segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Descrevendo os Horrores dos Mitos (Parte 1)

A aventura já vara a madrugada. Horas e horas de roleplay e investigação: obtenção de pistas, entrevista com testemunhas, visita a lugares afastados e coleta de informações.

E então chega o momento de confrontar o horror da aventura em geral no desfecho da estória.
É então que surge a dúvida: como descrever aquilo que é indescritível?

Os keepers de Call of Cthulhu (ao menos os bons) não se contentam em dizer: "E no canto da sala você vê um ghoul e ele ataca". Poucas coisas podem ser mais anticlimáticas do que nomear uma criatura inominável ou esperar que os jogadores a reconheçam pelo nome. Mesmo que os jogadores (e por que não) os personagens saibam o que é um ghoul, o impacto da cena estará perdido.

Pior ainda, isso dá tempo a eles de lembrar de detalhes sobre a criatura, quais são suas vantagens, desvantagens e como derrotá-la. Se os jogadores na sua mesa forem espertos e curiosos, pode ter certeza que as informações que eles vão captar inocentemente folheando o livro básico remete a forma mais fácil de derrotar o monstro em questão.

Além de estragar o resultado de sua aventura, uma descrição equivocada pode comprometer o trabalho todo que você teve construíndo o clima para o final. Nada pode ser pior do que apatia ou desinteresse, e as armas que o keeper tem para driblar esses obstáculos é descrever em detalhes aquilo que está diante dos personagens e trazer os jogadores para dentro da situação.

A maneira mais acessível de obter esse efeito é usando os cinco sentidos.

Antes de narrar sua aventura pense um pouco a respeito da criatura que você planeja utilizar em seu cenário. Pondere a respeito dela usando os cinco sentidos. Qual a coisa que mais chama a atenção quando você olha para a criatura? Qual o odor que ela exala quando sua superfície viscosa borbulha? Qual a sensação de tocar os centenas de tentáculos que ela possui? Qual o som que ela faz ao se aproximar se arrastando pelo chão? Que sensações a criatura provoca?

Aqui vão algumas dicas de como se valer dos cinco sentidos em uma descrição.

VISÃO

Essa é a forma mais comum de captar o que está à nossa volta. Basta olhar e pronto.

Na maioria das vezes os keepers se limitam a descrever o que os personagens estão vendo, dispensando todos os demais recursos sensoriais. Essa é uma armadilha comum que limita muito a experiência narrativa. A visão é de suma importância, contudo não deve ser a única fonte de descrição.

Todos vão compreender quando o keeper disser que a coisa "parece um enorme animal quadrúpede, tem olhos vermelhos e uma boca cheia de dentes afiados".

Como podemos melhorar essa descrição? Comece com as dimensões: qual o tamanho dele? Prefira uma comparação. "Ele tem o tamanho de um cavalo", "ele é maior do que um homem adulto", "ele é do tamanho de uma casa" ou "sua sombra escura preenche todo o vale". Isso ajuda a criar um contexto para que os jogadores se enquadrem diante dessa coisa que você está descrevendo.

Descreva todas as tonalidades, cores e texturas da coisa. Prefira termos como escarlate, esmeralda ou púrpura para descrever cores ao invés de vermelho, verde ou roxo. Descreva os tons e como eles se misturam para criar um panorama mais rico do que um simples: "ele tem escamas azuis". Que tal trocar essa descrição pobre por algo como "a pele da criatura é coberta de escamas como se ele fosse um enorme peixe, com porções azuladas e outras cinzentas brilhantes como se estivessem sempre úmidas". Nos contos de Lovecraft as cores são sempre muito importantes, existem inclusive aquelas cores que de tão alienígenas e doentias despertam o asco e o horror. Certas cores emanam luminosidade ou fluorescência, brilhando como fogo-fátuo na escuridão.

Olhe para a criatura e complete os detalhes. Ela possui pêlos pelo corpo? Como são? Grossos como a crina de um cavalo? Finos como cabelos de um recém nascido? Como eles crescem? Selvagens? Ordenados? Eles são sujos? Cobertos de descamação? De resíduos? Oleosos? Frágeis?

Como ele se move? Lentamente ou como um leopardo? Ele é ágil? Trôpego? Lento? Suas patas/pés são do mesmo tamanho? Isso influencia em seu movimento? Ele se arrasta com dificuldade ou avança com a graça de uma pantera? Ele se move saltando? Nas quatro patas? Ele voa? Flutua? Desliza pelo ar como se estivesse nadando?

E como é a face dele (se é que ele a possui)? Descreva os detalhes de seu rosto. Seus olhos são da mesma cor? Eles são grandes? Brilham no escuro? Essa coisa possui boca? Como ela é? Grande e rasgada como um sapo? Pequena como a de uma lampréia? Possui tentáculos faciais? De onde eles surgem? Eles se movem sozinhos? A boca permanece sempre aberta? Ela baba? Ou estala como se estivesse sempre sugando? Uma língua se projeta dessa boca? Ela é longa e serpenteante? Bífida? Dentes podem ser vistos? Como eles são? Pontiagudos? Longos? Afiados? O que dizer das orelhas? Elas são desproporcionais? Pontudas? E o nariz? Aquilino? Grande? Nodoso? Acentue as deformidades e os elementos bizarros.

Como são suas pernas? Longas? Desproporcionais? Estranhamente curtas? Exagere nos detalhes visuais para criar algo inumano. Os braços são cheios de cabelos grossos como arame? Horríveis veias saltadas criam um relevo próprio? Os dedos são longos e terminam em horriveis garras curvas? Elas são amarelas e afiadas como navalhas? Ou são lascadas e sujas de terra de tanto escavar o solo do cemitério? Os pés terminam em cascos? Ele possui tentáculos da cintura para baixo? Ou o torso de um verme gigante?

Existem certas criaturas cuja mera visão desencadeia um efeito indesejado naqueles que a vêem. A Medusa é o representante mais clássico de como ver algo dantesco pode ser perigoso. Certas criaturas podem desencadear esses efeitos com um mero vislumbre de seus contornos medonhos. E se ver um monstro fizer com que os olhos comecem a lacrimejar? E se um brilho alienígena cegar temporariamente um indivíduo que encontra a criatura? E se meramente testemunhar a forma absurda da criatura causar náusea e estupor? Os horrores dos Mitos não raramente possuem formas que afetam a percepção e confundem a noção de proporção e espaço.

Uma das formas de se manter o mistério sobre um monstro é não descrever sua forma física. Ignorar sua forma e se ater apenas aos demais sentidos, esse é um recurso dos mais enervantes para manter os jogadores no escuro.

A seguir na Parte II: Audição e Tato

Um comentário:

  1. www.loodo.com.br/2009/10/cthulinaria-jogo/

    Talvez goste, é um Cardgame. Sei que não tem nada a ver com o tópico, mas parece divertido, principalmente pra um fã da série.

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