Quando alguém fala do Marrocos uma das primeiras coisas que vem à cabeça são cenas em preto e branco do clássico filme Casablanca (Casablanca, 1942). O cenário de intriga internacional se misturando a um clássico romance em tempos de guerra tem afinal de contas um forte apelo. Mas o que dizer do Marrocos como cenário para aventuras envolvendo os Mythos ancestrais de Cthulhu?
Não deixa de ser uma inovação. Os contos de Lovecraft se concentravam sobretudo na Nova Inglaterra, a chamada Lovecraftian Country, e em poucas exceções se estendiam a outras paragens. Robert E. Howard, um dos mais célebres correspondentes de Lovecraft era mais afeito a centrar suas estórias em países distantes, lugares pouco explorados repletos de perigos e exotismo. Não por acaso, Secrets of Morocco é um livro que remete muito mais a Howard do que a Lovecraft. Também não é obra do acaso que muitas páginas desse livro sejam devotadas ao sistema de Pulp Cthulhu – embora a Chaosium ainda não tenha lançado esse livro que é considerado quase uma lenda pelos fãs, já que é prometido há anos.
Marrocos é uma terra que oferece muitas possibilidades para aventura e excitação. A longa e sangrenta história de guerra e conquista fala por si própria. Poucos países tiveram tantos conquistadores ao longo de sua história, e cada qual deixando suas marcas no estilo de vida e na própria paisagem. Ruínas romanas, mesquitas árabes, casarões franceses... tudo isso em uma mesma cidade.
E o que dizer das infinitas possibilidades para cenários que bebem da fonte do gênero pulp? Aventuras envolvendo civilizações antigas, tesouros arqueológicos, cultos sanguinários e a presença de criaturas terríveis se encaixam perfeitamente nessa ambientação. O país possui perigosas montanhas e vastos desertos, terreno fértil para o keeper pontuar com cidades perdidas que escondem segredos ancestrais. Há ainda espaço de sobra para os inevitáveis choques culturais entre personagens americanos/ europeus e os habitantes locais cujas tradições são preservadas a ferro e fogo.
As cidades marroquinas também fervilham com boas oportunidades para o keeper apresentar a rica cultura do Norte da África: mercados, bazares, cafés, bibliotecas e palácios são apenas alguns dos lugares a serem explorados no decorrer das investigações. Além disso, o Marrocos oferece a oportunidade de intercalar o cenário de horror clássico com elementos de espionagem, política e intriga. Nos anos 20, os movimentos de independência no país estavam no auge e já se podia farejar a revolução no ar. Cenários desse tipo, misturando horror e história estão entre os meus favoritos.
Por todos esses motivos eu esperava muito desse livro. Cheguei a fazer o pedido em pré-venda e quando ele chegou li sem parar esperando pelos elementos descritos acima. Mas concluída a leitura, foi difícil não me sentir um bocado frustrado.
Não é segredo que Secrets of Morocco foi anteriormente editado na forma de monografia. Eu entendo que muitas das monografias sejam menos elaboradas e com menos pesquisa do que os livros da Chaosium que sempre primaram pela quantidade de informações e detalhes. Isso ocorre em parte pelo fato das monografias terem um número menor de páginas. O que não entendo é porque não houve uma reformulação de conteúdo quando a monografia foi “promovida” a livro e lançada como tal. Não tive acesso a monografia que originou Secrets of Morocco, mas suponho que elas não tenham tantas diferenças entre si. O livro tem pífias 124 páginas (é o trabalho mais fino da série Secrets até o momento), sendo que muitas dessas páginas são preenchidas por mapas e desenhos. É muito pouco para um livro que se propõe a falar de um país inteiro.
O livro peca em conteúdo, e esse é seu maior problema. Você encontra informações básicas sobre as mais importantes cidades do Marrocos, mas tudo é apresentado de forma solta sem conseguir se dissociar de uma visão incrivelmente superficial do país e de seus habitantes. Para uma cultura tão rica e vibrante isso é imperdoável.
Eu não gosto do estilo de escrita do autor, William Jones, e sinceramente não gostei de nenhum material que ele tenha assinado para jogos de RPG até o momento. Ele é também o autor do Secrets of New York, em minha opinião, um dos livros mais fracos lançados para CoC desde o surgimento do sistema. Eu esperava ansiosamente que ele conseguisse se retratar nesse livro apresentando algo interessante sobre o Marrocos, mas infelizmente o texto acaba sendo tão fraco quanto o de seu trabalho anterior. Acho que terei de pensar duas vezes antes de comprar outro livro dele que possa vir a ser lançado.
As fotografias espalhadas pelas páginas ajudam um pouco a invocar o clima de exotismo do país, mas quando o texto deveria complementar essas imagens ficamos destituídos de informações e perdidos em trechos repetitivos. O autor poderia abordar lendas e folclore do norte da África, mas não há muito espaço para esses temas. Ao invés disso temos algumas regras opcionais - a maior parte delas inócuas como a ridícula regra a respeito de bebedeira – e Scenario Hooks que dificilmente o keeper irá desenvolver. O livro apresenta alguns artefatos ligados aos Mythos e NPC´s que também não empolgam. Ah sim, temos também o inevitável guia de pronúncia e frases em francês e árabe que me irritam muito, mas que aparentemente se tornaram uma mania em livros que abordam nações estrangeiras. Caramba, se um dia eu escrever um livro sobre outro país, vou lutar com unhas e dentes para evitar esse medonho desperdício de páginas.
Os mapas não são ruins, mas se concentram em apontar a localização dos lugares que são apresentados ao longo do texto enfadonho. As ilustrações não enchem os olhos, há algumas decentes e outras tantas que se não chamam muito a atenção não atrapalham. Ao menos nenhuma é desastrosa como as do Secrets of Kenya (sem dúvida uma das mais horríveis artes internas para livros de RPG em todos os tempos).
Finalmente chegamos aos cenários prontos que são o filé da maior parte dos livros de Call of Cthulhu. Muitas vezes, o efeito de um livro fraco pode ser relevado por uma boa aventura. Não é o caso aqui!
Secrets of Morocco traz dois cenários. O primeiro The Tablets of Ur-Nansha é a velha estória de cultistas malucos que pretendem invocar uma criatura para destruir seus inimigos. Lá pelas tantas você sente que já jogou esse tipo de cenário e que sabe exatamente como as coisas vão terminar. Não me entenda mal, eu gosto de cenários clássicos, mas o desfile de temas recorrentes chega a ser irritante. É uma pena, pois a criatura chave desse cenário poderia ser muito mais bem explorada.
Em seguida temos Ocean of Sand, um cenário mais pulp que até tem um começo promissor nos subterrâneos da cidade de Rabat, mas que depois se entrega a receita pronta da exploração de uma cidade perdida lembrando um típico Dungeon Delve de D&D. Quando vão aprender que esse estilo de cenário não funciona em Call of Cthulhu?
Finalmente, o autor tenta apresentar algumas ideias para cenários a serem desenvolvidos pelo leitor, como se empurrasse o trabalho para outra pessoa. As propostas são medíocres, mas o que incomoda são os handouts prontos escritos em francês. Para que isso? É para esbanjar algum conhecimento dessa língua ou apenas ocupar espaço? Aliás, outra coisa que me irrita muito são os handouts no final do livro. Alguém realmente costuma recortar essas páginas ao invés de tirar uma xerox? É tão difícil usar esse precioso espaço para algo mais útil que os mesmos textos vistos anteriormente?
Conclusão
O resultado é fraco, bem abaixo do que se pode esperar de uma editora como a Chaosium. Mas o que realmente incomoda é que poderia ter sido um excelente livro se tivesse caído nas mãos de um autor menos preguiçoso (sei que é uma palavra dura, mas aqui é a que cabe melhor). A impressão que tenho é que o autor estava plenamente satisfeito com o resultado da monografia e não achava necessário fazer mais nada. Eu realmente espero que a Chaosium aprenda com os erros cometidos aqui e que programem melhor seus futuros lançamentos. Para quem pensa em comprar esse livro, só posso aconselhar a buscar outros títulos como o Secrets of Kenya que embora peque no que diz respeito à arte possui muitos méritos em seu texto e conteúdo.
Visual: **1/2
Texto: *1/2
Interesse: **
Secrets of Morocco: Eldritch Explorations in the Ancient Kingdom
Autoria: William Jones
Arte: Malcom McClinton
Editora: Chaosium
Formato: Brochura, preto e branco, 128 páginas
Sistema: Call of Cthulhu Basic Roleplay
Idioma: Inglês
Preço: US$ 20,95
Comentários assim são muito válidos. Pelo menos podemos priorizar no que gastar o dinheiro, quando se trata de suplementos!
ResponderExcluirValeu pela resenha!