quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A Bizarra Saga dos Fósseis do Homem de Pequim


Durante o final do século XIX, colecionadores amadores de fósseis e paleontólogos profissionais sabiam que alguns dos espécimes mais interessantes de ossos e dentes de animais pré-históricos, podiam ser encontrados na China em farmácias que ofereciam todo tipo de remédios naturais, chás, ervas e plantas curiosas. Os artefatos eram geralmente coletados em pedreiras e minas por camponeses em todas as províncias da China e comercializados com boticários. Eles eram então triturados e vendidos como ingredientes para o tratamento de uma enorme variedade de doenças. Os farmacêuticos acreditavam genuinamente que peças do esqueleto de animais pré-históricos, em especial dinossauros, eram ossos de dragões. Estes conforme a tradição tinham propriedades mágicas que podiam sarar qualquer coisa, desde epilepsia até possessão demoníaca.

Um dos primeiros paleontólogos a coletar "ossos de dragão" nas drogarias chinesas foi um médico alemão chamado K.A. Haberer, que viajou para Pequim em 1899, durante a Rebelião dos Boxers. Aquela era uma época perigosa na China, mas isso não intimidou Haberer em sua busca apaixonada por fósseis valiosos. Ele conseguiu coletar uma quantidade substancial de espécimes antes de ser forçado a deixar o país para sua segurança.

Quando Haberer voltou para casa em Munique, doou sua coleção a um professor chamado Max Schlosser, para ser examinada. A coleção representava aproximadamente 90 formas de mamíferos de uma variedade de grupos distintos, desde antílopes com milhões de anos até tigres dente-de-sabre e imensas hienas. Era uma coleção impressionante, mas talvez o espécime mais intrigante fosse um molar de aspecto humano que Haberer encontrara em uma modesta farmácia de Pequim.

Acreditava-se que o dente tinha cerca de 2 milhões de anos e estava perfeitamente preservado. Schlosser pensou que possivelmente ele pertencia a um novo gênero humano, até então desconhecido. A descoberta não mereceu muita atenção e acabou sendo deixada de lado. Schlosser não sabia na época que seu palpite era preciso, nem sabia que estava de posse de um dos fósseis humanos mais antigos do mundo. Levaria mais de duas décadas para que a importância do dente fosse reconhecida mundialmente.

Moldes do Crânio do lendário Homem de Pequim.

Fascinado pelas descobertas de Schlossers e Haberers, um geólogo sueco e especialista em mineração em missão na China, Johan Andersson, começou sua própria busca por fósseis únicos. Em 1914, ele começou a vasculhar artefatos nas farmácias de Pequim e posteriormente escavar sítios. Um dos lugares em que ele estava particularmente interessado ficava à cerca de 30 milhas de Pequim. Conhecido como Chicken Bone Hill (Colina dos Ossos de Galinha), o lugar era assim chamado devido à enorme quantidade de ossos de pássaros encontrados na área.

Ao longo de dois anos Andersson passou seu tempo escavando ao redor da Colina. Em 1921 um homem local o abordou e contou sobre um lugar próximo que tinha uma coleção ainda maior de ossos antigos. Ouvindo o conselho do sujeito, o geólogo o seguiu até uma pedreira de calcário chamada Chou Kou Tien, a Colina dos Ossos de Dragão. Após uma breve escavação ele descobriu uma mandíbula de porco fossilizada e, no dia seguinte, uma variedade de artefatos, incluindo dentes de rinoceronte e mandíbulas de ursos. Não demorou muito para que a coleção de fósseis atingisse um tamanho impressionante, representando uma variedade de mamíferos com milhões de anos de idade. Anderson acreditava ter tropeçado em um achado notável e sua suposição estava correta.
 
A imensa coleção foi enviada à Suécia para ser examinada no Museu de Uppsala. Levou vários anos para se inspecionar a enorme quantidade de espécimes, mas valeu a pena o esforço. Em outubro de 1926, os especialistas separaram dois dentes: um molar e um pré-molar na que eram de particularmente interessantes e provenientes de uma raça de hominídeos, uma espécie pré-humana não catalogada. Curiosamente, os dentes se assemelhavam aos encontrados por Haberer na virada do século.

Os dentes foram entregues ao chefe do departamento de anatomia da Universidade de Medicina de Pequim, Dr. Davidson Black, na esperança de que ele confirmasse a opinião. Black não apenas confirmou, mas deu início a uma das maiores escavações do mundo em busca da origem daqueles hominídeos misteriosos. A caçada conduziu a descobertas que mudariam tudo o que se sabia a respeito da evolução da humanidade e causariam sensação mundial. 

O Dr. Black inspecionando as escavações na China

Também resultaria em um dos maiores mistérios científicos do século XX.

O Dr. Black era um renomado antropólogo, cientista e aventureiro canadense, fascinado com a questão da origem do homem. Black acreditava que o berço da humanidade estava em algum lugar do oriente, mais especificamente na Ásia Central. Em um primeiro momento ele fez pesquisas na China, e explorou os planaltos centrais à procura de fósseis que pudessem corroborar suas teorias. Atrapalhado pelo início da Grande Guerra, quando teve de retornar a Inglaterra, Black só pode dar prosseguimento às suas explorações em 1919, quando se fixou em Pequim, trabalhando como professor de Palentologia e Neurobiologia na Escola de Medicina da Capital.

Após seis anos de pesquisa, Black foi promovido a chefe do departamento de anatomia. Durante este tempo, havia turbulência política fermentando na China entre o Exército Nacional Revolucionário, o Partido Comunista e o Partido Nacional do caudilho Chiang Kai-Shek. Embora rumores de guerra circulassem por todo o país e as tropas chinesas se preparassem para a batalha iminente, a ameaça não deteve os cientistas que trabalhavam na Universidade.

Em 1926, a situação política e militar piorou muito e informações sobre chacinas, levantes e conflito causavam enorme preocupação. As batalhas entre os Senhores da Guerra da China aumentaram, colocando em risco as expedições. Enquanto balas e bombas choviam sobre Pequim e arredores, os cientistas da faculdade e suas famílias temiam por suas vidas. Muitos decidiram deixar a China e se refugiar em seus países de origem.

No entanto, Black e alguns outros se recusaram a partir. A descoberta dos dentes dos hominídeos por Andersson naquele ano foi motivo suficiente para ficar e fazer mais pesquisas em Chou Kou Tien, apesar das batalhas em curso na área. Foi uma decisão ousada, arriscada, mas que trouxe informações capazes de mudar a história.

Black ao lado das descobertas que poderiam mudar a história da humanidade

No momento em que Andersson deu a Black os dentes antigos, ele imediatamente lançou uma investigação em grande escala. Após um exame mais detalhado, Black ficou surpreso ao descobrir que os dentes eram evidências que apoiavam sua teoria de que a China era o berço dos primeiros seres humanos. Em um relatório a seus superiores, ele afirmou que os dentes tinham aproximadamente 2 milhões de anos. Se suas conclusões estivessem corretas, representariam a mais antiga evidência conhecida de antepassados do homem. A grande descoberta enviou ondas de choque pela comunidade científica e levou a um levantamento sistemático de Chou Kou Tien no verão de 1927. A investigação arqueológica conduzida por cientistas e trabalhadores manuais continuaria por 14 anos, produzindo resultados surpreendentes.

Black foi nomeado coordenador da escavação e seu trabalho era dirigir todos aspectos do empreendimento: Contratar escavadores, obter fundos e examinar quaisquer restos humanos fossilizados que pudessem ser descobertos. Ele nomeou o proeminente geólogo chinês Dr. V. K. Ting como o diretor honorário do projeto. Ting e Black trabalharam insistentemente, removendo toneladas de terra e pedras, obtendo peças enterradas há milhões de anos. No outono, aqueles que trabalhavam no local desenterraram uma massa de animais fossilizados pertencentes a várias espécies. Mas a pressão para encontrar fósseis do hominídeo estava aumentando, especialmente porque a escavação estava programada para terminar em breve. Faltando apenas três dias para fechar os trabalhos outra grande descoberta foi feita.

Era um molar semelhante aos encontrados anteriormente na mesma vala. Depois de examinar o dente, Black concluiu que ele tinha milhões de anos e provavelmente provinha de um gênero humano novo e distinto, totalmente desconhecido pela ciência até então. Ele deu ao homem fossilizado o nome latino de Sinanthropus pekinensis, que significa literalmente Homem de Pequim.

Black colocou o valioso dente em um medalhão e o carregou consigo ao pescoço para dar sorte. Vários meses depois, ele o levou para a América e teve o dente examinado por vários especialistas para validar a data e a origem. Ele também o apresentou à Fundação Rockefeller, que foi a organização que financiou o projeto de escavação. Embora tenham ficado satisfeitos com a descoberta, a fundação queria mais evidências antes de renovar seu patrocínio.

A escavação era a maior do mundo na década de 1920

Na primavera de 1928, a escavação começou com entusiasmo renovado. Durante meses, cientistas e escavadores trabalharam na argila e no calcário sem encontrar novos vestígios humanos. Justamente quando seu entusiasmo começou a diminuir, fizeram sua descoberta mais significativa. Em novembro daquele ano, uma parte da mandíbula do Homem de Pequim, vários dentes e fragmentos de crânio foram descobertos poucos dias antes do final da temporada. Pela primeira vez, os cientistas foram capazes de sugerir como o homem primitivo devia ter se parecido. Estava ficando cada vez mais claro que os restos fossilizados eram de fato de um novo gênero de homem e distintamente diferente dos humanos modernos. 

Mais uma vez, Black apresentou os artefatos à Fundação Rockefeller na esperança de receber verba. Desta vez, ele teve sucesso e saiu com $ 80.000, uma fortuna considerável para a época. Era dinheiro suficiente para criar um Laboratório Cenozóico que poderia examinar os artefatos descobertos e determinar sua idade.

Para grande parte do mundo, 1929, foi um ano terrível com a Quebra da Bolsa de Nova York que lançou as economias do mundo numa crise sem precedente. Mas, para os paleontólogos de Chou Kou Tien, foi um ano glorioso. Pei Wenzhong, o recém-nomeado diretor geral do local, era um homem muito persistente e obstinado. Ele havia atingido uma camada de argila fossilizada negra de profundidade incerta e quase impenetrável. Após semanas de trabalho, seus trabalhadores finalmente romperam a camada e foram recompensados ​​com uma grande quantidade de ossos de animais. Pei encontrou uma rachadura na superfície que permitiu que ele e um colega fossem baixados por cordas.

Um desenho do crânio pertencente ao Homem de Pequim

A operação notável foi descrita da seguinte maneira:

"Eram quatro horas da tarde de 2 de dezembro de 1929, próximo ao pôr-do-sol com um vento de inverno trazendo temperaturas congelantes. Havia quatro homens sobre o abismo, trabalhando em um espaço tão estreito que cada um tinha que segurar uma vela em uma das mãos e trabalhar com um martelo com a outra. 'O que é isso?' Pei gritou quando a fraca chama de uma vela de um de seus companheiros tremeluziu sobre uma forma curiosa. Eles haviam encontrado o mais inestimável tesouro da escavação: Um crânio humano!"

O fóssil humano não estava danificado, metade dele estava incrustado com rocha e areia. Os homens trabalharam vigorosamente noite adentro para libertar o delicado crânio ali preso. Assim que foi removido, Black o examinou e confirmou que era do Período Pleistoceno. A descoberta foi uma sensação no noticiário internacional, catapultando Black e seus colegas para a fama instantânea na comunidade científica mundial. A expedição fazia história desvendando a história dos ancestrais mais remotos do homem.

Durante a década de 1930, evidências do homem primitivo continuaram a ser descobertas, incluindo ferramentas de pedra e indícios de que eles usavam fogo. O material encontrado gerou mais pesquisas e debates intermináveis ​​sobre como o Homem de Pequim vivia e se parecia. Black ficava animado com cada nova descoberta e trabalhava continuamente examinando a enorme quantidade de artefatos. Ele estava tão determinado a concluir seu estudo que sua saúde foi afetada pelo estresse crescente e pela falta de sono. Em 15 de março de 1933, enquanto conduzia um trabalho de laboratório, Black morreu de um ataque cardíaco fulminante.

Mesmo com sua ausência, os cientistas sabiam que precisavam continuar com o trabalho que ele havia iniciado. Em 1935, o renomado anatomista e antropólogo Dr. Franz Weidenreich assumiu a posição de Black como chefe do Laboratório de Pesquisa Cenozóica. Weidenreich teve um trabalho difícil pois a pressão para produzir novos resultados aumentava constantemente.

Finalmente, em 22 de outubro de 1936, os trabalhadores descobriram uma mandíbula completa. Surpreendentemente, no mês seguinte, mais dois crânios foram encontrados no mesmo dia. Nesse ponto, ficou claro que eles estavam escavando um local que havia servido de lar para aqueles pré-humanos. Conforme a escavação continuava, uma grande quantidade de material foi desenterrada, o que incluía dentes e ossos representando aproximadamente 40 indivíduos. Era a maior coleção já encontrada de uma população de hominídeos. Aqueles restos pertenciam aos homens e mulheres mais antigos já encontrados.

Os hominídeos batizados de Homens de Pequim

Os cientistas agora tinham uma imagem bastante clara de como eles podiam ter vivido. Eles eram pequenos em estatura, variando entre 1,42 e 1,46 de altura. Também tinham sobrancelhas salientes, queixos caídos e narizes largos. Se acreditava que eles andavam eretos e provavelmente pesavam cerca de 45 quilos. Weidenreich acreditava que as características físicas do Homem de Pequim se assemelhavam um pouco à dos chineses modernos.

Os cientistas ainda tinham muitas peças para encaixar nesse quebra-cabeça sobre o Homem de Pequim, quando a escavação em Chou Kou Tien teve de parar abruptamente. O Império do Japão iniciou a invasão da China, resultando em uma guerra em larga escala que colocava em risco não apenas os chineses, mas todos os que trabalhavam no local. Mesmo com a escavação interrompida, os pesquisadores continuaram a trabalhar nos espécimes que reuniram no laboratório de pesquisa. No entanto, era apenas uma questão de tempo para que os trabalhos na Universidade também fossem paralisados.

À medida que as tropas japonesas avançavam muitos dos cientistas estrangeiros preocupavam-se com o destino dos fósseis. Eles descobriram que os japoneses estavam buscando artefatos e até enviaram espiões ao local da escavação em busca de sua localização. Embora as peças fossem extremamente valiosas, temia-se que os japoneses tencionavam destruir os fósseis por considerá-los uma ameaça à sua noção de que os chineses eram um povo inferior. Não era interesse deles que cientistas considerassem a China o "berço da humanidade". Para proteger os fósseis foram contratados homens armados para defender a Universidade e seus tesouros inestimáveis.

Com os trabalhos interrompidos e as forças japonesas cada vez mais próximas, Weidenreich concluiu que o risco era muito grande. Os ossos precisavam sair da China e chegar a um lugar seguro. Ele decidiu então enviar os artefatos para os Estados Unidos sob custódia. No entanto, havia o risco dos ossos serem interceptados, roubados ou destruídos durante o transporte, uma vez que o interior da China se encontrava em um caos cada vez maior.

Antes de embalar os artefatos cuidadosamente em dois grandes caixotes de madeira, Weidenreich mandou fazer moldes de gesso dos fósseis, para garantir que ao menos estes fossem preservados. O plano era despachar a carga no final de novembro, mas os planos tiveram de ser antecipados pois os inimigos estavam muito próximos. A carga seria entregue aos cuidados de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos (U.S. Marines) na embaixada. De lá, os soldados escoltariam os fósseis para a cidade portuária de Chingwangtao, onde deveriam ser embarcados no S.S. Harrison. A partida da embarcação estava programada para 8 de dezembro, rumo às Filipinas. No entanto, o plano não saiu conforme o planejado, na verdade, as coisas deram terrivelmente erradas.

Uma representação artística dos hominídeos da China

Em algum ponto do translado, o artefato mais importante do mundo que poderia revelar detalhes sobre a evolução da humanidade desapareceu misteriosamente. Muitas teorias foram formuladas tentando explicar como os fósseis sumiram.

Pouco se sabe dos fósseis após terem sido entregues aos cuidados da Legação dos EUA em Pequim. As caixas foram passadas para um grupo de militares que segundo testemunhas deixaram a cidade três semanas antes do bombardeiro de Pearl Harbor que colocaria os Estados Unidos na Segunda Guerra. Não consta nenhum registro da chegada dos fósseis ao Complexo da Marinha ou seu embarque no navio de destino, mas é possível que o conteúdo das caixas tenha sido mantido em segredo. O que se sabe é que o S.S. Harrison foi torpedeado e afundou algumas semanas mais tarde quando estava deixando a Baia de  Chingwangtao. O navio foi uma das primeiras baixas dos Estados Unidos no Pacífico.

Muitos acreditam que os fuzileiros navais temendo transportar a importante carga pelas estradas caóticas até o porto decidiram embarcá-la em um trem com destino a Tientsin. De lá planejavam levar a carga até um outro porto sob controle dos militares. Porém, ao longo da viagem, as tropas japonesas teriam detido o trem para fazer uma revista. A tensão subiu e em dado momento, um tiroteio se iniciou entre os fuzileiros e os soldados japoneses. Há duas hipóteses a respeito do que aconteceu: a primeira é que os fuzileiros conseguiram escapar levando consigo as caixas para as montanhas. A outra é que os japoneses tenham interceptado e explodido os fósseis com granadas, isso depois de executar os que escoltavam a preciosa carga.

Um relatório escrito em 1945, a pedido da Inteligência das Forças Armadas, lança alguma luz sobre o que aconteceu durante o transporte das caixas. Segundo o relatório, dois fuzileiros navais contaram que as caixas contendo os fósseis do Homem de Pequim foram guardadas em um armazém na cidade portuária de Chingwangtao. Os homens disseram que as caixas foram deixadas lá pois agentes japoneses estavam rastreando seus movimentos desde a saída de Pequim. De fato, foi o receio de que espiões sabiam sobre como seria feito o transporte da carga que obrigou o grupo a mudar seu itinerário.

Ao que parece, os japoneses não mediam esforços para interceptar e destruir os artefatos. O oficial americano encarregado do transporte, cujo nome foi mantido em sigilo, confirmou que o trem para Tientsin foi vítima de sabotadores. No porto também haviam agentes examinando cada caixa que entrava na cidade. Embora a história seja intrigante, ela nunca foi confirmada e não há evidências de que os fósseis tenham sido guardados no armazém citado. Tampouco há alguma informação sobre o que teria acontecido com as caixas depois delas serem deixadas lá.

Os marines na China incumbidos de escoltar os fósseis

Outra história interessante diz respeito a um escritor de Chicago chamado Christopher Janus, que nos anos 1970, tomou para si a tarefa de descobrir o que havia acontecido com os fósseis desaparecidos. Janus ofereceu uma recompensa de 5.000 dólares a qualquer pessoa com informações que pudessem revelar o paradeiro do Homem de Pequim. Ele recebeu uma resposta incomum de uma mulher não identificada que alegou ser a detentora dos fósseis. Ela exigiu que Janus a encontrasse no topo do Edifício Empire State, na cidade de Nova York para que conversassem à respeito.

Janus compareceu ao encontro na hora e local designados. A mulher que se identificou apenas como Mary contou que seu falecido marido, um ex-fuzileiro naval que serviu na China durante a Segunda Guerra, tinha uma caixa contendo fósseis, que ele disse, certa vez pertencer ao Homem de Pequim. O material teria passado anos oculto num armazém até ser recuperado por ele em 1952. A caixa foi despachada para os Estados Unidos e desde então estava em seu poder. 

Para sustentar sua fantástica história, Mary mostrou a Janus uma fotografia dos ossos dispostos sobre uma mesa. O único problema é que ela disse que não entregaria os ossos por menos de 500.000 dólares. Janus conseguiu persuadir a mulher a emprestar-lhe a foto para que ele pudesse mostrá-la a um especialista. O professor de antropologia Harry L. Shapiro examinou a foto e comparou aos moldes dos fósseis concluindo que eles combinavam com os ossos da foto. No entanto, era difícil ter certeza se eram realmente os fósseis porque a imagem não era muito boa. Janus também mostrou a imagem a vários outros especialistas na área, alguns dos quais estavam convencidos de que eram os ossos desenterrados em Chou Kou Tien.

Os boatos à respeito do ressurgimento dos Fósseis do Homem de Pequim acabaram vazando e atraíram a atenção da imprensa e de alguns cientistas que estavam ansiosos para analisar a foto. Infelizmente toda essa publicidade acabou espantando a mulher que até onde se sabe, não fez mais nenhum contato. Não há como dizer se o que ela tinha era real.

Outras teorias circularam ao longo do último meio século. 

Uma estátua no Museu de História Natural de Pequim representando o Homem de Pequim

Alguns acreditam que os fósseis sequer saíram de Pequim e que foram simplesmente escondidos na Universidade ou enterrados em algum lugar para serem recuperados após a guerra. Há outros que julgam que os japoneses os confiscaram, mas não destruíram. Eles teriam sido levados para o Japão e estariam até hoje guardados em lugar ignorado. Outra teoria é que os fósseis teriam sido contrabandeados para os Estados Unidos pouco depois da liberação da China. Eles estariam em algum lugar secreto, podendo ser estudado apenas por alguns poucos homens de confiança.

Seja como for, só podemos imaginar o que um exame criterioso com a tecnologia atual, revelaria sobre a natureza dos fósseis do Homem de Pequim. O sítio arqueológico onde eles foram achados foi completamente arrasado durante a guerra, sujeito a bombardeios e explosões. Apesar de escavações terem sido conduzidas em Chou Kou Tien nas últimas décadas, nada relevante foi descoberto. Os fósseis achados na década de 1920-30 são portanto, únicos.   

As teorias são numerosas, mas amplamente controversas. Uma lástima que um achado tão importante, que poderia dizer muito sobre nossas origens, se perdeu em meio a um dos mais terríveis momentos de nossa história. A loucura e insensatez da guerra parece ter nos condenado a nunca saber tal coisa. 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Artefatos do Mythos - O Lendário Trapezoedro Brilhante


Num mundo um dia dominado pelos Antigos, não é de se estranhar que objetos tocados por eles guardem enorme poder. Perdidos nas cidadelas em escombros, nas ruínas engolidas por selvas e desertos ou no interior de templos submersos, repousam os derradeiros tesouros de nosso planeta. Foram estas as ferramentas manipuladas pelos Deuses em tempos idos, criadas com o seu consentimento, com propósito e razão que nos escapa à compreensão. São eles as peças centrais de um imenso quebra-cabeças que pode lançar uma luz sobre a natureza inescrutável desses seres, ou nos condenar de uma vez por todas ao horror de um saber profano.

Estes são os infames Artefatos do Mythos de Cthulhu e meramente tomar conhecimento de sua existência constitui um perigo inenarrável. Pois ponderem: O que pode ser mais perigoso para seres frágeis e de mente primitiva, como nós humanos, do que manusear objetos concebidos pelos Deuses? 

Juntem-se a nós na apreciação dos mais inefáveis artefatos e engenhos urdidos por estes seres, e tema o dia em a existência de um deles vier à tona.

Hoje falaremos de um dos mais poderosos e temidos artefatos ligado ao Mythos. Uma peça única que viajou através das eras, cuja existência simboliza uma comunhão com os Deuses Exteriores e que  passou de mão em mão, por civilizações e povos - muitos dos quais não-humanos, perdendo-se e sendo achada incontáveis vezes. 

Estamos falando é claro do lendário Trapezoedro Brilhante.


Não há como datar quando e de que forma o Trapezoedro foi criado. O que se sabe é que ele é mais antigo que toda a vida na Terra e que provavelmente existirá muito depois da existência do último ser se extinguir. Há teorias de quem ou o que pode ter sido seu idealizador, mas essas hipóteses parecem tão eivadas de dúvida e mitos que é impossível ter certeza de qualquer coisa.

A primeira teoria diz respeito a Nyarlathotep, o Caos Rastejante que teria criado o Trapezoedro como exercício de sua vontade divina. Ele teria imbuído a pedra com uma centelha ardente de sua própria consciência, vinculando para sempre o objeto à sua existência nefanda. O objeto teria sido construído com um propósito desconhecido, embora o infame tomo de conhecimento blasfemo escrito por Ludwig Prinn, o De Vermis Mysteriis, especule que a pedra encerra parte da alma de Nyarlathotep, e que na iminência de sua destruição, o Deus Exterior possa renascer à partir dela. Se isso for verdade, explicaria a razão pela qual o Caos Rastejante parece tão achegado a esse Artefato. Não explica entretanto, porque tal objeto ao longo da história esteve nas mãos de tantos donos. 

A segunda hipótese contempla sua criação através de uma raça de crustáceos primitivos, antepassados diretos dos Fungos de Yuggoth. Estes supostamente teriam criado o Trapezoedro Brilhante, encerrando no seu interior uma imensurável energia que impulsionou seu desenvolvimento e lhes permitiu evoluir para uma das espécies mais importantes do cosmos - os Mi-Go. O artefato teria sido trazido para a Terra, após uma escala na colônia de Yuggoth, ainda que o Necronomicon seja da opinião que ele foi criado lá. Na época, os Mi-Go travavam uma guerra pela primazia do planeta contra a Raça Ancestral e os Xothianos liderados pelo Grande Cthulhu. Os Mi-Go teriam perdido o Trapezoedro para a Raça Ancestral que o reclamou não apenas como espólio, mas como uma arma legítima a ser usada no conflito. Contudo, mesmo a Raça Ancestral temia usar o poder do artefato, pois desconfiava que manipular suas energias causaria danos permanentes no tecido da própria realidade. A Raça Ancestral teria construído então um relicário metálico no qual o artefato foi depositado. Essa caixa protetiva deveria para sempre conter a peça e impedir que ela caísse nas mãos de seus inimigos. Não se sabe em que circunstâncias o Artefato foi perdido, mas é possível que o incidente tenha ligação com a decadência das cidades da Raça Ancestral ou com as sucessivas revoltas dos Shoggoth


Seja como for, o Trapezoedro desapareceu por milênios enquanto a vida na terra progredia para formas e variações impensadas pelos geneticistas da Raça Ancestral. O artefato persistia como uma evidente forma de poder e muitas raças pré-humanas desejavam tê-lo. De fato, eles disputaram avidamente pela sua posse. Diferentes tribos do Povo-Serpente se digladiaram para tê-lo, até que uma poderosa facção se mostrou mais implacável que as demais e o reclamou para si. O Trapezoedro foi levado então para a lendária cidadela de Valusia, onde feiticeiros aprenderam com ele os segredos da Ilusão. 

Contudo, um objeto tão poderoso acabou causando disputas entre as castas do Povo-Serpente. Para evitar uma guerra civil, ele foi enviado para a distante Lemúria. Após um tempo nesse reino, em poder de uma seita de adoradores do Caos Rastejante, o Trapezoedro foi roubado e ressurgiu na corte do mítico Rei Kull da Atlântida. Inimigo declarado do Povo-Serpente, o monarca usou o artefato contra seus algozes e arrancou deles parte de seus poderes hipnóticos. Em algum momento de seu reinado, Kull julgou que o Trapezoedro acabaria causando sua queda, e resoluto, o atirou no oceano antes que isso acontecesse.

Depois que os mares tragaram a Atlântida e a Terra Hiboriana substituiu o Mundo Antigo devastado por uma hecatombe, vários feiticeiros buscaram o Trapezoedro. O célebre Livro de Skelos citava o artefato e mencionava o poder nele contido. Muitos magos do Mundo Antigo buscaram por ele, inclusive o grande bruxo estígio Thoth Amon que devotou parte de sua existência a tê-lo. Mas não seria na Era Hiboriana que o item ressurgiria, mas muitos séculos depois.


Diz a lenda que um humilde pescador minoano lançava suas redes no Mediterrâneo, quando percebeu que havia apanhado algo além de peixes. Ao abrir a curiosa caixa de metal, seus olhos se tornaram os primeiros a ver o artefato após milênios. Sabendo que estava diante de algo de valor inestimável ele mudou o curso de sua embarcação e seguiu para o Egito. Na época, o Reino do Nilo era governado por um Faraó despótico que alterou as leis para incluir seus próprios deuses blasfemos. Nephrem-Ka se tornaria o Rei-Feiticeiro da Quinta Dinastia, o último a venerar Nyarlathotep como Deus acima de todos Deuses. Quando o Faraó tomou em suas mãos o Trapezoedro Brilhante, ele soube que o Caos Rastejante havia lhe abençoado com um presente inestimável.

Mas o horror ímpio de Nephrem-Ka não ficaria impune para sempre, após muitos anos, ele foi desafiado pelo povo egípcio cansado do regime apóstata e dos seus deuses atrozes. Temendo que seu reinado terminaria em sangue, o Faraó ordenou que seus mais estimados artefatos fossem encerrados num vasto Labirinto em Kish. Ele pretendia evitar que a pedra caísse nas mãos de seus opositores e tencionava recuperá-lo mais tarde. Entretanto, o Faraó não teve a chance de reaver seu tesouro e acabou assassinado durante a revolta que encerrou sua dinastia.

Séculos mais tarde, outro governante egípcio encontraria o artefato e o usaria como ferramenta para se perpetuar no poder. A infame Rainha Nitocris, devota do Faraó Negro, um avatar de Nyarlathotep, obteve o Trapezoedro das profundezas do Labirinto de Kish no sexto ano de seu reinado. Mesmo rivalizando Nephrem-Ka em malevolência, Nitocris reinaria por relativamente pouco tempo. Antes de morrer, ela ordenou que seu corpo fosse revivido pelos seus feiticeiros e que seus tesouros estivessem à sua disposição quando voltasse. Seu vasto tesouro foi movido de volta para o Labirinto de Kish que se provou um excelente esconderijo. Lá, seus itens inestimáveis e sua riqueza nababesca deveriam aguardar sua senhora de direito. Não se sabe o que transcorreu então, mas o Trapezoedro Brilhante continuou no centro do labirinto junto com outros tesouros, intocados por milênios.


Apenas em 1844, uma escavação arqueológica liderada pelo Professor Enoch Bowen encontrou um acesso que lhe conduziu ao Labirinto de Kish. Em seu interior claustrofóbico, ele emergiu com exuberantes artefatos e é claro, a magnífica joia. Após essa fantástica descoberta, Bowen decidiu encerrar abruptamente a expedição e retornar à sua terra natal, a cidade de Providence em Rhode Island. Inexplicavelmente ele fundou o Culto da Sabedoria Estrelada (Starry Wisdom Cult), uma seita de caráter místico religioso devotada ao estudo de mistérios ocultos. Bowen presidia a estranha congregação tendo o Trapezoedro como relíquia sagrada. Os curiosos rituais e os rumores à respeito do caráter peculiar do Culto fizeram com que ele fosse muito mal visto pela vizinhança.

Após a dissolução do Culto em 1877, o artefato permaneceu na Igreja até meados de 1935, quando foi descoberto pelo autor e artista Robert Harrison Blake. Após estranhos eventos conectados com distúrbios da lei e da ordem, além da morte incomum de Blake numa noite escura de tempestade, um médico local recolheu o artefato e sem olhar para ele, o lançou nas águas da Baia de Narragansett. Membros do Culto da Sabedoria Estrelada que ressurgiu posteriormente acreditam que a Seita irá se tornar uma religião preponderante quando o artefato ressurgir conforme suas crenças.

O Trapezoedro Brilhante é uma joia relativamente pequena que se assemelha a um cristal de quartzo. Ele é quase que completamente preto, mas uma análise cuidadosa revela estrias avermelhadas de um tom escarlate irradiando de seu núcleo para fora. Muitas pessoas descrevem um curioso brilho interno que provavelmente é de onde se origina seu nome. A pedra é um poliedro com várias faces lisas irregulares medindo não mais que 10 centímetros de altura. Ele é geralmente encontrado em uma caixa de metal com uma tampa de encaixe deslizante. A tal caixa, cuja natureza desafia qualquer classificação, é decorada com símbolos rúnicos gravados na tampa e hieróglifos nas laterais. Material e símbolos similares foram vistos em artefatos coletados pela Expedição Miskatonic à Antártida em 1937. Quando acondicionado na caixa, a joia fica suspensa no centro desta por uma série de suportes que se projetam do interior do recipiente formando um suporte. Nenhum método conhecido pelo homem seria capaz de danificar o artefato ou a caixa que o protege.


Aqueles que manipularam ou meramente estudam o objeto detalhadamente o descrevem como uma coisa claramente alienígena. Testemunhas afirmam que a joia causa uma sensação enervante, um tipo de angústia inexplicável que acomete as pessoas mais sensíveis. Alguns sequer suportam ficar no mesmo ambiente que ele. Olhar para a pedra por alguns segundos é o suficiente para que ela proporcione assombrosas e bizarras alucinações. Essas visões desconcertantes envolvem outras dimensões, paisagens de mundos alienígenas e golfos do tempo e espaço além da imaginação humana. As revelações proporcionadas por essas alucinações infundem na mente do indivíduo uma descarga de informações aviltante sobre a natureza dos Mythos de Cthulhu. Em outras palavras, a simples visão grava nos recônditos da mente humana revelações fulminantes de conceitos cósmicos apocalípticos. Uma vez que a mente humana não é talhada para absorver esse influxo de informações o efeito tende a ser extremamente danoso. Indivíduos manifestaram confusão, desmaios e até convulsões. Alguns efeitos podem se assemelhar a uma crise aguda de Encefalite e vítimas levadas ao óbito não são desconhecidas. Há casos de pessoas que jamais se recuperaram da exposição ao Trapezoedro, mas outros conseguem suportar a experiência absorvendo o choque de forma menos traumática considerando toda experiência como uma revelação divina.

Alguns teóricos dos Mythos de Cthulhu alegam que o artefato possui uma forte ligação com doenças, infecções ou mutações anormais. Sua mera proximidade pode acelerar a metamorfose corpórea de indivíduos com propensão a se transformarem em Abissais ou Carniçais

O Trapezoedro Brilhante que também é conhecido em alguns círculos místicos como Joia ou Cristal do Caos está intimamente associado a Cultos e Feiticeiros devotados a Nyarlathotep. Trata-se de um dos principais artefatos relacionados ao Caos Rastejante e muitos cultistas ouvem lendas à respeito de sua existência. Cultos como a Irmandade do Faraó Negro ou o Culto da Língua Sangrenta consideram o artefato como uma relíquia sagrada e aspiram encontrá-lo como um dever divino. De fato, cultos dedicados a Nyarlathotep já empreenderam expedições e realizaram buscas ao redor do mundo na tentativa de determinar seu paradeiro. É irônico que um Culto relativamente pequeno e pouco expressivo como a Sabedoria Estrelada tenha obtido sucesso onde grandes seitas com milhares de associados falharam. É possível entretanto que o artefato "escolha" aquele que irá descobri-lo, uma crença bastante difundida entre os fiéis.


Aqueles que ficam expostos ao artefato podem experimentar, além da sensação descrita anteriormente, um pressentimento de grave ameaça, como se algo estivesse lhes observando. A definição é precisa já que a entidade conhecida como Assombro na Escuridão é capaz de perceber as pessoas que estão de posse do Trapezoedro. O Assombro é um Avatar de Nyarlathotep semelhante a um morcego gigante feito de sombras vivas e com um olho vermelho dividido em três lobos. A criatura é contatada diretamente pela joia cristalina e pode irromper de seu interior se após o contato a peça for colocada num lugar dominado pela escuridão. O Assombro é particularmente sensível a fontes luminosas e não consegue subsistir em tais ambientes, sendo repelido por luzes, contudo, na escuridão completa ele atinge o auge de seu poder constituindo uma ameaça a todos que estiverem em seu alcance.

Conhecendo a tumultuada história do Trapezoedro Brilhante até aqui, é perfeitamente plausível supor que ele está fadado a reaparecer à qualquer momento. Entre os cultistas, existe a crença inabalável de que a joia escolherá um novo portador e este gozará das bênçãos do Caos Rastejante. Quando tal escolha acontecer conforme preconizado, este indivíduo terá papel marcante nos eventos humanos. No século XVIII alguns teóricos acreditavam que Napoleão Bonaparte o teria encontrado na Campanha do Egito, o mesmo tendo ocorrido com Adolf Hitler que certos ocultistas reputavam ter  localizado o artefato. Não por acaso, a lenda do Anticristo está intimamente relacionada a essa joia. O que acontecerá quando ele for descoberto uma vez mais é aberto a suposições. Alguns alegam que o indivíduo que o fizer, se tornará um receptáculo para Nyarlathotep, iniciará uma guerra devastadora ou que estará fadado a despertar os Antigos.

Seja lá o que acontecer, o objeto constitui uma ameaça suprema. 

Assista o vídeo do canal Explorando Segredos e Mistérios, inspirado pelo nosso artigo do Mundo Tentacular:

sábado, 25 de setembro de 2021

A Mortalha Branca - a Lenda do Fantasma de Hammersmith


Durante os meses de novembro e dezembro de 1803, Londres foi tomada por um estado de puro terror. 

O movimentado Distrito de Hammersmith foi atormentado por seguidos avistamentos de um fantasma de aparência macabra que deixava a todos moradores e transeuntes apavorados. O terror era palpável nas ruas: as pessoas evitavam sair de casa depois do anoitecer e moradores se trancavam em seus domicílios, passando a madrugada em estado de vigília, rezando e pedindo proteção divina. Sob o umbral das portas colocavam crucifixos ou escreviam orações. Tudo isso porque o Fantasma de Hammersmith estava à solta e podia visitar qualquer um.

Todas as noites os relatos sobre a mesma aparição malévola inundavam a delegacia de polícia. De acordo com a maioria das narrativas, o espectro estava determinado a interpelar qualquer um que tivesse o azar de cruzar o seu caminho. A coisa foi descrita como um homem nu e pálido, vestindo uma mortalha branca ou pele de bezerro - uma típica vestimenta usada para cobrir cadáveres, e tendo grandes olhos vítreos. Ele se movia de forma mecânica ou segundo alguns flutuava a poucos centímetros do chão, estendendo a mão esquelética para tocar com os dedos gélidos a pele das pessoas. Alguns iam mais longe nessa tétrica descrição, afirmando que o Fantasma era capaz de atravessar a carne de suas vítimas e com um toque enregelar o coração, provocando a morte em instantes. Por qual razão ele fazia isso, além da maldade pura e simples, ninguém sabia dizer. 

Um dos encontros mais alarmantes envolveu uma mulher idosa e sua acompanhante, uma moça que na ocasião estava grávida. As duas mulheres teriam ficado com tanto medo ao ver o fantasma que morreram de susto em suas camas. Aqueles que viram os corpos disseram que a expressão delas era de completo pavor e que foi o medo petrificante a causa de suas mortes. A porta do quarto trancada por dentro e as janelas lacradas eram uma terrível confirmação de que ninguém estaria à salvo dos ataques do espírito. Outro avistamento envolveu um carroceiro que perdeu o controle dos cavalos e o veículo que ele conduzia, uma composição, descarrilhou provocando grande confusão. Os passageiros que ele levava ficaram feridos, alguns com gravidade. Nessa ocasião pelo menos seis pessoas testemunharam a assombração cruzando rapidamente o caminho da composição e assustando os animais que saíram em disparada. Finalmente, um cervejeiro chamado Thomas Groom afirmou ter sido estrangulado por trás enquanto cortava caminho através do cemitério de uma igreja. Ele ouviu o som de lamento da assombração poucos segundos antes de ser atacado. O homem conseguiu lutar com seu agressor e escapar, mas ainda teve tempo de ver o fantasma desaparecer atrás de uma fileira de lápides.


Os residentes de Hammersmith estavam dispostos a qualquer coisa para esconjurar a ameaça. Especulava-se que o fantasma pertencia a um homem chamado Peter Meers que teria cortado a própria garganta 12 meses antes numa hospedaria local no coração do distrito. O sujeito era um comerciante que contraiu dívidas e estava sendo ameaçado por agiotas, cobrado constantemente para pagar o que devia. Cedendo ao desespero Meers se matou, mas seu corpo foi encontrado apenas dois dias depois no aposento que havia alugado. O cadáver pálido, endurecido e mordido por ratos, foi levado para o necrotério, mas como ninguém o reclamou, acabou sendo mandado para a escola de anatomia afim de ser dissecado e servir ao propósito de estudos médicos. A história parecia se encaixar perfeitamente em circunstâncias que poderiam levar uma alma a vagar sem descanso. Suicídio era um pecado mortal e acreditava-se que as pessoas que o cometiam estavam fadadas a não ter descanso. Além disso, muitos consideravam que a dissecação nas mãos de anatomistas era uma blasfêmia e que tal coisa podia trazer graves repercussões.    

A opinião geral era de que o fantasma de Meers buscava vingança após a morte pelos sofrimentos sofridos em vida.

O temor era tamanho que a Escola de Anatomia de Londres foi cercada por uma multidão que furiosa exigia a devolução dos restos mortais do sujeito para que ele pudesse obter descanso. Diante de uma turba violenta, o Diretor do hospital concordou em entregar os restos de uma vítima que foram levados pelo bando e depositados sem cerimônias em um jazigo num cemitério. Na lápide alguém escreveu com giz: "Aí está seu descanso, agora nos deixe viver em paz e tranquilidade"!

Mas isso não foi o bastante e poucas noites depois testemunhas afirmaram ter visto o Fantasma de Hammersmith novamente, vagando pelas ruas desertas com sua mortalha branca, causando terror e confusão por onde passava. A polícia londrina disse que não poderia fazer muita coisa, mas a população estava decidida a não ficar parada diante dessa ameaça sobrenatural. Alguns céticos formaram um comitê de vigilância, algo muito comum no período, e passaram a rondar as ruas pelas madrugadas frias à procura do tal "espírito". 


Em 29 de dezembro, membros do grupo, incluindo o vigia noturno William Girdler, avistaram uma figura cadavérica envolta em uma mortalha à espreita na área. Ao invés de fugir, Girdler deu início à perseguição à figura que tentou escapar em disparada; no meio de sua perseguição, ela perdeu sua mortalha no caminho. O pedaço de linho branco transparente, idêntico aos usados nas casas funerárias da cidade, foi apresentado no mercado local para uma população assustada.

Quatro dias depois, Thomas Millwood, um gesseiro de 32 anos, estava voltando para casa pela Black Lion Lane na noite de 3 de janeiro de 1804. Havia acabado de chegar da casa de seus pais e ainda estava usando suas roupas de trabalho; avental, colete, e calças cobertas de pó branco. Um dos vigilantes chamado Francis Smith avistou Millwood e imediatamente gritou: “Maldito seja. Quem é você e o que você quer? Eu atiro se não falar!" Sem esperar por uma resposta, Smith disparou dois tiros, um dos quais atingiu Millwood no rosto e o matou imediatamente.

Ao ouvir os tiros de sua casa, Anne Millwood chamou o nome de seu irmão nas ruas, mas não obteve resposta. Ela correu na direção da Black Lion Lane e o encontrou esparramado no chão, coberto de sangue. Assim que ficou evidente que Millwood havia sido vítima de erro de identidade e que Smith disparou sua arma sem chance de reação, ele se rendeu à polícia. O corpo de Millwood foi levado para o Black Lion Inn e examinado pelo cirurgião local, onde foi constatado que um ferimento a bala na mandíbula esquerda e subsequente lesão na coluna foram a causa da morte.

Dois dias mais tarde, um homem franzino chamado John Graham, funcionário de uma tradicional Casa Funerária de Londres foi preso pela Polícia e acusado de ser o Fantasma de Hammersmith. Graham havia se gabado com um assistente da Casa algumas semanas antes e este finalmente procurou a polícia para contar a história. Na casa de Grahan, os investigadores encontraram duas mortalhas escondidas no fundo de uma gaveta, além de talco branco que ele usava para obter a aparência cadavérica. Grahan tinha em seu poder joias e objetos preciosos surrupiados de cadáveres que haviam passado pelas suas mãos. Mas o pior é que ele colecionava alguns pequenos souvenires macabros, entre os quais dedos, orelhas, línguas e até genitais obtidos em seu trabalho como preparador de funerais. Perante os investigadores, o acusado reconheceu sua culpa e disse ser um necrófilo de longa data.


Ele afirmou que se sentia mais à vontade com os cadáveres do que com pessoas vivas. Costumava fantasiar que estava morto, deitava em caixões e adorava andar pelos cemitérios de madrugada. Em tais ocasiões despia as roupas e andava nu, coberto apenas com uma mortalha funerária. Em um desses passeios macabros, ele acabou sendo visto por uma pessoa e precisou fugir. A experiência fez com que ele sentisse um tipo de excitação mórbida e semeou na sua mente o desejo de repetir aquilo. Grahan reconheceu que havia se passado por fantasma repetidas vezes, mas que não desejava ferir ninguém.

Sua confissão não explicava por que algumas pessoas haviam sido atacadas e outras feridas por um suposto espírito vingativo. Ele garantiu que jamais havia atacado ou ferido ninguém e que sua reação quando visto era simplesmente escapar. A explicação de Grahan para os casos de pessoas feridas ou aterrorizadas era simples: Havia realmente um fantasma vagando por Hammersmith. Ele próprio afirmava ter visto o espectro em suas andanças pelas ruas do distrito.

Os juízes chamados para analisar o caso não sabiam como proceder e depois de deliberar por alguns dias, concluíram que o acusado sofria de alguma doença mental que o compelia a se passar por um fantasma. Decidiram que ele estaria melhor em um manicômio longe do convívio com a sociedade. Os registros não mostram qual foi o destino final de John Grahan, mas confirmam que ele deu entrada como paciente no lendário Royal Bethlen Hospital, a mais antiga e infame das Casas Psiquiátricas de Londres, verdadeiro depósito para loucos e maníacos no período. Não há qualquer menção de saída, portanto é provável que o assistente funerário necrófilo tenha morrido atrás dos muros do hospício.

No inquérito movido contra Francis Smith, ele foi considerado responsável pela morte de Thomas Milwood e enviado para a Prisão de Newgate. Uma semana depois, Smith se declarou inocente, apesar de admitir que disparou o tiro que matou Milwood. Como ninguém realmente testemunhou o tiroteio, o ônus da prova recaiu sobre a promotoria. Smith agravou seu apelo justificando suas ações como legítima defesa. Várias testemunhas de caráter atestaram sua boa reputação e surpreendentemente, a sogra de Millwood, Phoebe Fulbrooke, testemunhou que o genro havia sido vítima do Fantasma de Hammersmith. Ela o advertiu contra o uso de roupas brancas à noite, pois isso enfurecia o espírito. A mulher ainda testemunhou que o genro ignorou sua sugestão e por isso acabou morto.


Depois de uma longa análise dos fatos, o tribunal considerou Smith culpado de assassinato e o condenou à morte na forca. Posteriormente, no entanto, o Rei George III comutou a sentença de morte para um ano de prisão com trabalhos forçados. Em 14 de julho de 1804, ele recebeu o perdão total e foi posto em liberdade.

Nos anos que se seguiram ao conturbado Caso do Fantasma de Hammersmith, o espírito vingativo foi visto repetidas vezes por testemunhas que o descreviam da mesma maneira. Uma aparição pálida e coberta por uma mortalha branca. Alguns passaram a acreditar que John Grahan não passou de um bode-expiatório, apresentado pela polícia como culpado de um crime que não havia cometido e que o verdadeiro culpado era de fato um fantasma. Até os dias atuais, a lenda a respeito do Fantasma de Hammersmith continua sendo contada e habitualmente surge alguma testemunha afirmando ter cruzado o caminho da assombração mais famosa do distrito. Pelo sim pelo não, muitos residentes tradicionalmente evitam vestir branco à noite e andar pelas ruas desertas. 

Ironicamente, Thomas Milwood, o homem morto a tiros porque foi confundido com um fantasma supostamente também passou a ser visto assombrando o lugar onde morreu. Diz a lenda que a cada aniversário de seu falecimento, o fantasma do gesseiro aparece no bar que agora ocupa a esquina em que ele foi alvejado. É tradição em Hammersmith que as pessoas nessa data bebam uma cerveja em sua homenagem e brindem pedindo que ele encontre descanso.

Londres é de fato uma cidade com histórias curiosas. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Trazido pela Maré - O mistério dos Monstros da Ilha Canvey


E já que falamos do Rio Tâmisa, que tal uma lenda sobre esse famoso rio que corta Londres e se estende pelo sul da Inglaterra.

Localizada no Estuário de Essex, e perto da foz do Rio Tâmisa, encontra-se um pedaço de terra medindo cerca de 18 quilômetros quadrados chamado Ilha de Canvey. Em sua época de ouro, de 1911 a 1950, o lugar hospedou um requintado resort à beira mar, que oferecia hospedagem, tratamento com lama medicinal e massagens revigorantes a sua seleta clientela. Canvey possuía belas praias de areia dourada e paisagens aprazíveis que atraiam visitantes. O desastre que acarretou na desativação e abandono do local ocorreu em 1953, e veio na forma de uma forte tempestade e consequente enchente. A chuva causou o rompimento de barreiras de contenção e obrigaram a população residente a ser retirada às pressas. Na operação de evacuação, lamentavelmente ocorreram mortes, já que uma das barcas virou e pessoas foram jogadas no mar bravio. A destruição foi tamanha que a população foi reduzida a quase metade.

Antes disso, Canvey já tinha uma história bastante longa, tendo sido habitada desde os tempos da invasão romana da Grã-Bretanha. Os romanos construíram lá um pequeno forte e uma doca para conserto de embarcações que se lançavam Tâmisa acima. No século XVI, o lugar foi  usado como colônia de leprosos, mantida por instituições religiosas que cuidavam dos afligidos por esse flagelo. A pequena ilha fluvial sempre teve um rico folclore, com várias lendas locais, quase sempre remetendo a fantasmas e assombrações avistadas nas águas turvas do Tâmisa. Uma de suas histórias mais famosas envolve a descoberta de carcaças bizarras de criaturas marinhas até hoje não identificadas. Estas vieram parar na costa da ilha e os moradores assustados com o que encontraram passaram a chamar as coisas de "Monstros da Ilha Canvey".   

A primeira descoberta se deu em novembro de 1953 e foi feita numa praia no leste da ilha, alguns meses depois da fatídica tempestade que obrigou a evacuação. A carcaça havia sido arrastada para a faixa litorânea, e lançada pelas ondas a cerca de dez metros da arrebentação onde ficou presa a rochas. Dois moradores foram os responsáveis pela mórbida descoberta, eles estavam andando pela praia quando avistaram a coisa que à princípio julgaram ser um volume de algas. Ao se aproximar, constataram que era muito mais estranho que imaginavam, de fato, era diferente de tudo que alguém já tinha visto antes. 

A praia onde os monstros foram encontrados

A criatura foi descrita como um ser de aparência batráquia como uma grande rã ou sapo, com cerca de 2 metros de comprimento, pés em forma de ferradura com cinco dedos espalmados e pernas que pareciam sugerir que era capaz de andar, embora seus membros inferiores fossem fracos e pouco definidos. Sua pele era grossa com um tom marrom-avermelhado e borrachuda, desagradável ao toque, fria ainda que tivesse características impermeáveis. A face era hedionda, composta por olhos esbugalhados, duas narinas fundas e guelras nos dorsos. O que realmente chamava a atenção era uma formidável boca repleta de uma miríade de dentes afiados como de um tubarão. O fedor que emanava era medonho e obrigou os dois a se proteger com lenços que cobrisse nariz e boca. O achado da estranha criatura causou um grande rebuliço na época, com um residente chamado Colin Day lembrando daquele dia:

"Eu estava lá. Era um jovem de nove anos na época. Notei um grupo de colegas em uma multidão na praia. As crianças estavam cutucando com pedaços de pau. Eu realmente toquei nele! No início pensei que fosse uma pessoa, pois só conseguia ver parte dela através da multidão. Sua carne NÃO era de escamas de peixe. Tinha cor castanha que não parecia com carne humana, era estranha com uma textura de casca de laranja. Lembro-me de gritar para as outras crianças: "É uma sereia". Devo dizer que mesmo aos 66 anos, minha memória de longa data é excelente, principalmente do dia em que vi minha primeira sereia."

Infelizmente, a carcaça foi submetida apenas a um exame superficial, antes de ser considerada inofensiva e cremada sem qualquer identificação conclusiva pelos zoólogos que foram chamados para examiná-la. Na época, tal coisa era relativamente comum, já que dado o estado de deterioração e o fedor aviltante, não seria possível preservar a coisa.

A história tinha tudo para ser apenas isso, uma mera curiosidade, mas haveriam outros desenvolvimentos que tornariam a lenda bem mais estranha e duradoura. No começo de 1954, outras criaturas seriam encontradas na mesma faixa de areia e adjacências. A primeira pelo reverendo Joseph Overs enquanto caminhava pela praia com seus filhos. A criatura estava boiando em uma piscina natural, mas já havia sido parcialmente devorada por pássaros. Overs diria mais tarde que era "uma espécie de peixe diferente de tudo que ele havia visto, com olhos fixos e uma boca dilatada. Tinha dois pés perfeitos, cada um com cinco dedos rosados e barbatanas dorsais". 

Ele chamou outras pessoas para ver a coisa e segundo todos os relatos, era muito semelhante à primeira criatura misteriosa encontrada no ano anterior, só que esta era consideravelmente maior, medindo quase 2,5 metros de comprimento. Quando foi examinado, descobriu-se que tinha pele rosada rígida como a de um porco, bem como pés com garras claras "dispostos em forma de 'U' com um arco central côncavo." Por mais estranho que isso fosse, mais uma vez a descoberta foi descartada e a carcaça eliminada. Os moradores lembram que uma tentativa de remover a coisa usando uma lona falhou miseravelmente e o corpo da criatura perdeu integridade vindo a se desmanchar quase que por inteiro. O cheiro era tão nauseante que as pessoas desistiram de tentar carregá-la. Uma fotografia foi tirada na ocasião, constituindo o único registro do monstro.

A fotografia do Monstro da Ilha, ou ao menos a que foi publicada em 1954

A história realmente se tornaria mais estranha com um terceiro incidente, registrado dessa vez em uma praia mais afastada. Rob Wallis de 19 anos foi quem relatou o avistamento quatro semanas mais tarde. Na ocasião ele insistia ter visto não apenas uma, mas três criaturas marinhas. Contudo, diferente das ocorrências anteriores, dessa vez, dois dos espécimes estavam perfeitamente vivos. Wallis descreveu o incidente como "apavorante". Ele contou mais tarde:

"Eu estava andando pela praia com meu cão, Pickles quando de repente ele parou e começou a latir insistentemente. Deviam ser umas seis horas da tarde, mas o sol ainda estava alto e eu consegui definir algo na arrebentação das ondas. Era uma forma que rolava na marola e era arrastada até a areia. Eu observei por alguns instantes tentando definir do que se tratava, pois à primeira vista parecia um corpo. De repente, duas outras coisas semelhantes saíram do mar e caminharam lentamente na direção daquela que parecia estar morta. Eles andavam de maneira vacilante, arqueados, como se não tivessem familiaridade com deslocamento fora de seu ambiente natural. Eles caminharam até a coisa e tentaram arrastá-la de volta para o mar, mas não conseguiram. Eu tentei conter Picles, mas ele latia sem parar e as coisas ouvindo a algazarra levantaram as cabeças e olharam na minha direção. Elas então começaram a voltar para o mar deixando seu companheiro morto para trás."

Rob voltou para o vilarejo e pediu ajuda a dois pescadores que retornaram com ele até a praia. Os dois confirmaram ter visto uma carcaça idêntica às duas anteriores, mas menor, com talvez 180 centímetros de comprimento. Eles tentaram puxar ela da água, mas as ondas fortes acabaram reclamando os restos e o levaram de volta para o mar onde ela desapareceu. O relato logo se espalhou pela Ilha e as pessoas estavam realmente assustadas, temendo agora a existência não apenas de criaturas bizarras trazidas pela maré, mas de outras que estariam bem vivas.

O caso ganhou popularidade e foi citado em rádios e jornais da época. Ele também é citado no livro    
Stranger Than Science, do pesquisador paranormal e personalidade do rádio Frank Edwards. No livro, Edwards juntava algumas notícias escassas da época e enfatizava os relatos das testemunhas. Mais impressionante, ele havia supostamente descoberto outros relatos bem mais antigos, remontando aos séculos XVIII e XIX, mencionando estranhos monstros marinhos no litoral da Ilha de Canvey.

Em tempos modernos, acredita-se que as carcaças eram grandes espécimes de animais conhecidos como peixe-monge (monkfish), que inegavelmente guarda semelhança com as coisas encontradas nas praias de Canvey. O peixe-monge é um animal de profundidade típico do Mar do Norte, mas relativamente incomum no Estuário do Tâmisa. Contudo espécimes tão grandes quanto os descritos pelas pessoas que viram as carcaças, são desconhecidos.
 
Um peixe-monge capturado no Mar do Norte

Considerando que temos muito poucas evidências fotográficas e nenhuma carcaça foi apresentada, o debate continua até hoje. As única foto supostamente tiradas do Monstros da Ilha Canvey não foi verificada, e outra popular foto da criatura feita em 1955 parece mostrar um tamboril e não um dos monstros que vieram dar na ilha.

O site Anomaly Info disse sobre o enigma de Canvey:

"A ideia de que a carcaça pertencia a um peixe-monge era geralmente aceita com poucas evidências para sustentá-la. A foto publicada junto com o artigo de jornal em 1954 trazia a manchete 'Peixe com pés encontrado no Tâmisa' e a imagem fotográfica creditada ao Reverendo Overs. Contudo, o historiador local Geoff Barsby refuta a imagem. Barsby escreveu vários livros sobre a história da Ilha de Canvey e também foi entrevistado na televisão sobre o assunto. Ele diz que a fotografia publicada no jornal não condiz com o animal que foi achado na praia em 1954. Segundo ele, a maioria das testemunhas que viram o alegado monstro na época, disseram que a fotografia enviada pelo Reverendo era diferente daquela que foi publicada, sobretudo no que dizia respeito ao tamanho da criatura. Barsby acredita que um dos editores trocou a imagem e usou uma foto mostrando um monk-fish para ilustrar o artigo. Possivelmente a qualidade da fotografia de Overs não era boa o suficiente e ele preferiu usar outra imagem disponível." 

Pesquisadores sugerem que a criatura misteriosa poderia ser outro criptídeo famoso supostamente encontrado no século XVI e que gerou grande repercussão. A criatura em questão ganhou o apelido de Peixe-Bispo por sua semelhança desconcertante com um homem trajando a indumentária dos bispos medievais. Um exemplar de Peixe-Bispo teria sido capturado em 1433 no Mar Báltico e oferecido como presente ao Rei da Polônia que desejava mantê-lo como curiosidade em sua corte. Diz a lenda que um Bispo que foi chamado para ver a criatura chamou a atenção para o fato dela em determinado momento imitar seu gesto de fazer o sinal da cruz. Com efeito, ele pediu que o Rei libertasse o ser, acreditando que ele poderia ser um animal sagrado. Supostamente, um segundo exemplar teria sido capturado em 1531 na Costa da Alemanha, mas este morreu depois de ser levado para terra. A criatura foi descrita em detalhes pelo biólogo Conrad Gesner em seu tratado zoológico Historia Animalium.   

Um retrato falado da criatura vista na Ilha

A foto em questão certamente não parece mostrar o que foi descrito nos relatórios, e também é difícil ver um peixe-monge ou tamboril sendo descrito como tendo fortes patas traseiras para andar com dedos claramente delineados. Ademais, os biólogos marinhos que foram chamados para examinar os restos disseram que não se tratava de nada que eles já tivessem visto anteriormente. É perfeitamente plausível inferir que eles reconheceriam os restos de um peixe-monge se estivessem diante de tal coisa.

Com tudo isso, o que podemos tirar dessa misteriosa história?

O que seriam os estranhos restos trazidos para o litoral da Ilha de Canvey? Seriam eles uma espécie de criatura marinha desconhecida? Haveriam outras dela habitando as profundezas? Ou tudo não passou de uma simples confusão quanto ao reconhecimento de um peixe? O que dizer então do relato de Rob Wallis que jura ter visto dois deles andando na praia e tentando recolher um terceiro?

Com tantas perguntas sem resposta, seria de se esperar que outros relatos a respeito de Monstros Marinhos surgissem na Ilha, mas curiosamente mais nada apareceu, exceto um rumor na década de 1970 que se provou mera invenção de crianças. O Monstro da Ilha de Canvey continua sendo um mistério que provavelmente não conhecerá solução, a não ser que alguma outra carcaça seja lançada na praia e dessa vez especialistas tenham acesso a ela. 

domingo, 19 de setembro de 2021

Morte sobre o Tâmisa - Os macabros incidentes na Ponte Waterloo


A Ponte Waterloo é uma das mais famosas de Londres e um conhecido cartão postal da capital britânica. Cruzando o icônico Rio Tâmisa, ela foi inaugurada em 1817 com o nome de Ponte Strand. Sua arquitetura elegante de granito, famosa pelos arcos extensos e colunas de pedra sobre concreto armado, rendam-lhe o apelido de "a ponte mais nobre do mundo". Seu nome foi alterado pouco depois para Ponte Waterloo, com o objetivo de comemorar a vitória da Grã-Bretanha na batalha homônima.

Como muitas pontes, ela foi concebida para facilitar a vida dos habitantes, sendo um dos meios principais de cruzar as margens do Tâmisa e chegar ao outro lado da cidade. Até então, era preciso pagar a barqueiros ou então contornar uma grande distância que permitisse chegar ao outro extremo. 

A história da Ponte Waterloo, no entanto, é bastante estranha e cheia de momentos conturbados.

Nos primeiros anos após a sua conclusão, o governo local, visando quitar os altos custos de sua construção passou a cobrar um pedágio sobre mercadorias conduzidas sobre a porte. O resultado foi um desastre financeiro, pois os londrinos se recusavam a pagar por tal comodidade. A coisa chegou a tal ponto que em 1820, uma multidão tentou bloquear seu acesso, o que causou um grande distúrbio. A força policial foi chamada para interceder e agiu de modo enérgico, deixando vários feridos e pelo menos três mortos esmagados pelas patas de cavalos. Após a tragédia, o pedágio foi removido e a ponte aberta ao trânsito de todos.


Antes mesmo da ponte ser erguida, na margem leste do Tamisa havia um lugar sinistro chamado Execution Docks (Docas da Execução) onde bandidos, amotinados e principalmente piratas eram enforcados. O famoso pirata Capitão Kid foi executado nesse local em 1700, num patíbulo que ficava voltado para o Rio. Ainda é possível ver o piso de pedra onde se erguia a trave na qual os condenados eram pendurados para alegria da população que assistia os procedimentos. Depois de comprovada a morte, muitas vezes os corpos eram deixados ali por alguns dias para servir de alerta para outros criminosos. Apodreciam na ponta de uma corda grossa, balançando ao sabor do vento. Muitos acreditam que a energia negativa represada nesse lugar é tão forte que causa ondas de mal estar nos transeuntes. De fato, até hoje, esse é um lugar considerado assombrado em Londres.

Após a construção da ponte, ela ganhou uma triste notoriedade como um dos lugares favoritos na cidade para se cometer suicídio. A ponte era alta e fornecia o ponto ideal para os desesperados darem cabo de sua própria existência. O poeta Thomas Hood a chamou de "Ponte dos Suspiros" de onde um passo levava ao esquecimento. O pintor Impressionista Claude Monet retratou o lugar em várias telas conjurando um ar de decadência desesperada a elas. O primeiro registro de suicídio na ponte data do ano de sua inauguração: a vítima teria sido uma jovem moça que descobriu estar grávida e saltou nas águas turvas.

Infelizmente, ela foi apenas a primeira de muitos. 

Em 1840, os suicídios na ponte Waterloo eram tão frequentes que a prefeitura mandou instalar uma placa de ferro lembrando aos suicidas que aquele era um pecado mortal e que eles estariam condenando a si mesmos a uma eternidade de danação. Não adiantou muito, e o passo seguinte foi colocar uma cabine de guarda no ponto que ficou conhecido como "Trampolim dos Desesperados" de onde a maioria das pessoas pulava. O ponto era perfeito para o objetivo dos suicidas: eles podiam saltar dali e cair no rio que tinha um dos seus pontos mais profundos. Por garantia, alguns saltavam com pedras nos bolsos, âncoras amarradas nos pés ou algo pesado que os ajudasse a afundar. No inverno congelante, tal medida não era necessária, a água gelada amortecia os músculos e era questão de tempo afundar para o esquecimento. Isso quando o salto não era mal executado e a vítima acabava batendo de cabeça nos pilares de concreto ou em algum banco de areia.

Não faltam rumores à respeito dos fantasmas de suicidas que assombravam a Ponte e seus arredores. Muitas pessoas afirmavam ver ao longo das décadas figuras espectrais chorosas apreciando a paisagem, algumas delas molhadas e inchadas após afundarem no rio. Há casos emblemáticos de pessoas que supostamente tentaram socorrer essas figuras, acreditando que eram suicidas em potencial e que acabaram despencando para a morte certa. 


Contudo, nem todas as mortes na Ponte Waterloo foram causadas por vontade própria. Em 1841, o artista circense americano, Samuel Gilbert Scott realizou uma apresentação pública que reuniu milhares de pessoas nas duas margens do Tâmisa. O plano era realizar um salto ornamental do alto da ponte e nadar para a margem oposta. Scott vinha aperfeiçoando esse número e já havia realizado a façanha em outras pontes. Um andaime foi instalado para seu salto, mas uma fatalidade fez com que ele ficasse preso em um cabo que sustentava a plataforma. O artista ficou preso e acabou pendurado pelo pescoço sendo enforcado diante de uma multidão. Demorou alguns instantes para que as pessoas percebessem que aquilo não fazia parte do ato e que o homem estava morrendo. Quando o público percebeu o que se passava, houve grande comoção, correria e alguns se machucaram.

Em 1920, engenheiros constataram que as fundações da ponte haviam sido instaladas em uma base instável de areia e cascalho que não era segura. Com o tempo a ponte poderia sofrer danos irreparáveis e até desabar. Em 1930 a prefeitura decidiu derrubar a ponte e construir uma nova em seu lugar, aproveitando em grande parte o material. As obras foram interrompidas durante a Segunda Guerra quando as pontes sobre o Tâmisa se tornaram alvo para os bombardeios alemães durante a Blitz. Após sofrer danos consideráveis, a ponte foi condenada e obras se iniciaram para acelerar sua substituição. Uma nova ponte, maior e mais larga, foi parcialmente inaugurada em 1942, e totalmente aberta em 1945. A nova ponte tinha um peitoril mais alto para conter os suicidas o que reduziu em parte o número de pessoal saltando dela.

Um dos mistérios mais emblemáticos à respeito da Ponte Waterloo aconteceu em sua primeira encarnação em meados de outubro de 1857. O incidente permanece até os dias atuais como um dos grandes mistérios da história de Londres. 

Nas primeiras horas da manhã daquele dia frio, alguns rapazes estavam remando ao longo do Tâmisa quando perceberam um estranho volume pendurado por uma corda num dos pilares da ponte. Eles imaginaram que era um tapete abandonado. Curiosos, desembarcaram e correram para a ponte afim de içar o estranho volume e ver o que era. Ao trazer para a ponte, constataram que se tratava de um enorme saco de aniagem. Quando abriram o embrulho provavelmente desejaram que não o tivessem feito, porque o saco estava cheio de restos humanos, partes de corpos e peças de roupa ensanguentadas. 

A polícia logo foi chamada e uma análise dos restos, transferidos imediatamente para a chefatura de polícia, constatou que eram nada menos que 23 partes separadas de cadáveres humanos cuidadosamente embalados em pedaços de carpete. Os tecidos grossos estavam incrustados de sangue e exalavam um fedor nauseante. Mas se isso não fosse suficientemente bizarro, haviam detalhes ainda mais sinistros.


Uma análise completa dos misteriosos restos humanos mostrou que pertenciam a 2 ou 3 homens. Era difícil estabelecer a identidade ou compreender o que havia acontecido no final das contas: faltavam a cabeça, as mãos e os pés das vítimas. Os ossos foram cuidadosamente serrados para removê-los do todo num esforço para reduzir o tamanho do fardo. Também parecia que "a carne tinha sido rudemente cortada em certas partes, em especial as mais tenras" e depois fervida e curada com sal em algum momento após a morte. Os crimes haviam sido decorrentes de violência, já que os legistas identificaram ferimentos causados por diferentes armas perfurantes nas vítimas evidenciando que os crimes haviam ocorrido separadamente.

Uma reportagem da época, publicada num jornal londrino, descreveu o caso da seguinte maneira: 

"As partes encontradas consistiam de pernas, braços, coluna vertebral, articulações das nádegas e as articulações dos ombros. As cabeças, com várias das vértebras, as mãos e os pés, estavam ausentes. Com relação à condição dos restos mortais, verificou-se que a maior parte da carne havia sido removida de maneira muito grosseira, possivelmente com uma serra ou machadinha. Havia, no entanto, algumas porções dos músculos remanescentes nos membros, impregnadas com uma substância salina de natureza cristalina, como se o corpo tivesse sido colocado em salmoura ou curado com sal grosso. É a opinião do cirurgião da polícia que tal procedimento foi adotado a fim de evitar qualquer cheiro que pudesse surgir da decomposição antes que os arranjos diabólicos fossem concluídos para a eliminação do corpo.

Foram contabilizados ao todo cerca de vinte pedaços de 3 ou 4 indivíduos, todos do sexo masculino. Os maiores ossos das pernas e braços foram rudemente serrados em pedaços, divididos perto das juntas dos joelhos e da coxa. Um dos torsos havia sido rasgado em parte da musculatura da carne para exposição da coluna vertebral e remoção de algumas partes. Supõe-se que os assassinatos foram perpetrados a não mais que alguns dias; mas sobre este ponto prevalece a incerteza, em consequência das outras porções da carne presentes nos ossos. O legista é da opinião que os falecidos eram homens de 20 a 30 anos de idade".

As roupas das vítimas também aparentavam algumas esquisitices marcantes que deixaram a polícia sem palavras. Não havia etiquetas ou características de identificação em nenhum dos artigos, e a única coisa que podia ser determinada era que as meias eram procedentes da Alemanha. Os restos de um sobretudo pertenciam por sua vez a uma variedade muito cara que só podia ser adquirida por uma pessoa com recursos. Também era curioso que os bolsos das roupas haviam sido virados do avesso e alguém deliberadamente abriu as costas dos casacos e camisas. Considerando que não havia cabeça e os recursos forenses limitados na época, foi impossível identificar quem eram as vítimas.


A polícia investigou o caso, dando a ele grande destaque uma vez que a mídia fez um grande escarcéu com a descoberta macabra exigindo providências. Um ex-policial que estava na Ponte Waterloo na noite anterior à descoberta lembrou ter ajudado uma senhora idosa a erguer um pesado fardo de lona sobre a catraca na ponte. Ele disse que a mulher estava acompanhada de um rapaz mais jovem que também carregava um saco, possivelmente contendo a corda usada para amarrar o grande saco. A testemunha não prestou muita atenção no homem, e não reparou em nenhum detalhe além de que ele parecia moreno e estrangeiro.

A polícia especulou que a dupla havia tentado baixar a bolsa pela lateral da ponte com a corda e jogá-la no Tâmisa, mas que o fardo ficou preso no pilar. Os artistas da polícia fizeram um desenho da mulher e de seu acompanhante, mas ninguém se apresentou para reconhecê-los. 

O fato dos corpos trazerem evidência de terem sido desmembrados e posteriormente salgados lançou uma grave suspeita sobre açougueiros e negociantes de carne que trabalhavam na margem leste do rio. Lá haviam vários abatedouros onde o crime poderia ter acontecido, com o cheiro e sangue sendo facilmente absorvido pelo ambiente insalubre. Um dos boatos mais medonhos à respeito do crime dava conta de que Londres no período em questão passava por uma crise de desabastecimento. Alguns fizeram uma correlação entre a escassez de carne nos mercados locais da cidade e a horrível descoberta. Apesar da realização de diligências na área dos açougues, a polícia não encontrou nada conclusivo nessa linha de investigação. esperava-se encontrar as cabeças, mãos e pés e até se promoveu escavações nos aterros que recebiam os ossos e restos de animais provenientes de abatedouros, mas nada foi achado. 

Diante de tudo isso permaneciam as questões: quem eram as vítimas, porque foram cortada em pedaços e mais importante de tudo, quem os matou? Ninguém sabia, e até hoje não sabemos. 

As roupas encontradas no saco foram lavadas e expostas na esperança de que alguém soubesse a quem pertenciam, mas isso não levou a lugar nenhum. A polícia teve uma pista interessante de uma senhoria que reconheceu um casaco como sendo similar ao de um homem que havia pedido um quarto pouco antes da descoberta macabra. O homem que não deu nome, estava na companhia de uma mulher cuja descrição combinava com a da mulher idosa vista pela testemunha na ponte. Infelizmente, essa pista também também se mostrou um beco sem saída. 


No final das contas, a polícia foi forçada a concluir que havia um assassino solto na área, mas ninguém jamais foi preso ou interrogado em relação aos assassinatos, e os corpos nunca foram identificados.

Não muito depois da horrível descoberta feita na Ponte Waterloo, começaram a circular rumores de que havia um horrível fantasma à espreita nos alicerces da ponte, descrito como uma forma horrível formada por restos humanos mal ajambrados. Mendigos e vagabundos que faziam dos pilares da ponte seu lar falavam dessa suposta assombração como o "Boneco de Carne da Ponte Waterloo", um horror montado com restos costurados. 

A lenda serviu apenas para aprofundar os mistérios de um lugar já estranho e cuja história parece manchada por uma quantidade considerável de sangue e horror. As milhares de pessoas que passam atarefadas e apressadas pela Ponte Waterloo, em pleno coração pulsante da Inglaterra, provavelmente desconhecem os estranhos incidentes ocorridos nela. 

E talvez seja melhor que continuem sem saber...