Uma propaganda da época garante que é fácil de seguir e fácil de engolir. |
Era isso que as pessoas colocavam conscientemente para dentro de seus corpos |
Uma propaganda da época garante que é fácil de seguir e fácil de engolir. |
Era isso que as pessoas colocavam conscientemente para dentro de seus corpos |
A cidade costeira de Kingsport é conhecida como o lar de muitos indivíduos peculiares. São pessoas que escolheram viver nesse pequeno e aprazível balneário da Nova Inglaterra, cujo cenário litorâneo e belas paisagens atrai visitantes ávidos por sua tranquilidade pastoral.
Dentre os habitantes mais ilustres (ou seria notórios?) da pequena cidade, encontramos um que suscita um sentimento de dúvida mesmo entre os residentes mais antigos. São poucos os que conhecem detalhes sobre ele, e menos ainda os interessados em saber. Sua existência sempre foi marcada por rumores, muitos dos quais, os forasteiros mais esclarecidos, considerariam na melhor das hipóteses infundados e na pior, absurdos. "Coisa de cidade pequena", diriam os céticos. Mas não o bom povo de Kingsport, essa lavra de taciturnos yankees acostumou-se com certas coisas a ponto de tê-las como fatos indiscutíveis. Assim é sobre os insondáveis mistérios do mar, o encanto das ondas e a presença do mais antigo morador da cidade, que alguns chamam de o Terrível Ancião.
Não se sabe quem foi o responsável por cunhar esse apelido ou quando ele passou a ser usado para identificar o velho barbudo e grisalho que vive na parte mais isolada da Rua da Água perto do mar. Verdade seja dita, aqueles que se referem a ele dessa maneira se certificam de que ele não está por perto, temendo que o velho ruim (outra alcunha usada para ele) possa estar ouvindo. Ninguém nunca gostou muito dele e é corriqueiro que as pessoas prefiram manter certo distanciamento dele e de sua propriedade. Muitos passam longe dela ou fazer a volta quando o veem claudicando pelas vielas da cidade.
O Terrível Ancião habita uma casa igualmente antiga com muro alto e aparência desleixada. Para o transeunte desavisado o lugar pode passar facilmente a ideia de ser uma morada abandonada. Contudo, o Velho Ruim reside lá desde que os mais antigos habitantes são capazes de recordar.
A casa é imponente e soturna, com um pátio ajardinado com árvores retorcidas e onde o mato cresce selvagem, salpicado por erva daninha e arbustos de espinheiro. Dada a proximidade do mar há ainda algas sopradas pelo vento que ali se depositam em novelos. Coberto por essa mesma vegetação bolorenta podem ser vistas agrupadas estranhas estátuas esculpidas em pedra. São carrancas e representações bizarras de monstros marinhos que felizmente se encontram tão dilapidadas que os detalhes não são mais perceptíveis. Alguns sugerem que o próprio ancião foi o artista responsável por essas imagens, mas outros atestam que ele as trouxe de terras exóticas, onde povos pagãos talharam essas formas ímpias para adornar seus templos.
O jardim insalubre, ainda que pujante, conduz até o alpendre de madeira carcomida, onde uma cadeira de balanço permanece disposta, ainda que o velho raramente a utilize. Houve tempo que ele observava os andarilhos que desciam a rua apressando o passo ao desfilar diante de sua calçada rachada. Mas hoje em dia, raramente ele é visto ali.
Todos que tem a curiosidade de observar a fachada venerável da casa de alvenaria, percebem que ela possui estranhos símbolos arranhados nas pedras gastas e madeira maciça. Alguns sugerem se tratar de grifos náuticos, mas outros reputam a eles origem cabalística. Os vidros nas janelas são grossos e amarelados, cobertos por uma camada de poeira que aderiu a maresia. Alguns deles foram rachados por pedras atiradas por algum menino mais valente. O telhado claramente necessita de reparos, mas ninguém iria se voluntariar para esse serviço.
É motivo de debate entre o povo de Kingsport a razão pela qual a vivenda do Terrível Ancião parece estar sempre imersa numa densa névoa cinzenta. O fog oceânico não é, de modo algum, raro na cidade, contudo ele parece assomar nesse endereço, ganhando corpo e se avolumando em espessas nuvens pairando sobre o quintal. Quem observa esse fenômeno se surpreende ao constatar que o nevoeiro repousa ali, estático como se estivesse à vontade naquela localidade. Isso cria um efeito incomum que contribui sobremaneira para a aura enigmática da morada.
Se por fora a propriedade levanta dúvidas, seu interior constitui um mistério ainda maior. Até onde se sabe, o Terrível Ancião é o único residente e são raríssimos os visitantes que ele admite além de seus umbrais. Aqueles que lá estiveram, ou que se esgueiraram para espiar o interior, comentam que há um salão de visita com assoalho de madeira, uma lareira sempre crepitando e um ambiente rústico repleto de velhos artefatos náuticos. Não se trata de decoração, já que essa miscelânea de objetos empoeirados se encontram dispersos sem ordem definida junto das paredes, sobre alguma mesa de canto, prateleira ou na bancada da lareira.
O ocupante da casa tudo indica cedeu ao hábito que muitos velhos adquirem com o tempo, o de guardar coisas sem serventia pela simples razão deles serem lembretes de sua vivência. Digno de nota, e mencionado pelos que visitaram a casa, é uma coleção de estranhas garrafas de vidro azulado de forma e aspecto singular que repousam sobre uma sólida mesa de mogno castanho ao lado da lareira. Há algo de sinistro nessa coleção, ou assim dizem os que a viram brevemente.
As tais garrafas são antigas, isso é certo, mas nada explica o estranho brilho que elas emitem. Todos e cada um desses vasilhames se encontram cuidadosamente lacrados com rolhas de cortiça cobertas por cera de vela. É consenso que as garrafas estão vazias, exceto por um fino fio prateado preso a parte interna da rolha. Na ponta desse pendulo, curiosos pingentes de chumbo rodopiam no interior das garrafas. Alguns sugerem que o velho, provavelmente senil, tem por costume engajar em animadas conversas com essas garrafas e que elas costumam emitir estranhos ruídos e vibrações nessas ocasiões. Superstições sem sombra de dúvida, mas ao menos um indivíduo que esteve na casa sentado diante da mesa relatou ter visto silhuetas fugazes surgirem na superfície do vidro apenas para sumir em seguida.
Não se sabe muito sobre os demais cômodos da propriedade. Contudo é certo que o quarto do Ancião fica no segundo pavimento acessado por uma escadaria empoeirada que range e reclama a cada degrau.
Muitos dizem que a casa é reflexo de quem nela reside, e isso é verdade no que tange ao seu habitante único. Ele é indubitavelmente um indivíduo de idade avançada, mas não é fácil determinar quantos anos ele tem. Isso porque, embora pareça velho, e velho seja, reside nesse vetusto ancião uma centelha admirável de energia. Algo em seus olhos atentos de um azul pálido contradiz o molde de um velho encarquilhado. Embora se mova amparado numa bengala de madeira nodosa, ele parece fingir o manquitolar débil que exibe, falseando propositalmente para que o tomem por alguém frágil.
Sua aparência geral pode ser descrita como desgrenhada. Sua face enrugada e empalidecida conserva uma perpétua expressão sisuda de desagrado. Os cabelos grisalhos e a barba crescem como uma única coisa, formando um emaranhado grosso que escorre pelos ombros e pelo queixo. As sobrancelhas são grossas e os tufos que brotam de suas orelhas e nariz lhe conferem uma imagem lupina. As roupas que veste são puídas, datadas de duas ou mais gerações atrás.
O excêntrico morador transita pelos cantos da casa, preparando as próprias refeições e fazendo suas tarefas sem requisitar a ajuda de ninguém. Até algum tempo atrás ele era visto rachando lenha no pátio enquanto conversava com algum interlocutor invisível. Esse hábito frequente suscitou a suspeita de que ele estivesse finalmente ficando senil. Alguns anos atrás, um médico de Arkham que passava férias na cidade se compadeceu e foi até a casa tencionando avaliar se o velho precisava ser interditado. O gentil profissional foi expulso e por pouco não recebeu uma bengalada quando mencionou que poderia indicar um acompanhante ou uma criada para cuidar do Ancião.
Para o povo de Kingsport, o velho tem algo entre 80 e 120 anos, mas alguns vão mais longe. Dizem que ele seria contemporâneo de seus bisavós, ou até trisavós, que eram jovens quando ele já era adulto. Alguns brincam afirmando que o Terrível Ancião em momento algum de sua existência terrena foi jovem. De tão taciturno, muitos sequer supunham seu nome, ainda que alguns acreditem que ele na mocidade havia sido um capitão de clipper engajado com o comércio das Índias Orientais.
Um rumor persistente é que o ancião teria reunido uma considerável fortuna e que mantinha essa riqueza escondida em algum lugar de sua casa. O boatos eram alimentados pelos relatos de que ele pagava suas contas com dobrões de ouro espanhóis. Essas histórias eram muito especuladas pelo povo de Kingsport que se perguntava qual a origem de tesouro tão fabuloso.
Mas quem realmente é o Terrível Ancião da Rua da Água?
Acompanhe-nos na continuação desse artigo que apresentará as terríveis verdades sobre sua origem, sua identidade e o que ele oculta sob a fachada de um pacífico eremita.