Todas as culturas têm seus monstros, todas civilizações constroem seus próprios "bichos-papões". São criaturas que vagam pelos limites da imaginação, mas que se insinuam perigosamente no mundo real, sendo legitimamente temidas por aqueles que creem em sua existência.
Os Kharisiri, também conhecidos como khari-khari e lik’ichiri no idioma Aymara ou ainda ñak’aq e pishtaku no dialeto Quechua é um desses monstros aterrorizantes. Uma figura assustadora presente nas terras elevadas do Peru e na Bolívia. A mitologia por trás do kharisiri é impressionante e mistura componentes de moral e ética, com noções realçando os perigos da cobiça.
No altiplano dos Andes peruanos, os Pishtaku como é mais conhecido é muitíssimo temido. As crianças temem a presença do monstro que se esgueira pelas sombras, invade as casas e captura os pequeninos, em especial, aquelas mais gordinhos. O objetivo da criatura é um só, roubar a gordura corporal dos vivos.
Tradicionalmente esses seres nefastos assumem um disfarce que lhes permite trafegar pelas cidades e povoados em busca de suas vítimas. As identidades preferidas deles incluem um estrangeiro rico, um viajante branco ou um padre que parece especialmente caridoso. Os monstros quando alimentados parecem com pessoas normais, mas quando estão famintos apresentam uma aparência cadavérica, uma coloração amarelada na pele, olhos profundos embaçados e uma boca larga, rasgada nos cantos que exala um fedor de putrefação.
Os Kharisiri existem apenas para saciar sua fome profana por gordura. Como o vampiro das lendas, eles também são parasitas vorazes que precisam dos vivos para deles extrair sustento.
A lenda originalmente precede a chegada dos conquistadores europeus às Américas, mas quando os espanhóis começaram a colonizar o Novo Mundo ela ganhou novo fôlego. Há muito no mito do Kharisiri que espelha a dinâmica de poder estabelecida entre conquistadores e conquistados. Uma simbologia imperialista bastante adequada veio à tona.
A Lenda fala de um monstro que parece com pessoas normais, mas que não é como elas. Que se insinua no meio delas, por vezes, com promessas e agrados, mas que deseja roubar e obter para si tudo aquilo que é valioso. A gordura para os povos do altiplano simboliza riqueza e prosperidade - alguém gordo é alguém de posses, que vive em meio ao luxo e que se alimenta bem.
O Sacamanteca (ladrão de gordura) como os espanhóis apelidaram a lenda, era mais do que uma figura para assustar crianças, ele era um terror real. Muitas pessoas que se viam afligidas por doenças até então pouco conhecidas e debilitantes, como câncer por exemplo, temiam estar sendo visitadas pelo Kharisiri. A perda de peso e de disposição eram um indício que a criatura estava se alimentando do indivíduo, deixando-o cada vez mais fraco. Remédios naturais para ajudar aqueles que eram vítimas do ataque do kharisiri podiam ser comprados em mercados públicos. Xamãs e bruxos também ofereciam amuletos e patuas que podiam afastar o monstro e devolver a vitalidade de alguém que tornou-se vítima recorrente de suas depredações. Mas nem sempre a cura vinha a tempo e o toque do Kharisiri não raramente acabava sendo letal.
Os detalhes sobre o mito do Khalisiri variam dependendo do país ou região. Ele encontra particularidades em cada lugar. Por exemplo, o pishtaku peruano é conhecido por matar instantaneamente as suas vítimas para remover sua gordura e desaparecer em seguida. Já na Bolívia, a morte do Kharsuta (aquele atacado pelo Kharisiri) pode demorar dias, ou mesmo semanas após o primeiro ataque. A vítima adoece e sem o devido tratamento vai minguando até morrer. Da mesma forma, descrições sobre a aparência do monstro mudam de acordo com o período histórico e local.
O kharisiri se vale de um pequeno instrumento chamado maquinita, para extrair a gordura ou banha das vítimas escolhidas. O instrumento de metal, semelhante à um canudo metalico é enfiado no ventre, na altura do rim. Uma pequena marca de incisão se forma ali e pode ser percebida com um exame mais criterioso. O kharsuta não se recorda do que aconteceu; sua memória do ataque é nublada e ele vai adoecendo até morrer se não tiver tratamento.
O kharisiri é humano em aparência, mas alguns acreditam que ele pode mudar de forma transformando-se em cão, urubu ou rato. Kharisiris atacam mais frequentemente à noite, e são especialmente ativos nos meses de agosto, quando as oferendas para Pachamama e os demais deuses das montanhas os achachilas são feitas. No dialeto Aymara, agosto é chamado de lakraniphaxi, "o mês faminto", e tem forte significado mistico.
O kharisiri tem como alvo pessoas saudáveis e no auge de suas energias. Eles tem preferência por indivíduos que se alimentam bem e que possuem bastante gordura corporal. Usando métodos sobrenaturais, o kharisiri faz com que a vitima adormeça e não consiga despertar, mesmo que seja perfurada para remoção da gordura. Ele tira apenas o suficiente para seu sustento sorvendo pelo canudo a gordura e se deliciando com a experiência. Ao terminar, ele lambe a ferida que imediatamente para de sangrar e se fecha, deixando uma marca discreta na pele.
O kharisiri se alimenta da gordura ou então a vende para cha’makanis, um tipo de bruxo que usa a gordura em seus rituais. A banha é regurgitada pela criatura e uma vez recolhida e tratada, é transformada em uma vela amarela de cheiro medonho. Uma vez acesa durante as celebrações, ela potencializa os rituais de maldição e encantamento.
Na Bolívia, os kharisiri são achados em todo altiplano, de Potosi a Puno. Entretanto eles parecem se concentrar na área do entorno do Lago Titicaca, especialmente nas proximidades da cidade de Achacachi. Visitantes lá são instruídos a consumir alimentos apimentados pois as criaturas ficam nauseadas com o tempero na corrente sanguínea das pessoas.
O Pishtaku, a versão peruana do monstro parece mais um morto vivo clássico: a pele emaciada e pálida cobre os ossos salientes em seu corpo delgado. Eles parecem pessoas doentes e exalam um cheiro de sepulcro.
Conseguem andar pelas cidades vestindo disfarces e se fazendo passar por vagabundos, mendigos ou viajantes. O Pishtaku, diferente do Kharisiri, pode ser tanto homem quanto mulher, adulto, velho ou mesmo crianças. Eles surgem como um tipo de maldição que se espalha mediante o contato prolongado com outro Pishtaku.
O ataque do monstro no Peru é mais violento. Ele não usa instrumentos para extrair a gordura das vítimas, fazendo uso apenas das mãos e da língua comprida e serrilhada. O Pishtaku abre com as unhas uma ferida e nela insere a língua para explorar os depósitos de gordura na barriga, pescoço, nádegas e seios de suas vítimas. Enquanto ele se alimenta, a vítima não sente nada já que a língua possui um tipo de substância responsável por anestesiar a área.
O monstro chupa a gordura até deixar a vítima vazia, enquanto ele vai ficando inchado pelo material consumido. O ataque tende a ser letal resultando num cadáver reduzido a pele e ossos. Após se alimentar o Pishtaku fica com aspecto mais saudável e consegue se passar por uma pessoa comum. Isso, no entanto, dura pouco tempo, pois logo ele irá precisar de mais gordura para continuar existindo.
Nas sociedades andinas, a gordura era tida como "elemento central para a manutenção da vida", mais até do que o sangue. Gordura, em especial a de lhamas, era usada em rituais sagrados e como uma poderosa oferenda a Pachamama e demais deuses. Até mesmo o poderoso Deus Viracocha teria surgido quando o Lago Titicaca verteu um fluxo de gordura de suas profundezas. De fato, o nome Viracocha significa "gordura do fundo do lago".
Historicamente os europeus do século XV a XVII também acreditavam que gordura humana possuía propriedades magicas. Ferimentos podiam ser tratados com gordura que segundo os antigos tinha propriedades cicatrizantes. A gordura, inclusive a humana, podia ser usada para cozinhar, para alimentar o fogo e para untar a pele e cabelos. Além disso, a gordura de crianças não-batizadas era tida como um potente ingrediente para feitiço, entre os quais o filtro mágico que permitia ao bruxo voar.
Quando os conquistadores espanhóis chegaram a América andina, a crença nos atributos benéficos da gordura continuava em voga na Europa. Os conquistadores saquearam as reservas de gordura dos povos ameríndios atraindo para si o boato de que eles seriam servos dos Kharisiri e Pishtakus.
Diz a lenda que o comandante máximo dos conquistadores, Hernán Cortés, certa vez ordenou que 13 barcos fossem preparados para explorar os rios navegáveis do Peru. Quando não havia parafina para tratar o revestimento de madeira das embarcações, ele ordenou que fosse usada a gordura dos mortos devidamente extraída e derretida em caldeirões de ferro.
Esse incidente deve ter aterrorizado as comunidades nativas fazendo com que os conquistadores fossem vistos como agentes ou mesmo como os próprios monstros de seus mitos. O choque foi tão grande que alguns nomes usados para se referir aos espanhóis derivaram do termo Kharisiri. Uma vez que os Conquistadores que dizimaram as civilizações pré-colombianas estavam atrás de ouro e prata, eles passaram a ser associados a cobiça por riquezas, faculdade que foi transmitida para os Kharisiri e Pishtakus.
Mesmo hoje, em pleno século XXI, o mito dos monstros que cobiçam gordura continua vivo no altiplano. Em alguns lugares a presença de forasteiros é vista com desconfiança de que possam ser eles monstros disfarçados. Isso ajudou a criar o costume de oferecer a estranhos, em especial gringos, um pedaço de pimenta como boas vindas.
O longo legado de medo dos kharisiri e pishtakus continua presente nas sociedades andinas mais tradicionais. Em 1983, após um devastador surto de cólera no interior da Bolívia o antropólogo francês Gilles Riviere foi acusado de ser um Kharisiri. Ele acabou sendo linchado pela população local em busca de um bode expiatório para a epidemia. Após ser massacrado por um bando, seu corpo foi incendiado em praça pública.
O mito do monstro estrangeiro devorador de gordura foi construído com base em elementos históricos e reforçado pelo ressentimento deixado pelos séculos de colonização opressora. Não se trata de algo que desaparece rapidamente e mesmo séculos depois, ele continua vivo na mente e nas crenças da população local.