bastante simples e funcional, ideal para quem está começando a jogar compreender seu funcionamento e dinâmica. O nome de cada habilidade é listado e o grau de conhecimento nela assinalado em círculos.

O modelo de um personagem de ABEA
A etapa seguinte é escolher as características do personagem. Cabe ao jogador escolher duas ou três características básicas de seu personagem que vão ajudar na interpretação. Essas características são vantagens, desvantagens ou traços de personalidade marcantes que  tornam o personagem mais interessante e real. Não existe uma mecânica de jogo por trás disso, são apenas diretrizes para conhecer melhor seu personagem. Acredito, no entanto, que o narrador pode usar boa interpretação desses traços como forma de recompensar o jogador no final de uma sessão. A lista de características também é bem longa e completa, incluindo traços como Honesto, Rancoroso, Repulsivo, Romântico entre muitos outros.

A etapa final envolve definir os Bens Iniciais do Personagem, aquilo que ele carrega consigo e leva em suas aventuras. Dependendo das habilidades e de seu nível nelas, o personagem pode iniciar o jogo já com alguns objetos vitais para o desempenho de sua profissão. Por exemplo, um carpinteiro já tem ferramentas adequadas e um soldado possui uma arma. Fora isso, cada aventureiro em início de carreira tem acesso a uma determinada quantidade de dinheiro que pode converter em bens e objetos. Novamente, existe uma lista com várias opções de armas e itens a serem adquiridos.

A facilidade na construção do personagem é proposital. ABEA não se propõe a ser um RPG muito elaborado no que diz respeito a mecânica, tampouco carece de uma longa reflexão para definir a progressão do personagem.


A mecânica do jogo é simples e direta, algo que para mestres e jogadores iniciantes será muito bem vindo. Ao meu ver essa simplicidade não estraga a diversão, mesmo para jogadores mais experientes, exceto os entusiastas hardcore de estratégia e mecânicas elaboradas. É bom deixar claro que ABEA foi concebido como um jogo de regras leves. Ele não tem pretensão alguma de ser denso ou colocar sua ênfase nos aspectos táticos. Interpretação e relações entre os personagens estão acima de tudo.  

O sistema utiliza três dados comuns de seis lados para definir os sucessos ou fracassos nos testes. Estes são lançados buscando igualar ou superar o grau de dificuldade definido pelo mestre. Dependendo da complexidade da tarefa a ser executada o número alvo pode ser 12 (Tarefa Fácil), 15 (Tarefa Intermediária), 18 (tarefa Difícil) e 21 (Tarefa Lendária). As habilidades em seus diferentes níveis de aprendizado fornecem bônus ao rolamento adicionando +3, +6 e +9 ao total obtido. Não há sucessos ou fracassos críticos. Mesmo não dispondo de conhecimento em certas habilidades é possível realizar testes, mas só em tarefas de grau de dificuldade fácil ou intermediário.

E é basicamente isso!


As lutas são parte importante de ABEA, mas não são o fio condutor das histórias: negociação e diplomacia são essenciais para evitar combates potencialmente perigosos. Um grupo muito beligerante pode ser facilmente derrotado depois de dois ou três confrontos.

O combate é bastante fluido e rápido, atendendo à mesma premissa das regras de teste de habilidades contra um número alvo. Existem algumas manobras e ações especiais que permitem causar mais dano, acertar com mais acurácia ou aumentar a defesa contra as investidas dos oponentes. São regras de fácil compreensão e bastante intuitivas. Os combates tendem a ser acelerados, definidos em poucas rodadas com o dano de cada arma já definido (sem a necessidade de ser rolado). A dificuldade para acertar o alvo é ajustada pela armadura, pelas defesas, pela velocidade do personagem e outros fatores a serem calculados. Todo personagem tem uma reserva de dez pontos de resistência e quando esta é reduzida a zero ele passa a sofrer danos críticos que ameaçam sua vida. As armas convencionais provocam uma determinada quantidade de dano: floretes, por exemplo, produzem 2 pontos de dano, enquanto um tiro de mosquete faz um estrago de 4 pontos. Parece muito, mas é consideravelmente menos dano do que o produzido por monstros e criaturas fantásticas que conseguem causar um dano maciço. Enfrentar monstros como o Bicho Papão ou o Labatut sem um plano ou preparação, pode ser letal. Além disso, certas criaturas possuem ataques especiais que causam medo, envenenam, paralisam ou afetam os aventureiros de maneira única. 

O bestiário de ABEA reúne uma boa quantidade de seres mitológicos extraídos de nosso folclore e é um dos pontos altos do Livro. Há Animais selvagens normais (onças, cobras, jacarés), Animais de grande porte (Serpentes gigantes, Morcegos Imensos), Criaturas Fantástica (Mapinguari, Arranca Língua, Boitatá), Bestas Sobrenaturais (Mula sem Cabeça, Lobisomens, Corpo Seco) e Entidades Gigantescas, chamados de Treme-Terras (Minhocão, Pai do Mato). Pinçados do folclore lusitano, da cultura indígena e das tradições negras, a coleção de seres mitológicos é bem numerosa.


O trabalho de pesquisa dessas criaturas foi muito bem conduzido, a descrição delas fornece uma boa ideia de como elas são, onde são encontradas e como agem em combate. Comparativamente o formato remete ao antigo D&D com as estatísticas em bloco fornecendo as informações listadas para serem usadas em jogo.

Em ABEA existe magia e poderes sobrenaturais que podem ser empregados pelos personagens dos jogadores que decidam seguir as carreiras adequadas. Há três tipos distintos de poder sobrenatural: a Fé (dos padres e religiosos europeus), o Fôlego (dos pagés indígenas) e o Ifá (dos Sacerdotes Africanos). Personagens com inclinação para o paranormal devem atender a certos requisitos, entre os quais jamais utilizar armas ou armaduras. O rol de magias é bastante restrito, são poderes canalizados através de testes de habilidade (com graduações) e que dependendo do resultado podem ter maior ou menor impacto - ou podem simplesmente não funcionar. Cada grupo possui seu próprio repertório de magias, que em geral são bem discretas e carecem de preparativo e elaborados rituais. 

Para alimentar a magia cada tradição dispõe de uma energia canalizada pelo realizador. Se essa energia for totalmente consumida ele não será mais capaz de usar seus poderes, o que em termos de jogo reduz muito as capacidades dos utilizadores de magia. Boa parte dos poderes servem para curar ou obter informações, há também poderes que encantam armas e concedem vantagens, contudo, não espere nada semelhante a bolas de fogo para fulminar seus oponentes.

O Livro Básico faz um trabalho adequado de pesquisa e apresentação. Não se trata, é claro, de um livro de História do Brasil, e portanto ele não busca ser uma fonte completa de informações sobre o tema. O que ele traz é suficiente para que o mestre e jogadores conheçam o necessário da história e ambiente no qual transcorre o jogo. Para saber mais, ele convida os participantes a pesquisar e conhecer à fundo a nossa história. Nesse contexto, ABEA é uma ferramenta educacional valiosa para professores e educadores.


Um dos apêndices, escrito pelo Prof. Rafael Jacques da IFRS, sugere aos educadores maneiras de utilizar o livro em sala de aula. Como empregá-lo como forma de incentivo à leitura e escrita criativa, como ferramenta de pesquisa acadêmica, meio de sociabilização, na promoção do raciocínio lógico, estímulo a comunicação e expressão, experimentação etc. 

O potencial a ser explorado é imenso! Nada melhor do que aprender de maneira divertida, contando com o incentivo de um hobby envolvente como o RPG. Não é de hoje que se propõe uma interação estrita dos RPG com a Educação; ABEA talvez seja o passo mais concreto nesse caminho. Tanto é verdade que o livro contou com apoio do Ministério da Cultura e da Lei de Incentivo à Cultura - como resultado possui um preço incrivelmente acessível para um livro dessa qualidade.

Fisicamente, ABEA é notável no que tange a qualidade gráfica, acabamento e diagramação. Totalmente colorido, o livro está no mesmo patamar de muitas publicações internacionais de RPG. Mas talvez seja na arte que se concentra um dos grandes atrativos do livro. Contando com um time de talentosos artistas nacionais - alguns deles já conhecidos mundo afora, ABEA tem uma seleção de ilustrações de encher os olhos. Muitos dos trabalhos remetem diretamente ao estilo e conceito dos livros de Dungeons and Dragons e acreditem, não ficam devendo absolutamente nada a eles. As ilustrações que estão espalhadas ao longo dessa resenha foram retiradas do próprio livro e é possível perceber a qualidade dos trabalhos. Julguem por si mesmos! 

Em imagens de página inteira mostrando aventureiros corajosos enfrentando monstros e paisagens naturais deslumbrantes, a exuberância do Brasil ganha uma paleta notável de cores. Eu fiquei de queixo caído com o que vi.


O Livro Básico já vem com uma aventura introdutória chamada "Fogos de Bertioga" que apresenta de maneira bastante didática os elementos principais do jogo: aventura, conhecimento e exploração. A aventura é explicada em detalhes e mesmo o menos experiente dos narradores encontrará poucos contra-tempos em rolar a história para seu grupo. Além dessa história, a página oficial disponibilizou algumas aventuras em formato de PDF para os mestres que querem ter menos trabalho. Eu ainda não testei as aventuras, mas estou ansioso para descobrir como jogadores iniciantes e veteranos irão se comportar.

A Bandeira do Elefante e da Arara sem dúvida constitui uma excelente introdução ao mundo fantástico do RPG ou Jogos de interpretação de Papéis (como ele identifica). Sabe a sua sobrinha ou seu afilhado que sempre perguntaram o que são aqueles livros na sua casa? Seu filho e os amigos dele, que sempre quiseram aprender a rolar dados? Pois é... esse é uma ótima oportunidade para quem quer compartilhar seu interesse pelos jogos de interpretação com iniciantes. A proposta de conciliar história com diversão, aprendizado com entretenimento é sensacional. E se ele ajudar a enterrar preconceitos com os quais nosso Hobby conviveu por tempo demasiado, melhor ainda. Mostrar de um vez por todas que RPG não precisa ser visto com reservas ou se tornar alvo de campanhas difamatórias. Pelo contrário, ele pode e deve, ser abraçado como o passatempo inteligente e estímulo a criatividade que é.  

Com todos esses méritos, eu não poderia indicar mais esse livro.


Link para a página oficial: https://www.eamb.org/brasil/

OBS: No dia em que esse artigo ia entrar no ar, o amigo Marco Poli de Araújo publicou no Facebook uma excelente resenha a respeito de A Bandeira do Elefante e da Arara. Vale a pena dar uma lida para obter mais impressões do jogo, mas também para conhecer outros dois RPG baseados no Brasil Colonial - Santa Cruz e Jaguarete, que eu francamente desconhecia e que me parecem interessantes dentro de suas propostas. 

Resenha ABEA - Marco Poli