Por milhares de anos, a serpente desempenhou um papel central nas religiões, costumes populares e crenças supersticiosas ao redor do mundo.
São muitas as fontes que citam as serpentes como seres relacionados a esfera divina. A Bíblia menciona em suas páginas serpentes voadoras de fogo, há deuses com forma de cobra na mitologia da América Central, uma importante lenda dos nativos norte-americanos descreve uma luta entre os homens e um povo cobra que resultou nesses seres destruindo a humanidade com um dilúvio. Na Indochina certos povos acreditam em uma espécie de serpente sobrenatural que protege um reino subterrâneo, assim como os aborígenes australianos creem em uma enorme serpente espiritual habitando o Reino dos Sonhos, o Alcheringa.
As Serpentes estão presentes em tantas histórias que podemos ficar tentados a imaginar se haveria um vínculo entre todas essas crenças dispersas em partes distintas do planeta. Seriam apenas mitos e superstições ancestrais ou há algo mais profundo na adoração das serpentes mundo afora?
O falecido autor francês Robert Charroux oferecia uma opinião polêmica ao defender que a serpente constituía um símbolo misterioso que representava a manifestação de entidades superiores, mais especificamente Deuses, que auxiliaram em nossa evolução. Em muitas culturas, seres não-humanos muito avançados haviam sido responsáveis por ensinar aos homens primitivos a arte da agricultura, os rudimentos da ciência e a base para a construção. A figura desse Civilizador do Homem está presente em uma infinidade de mitos ancestrais e muitas vezes, esta é retratada como uma Serpente.
Na América Central, e em algumas das culturas nativas do norte, a cascavel era sagrada e frequentemente aparecia na arquitetura religiosa, na fachada das pirâmides ou prédios religiosos. Os Cherokee a chamavam de "o grande chefe da tribo", enquanto os Hopi a consideram o irmão mais velho que deu origem ao clã primordial. Serpentes eram reverenciadas pela sua astúcia e sabedoria. Os astecas nomearam seu "Civilizador do Homem", Quetzalcoatl (a Serpente Emplumada) e ele era adorado como o Deus Maior desse povo.
Embora tenham chegado tarde ao cenário mundial e sua civilização durado apenas 500 anos os astecas deixaram um grande legado. No cerne de sua sanguinária religião, na qual milhares de pessoas tiveram seus corações arrancados, havia uma versão do Civilizador do Homem. Os sacerdotes, nessa religião usavam simbolismo com animais para expressar suas crenças. O animal escolhido para retratar o sábio que ensinou aos astecas os rudimentos da agricultura era uma Serpente. Os astecas consideravam um crime matar cobras e muitas delas eram mantidas em templos e lugares sagrados.
Segundo uma profecia asteca, Quetzalcoatl retornaria quando um cometa surgisse nos céus e, por incrível coincidência, um apareceu quando Cortez, chegou ao México com os demais conquistadores em busca de riquezas. Por que o retorno do Deus foi associado a um cometa? A resposta parece estar ligada a uma serpente, pois no México, os cometas eram chamados de "serpentes flamejantes". Além disso, o templo maior de Quetzalcoatl ficava na capital Tenochtitlan cuja disposição se assemelhava a uma cobra enrodilhada. Sua entrada se localizava na extremidade correspondente a mandíbula aberta da serpente.
Mais ao sul, a Civilização Inca que floresceu no Peru, possuía uma religião organizada ao redor de um Civilizador do Homem que também assumia a forma de réptil. Os Incas chamavam essa figura de Viracocha e uma de suas formas era a de uma Serpente Sábia. Viracocha era retratado frequentemente nas paredes dos templos segurando dois cajados na forma de serpentes. Quando Pizarro chegou ao Peru com seus companheiros, os Incas pensaram que ele era o emissário do Deus. Atahualpa, o governante inca, marcou um encontro com Pizarro no Templo da Serpente em Cassamarca. Lá cercado por efígies de répteis, ele se rendeu aos conquistadores acreditando ser essa a vontade divina.
Os índios americanos acreditam que uma enorme serpente habitava os subterrâneos da terra. No mito da Nação Chippewa essa cobra estava ligada aos terremotos e havia causado um dilúvio que exterminou os povos antigos. De acordo com outra versão, uma grande serpente tentou destruir a raça humana, com um dilúvio, mas a ajuda veio na forma de Maniboza que foi enviado à terra para ensinar a agricultura e várias artes que salvaram esse povo. Outro Civilizador!
Maniboza era o protetor dessas tribos e não por acaso, seu símbolo era uma Serpente Alada que podia ser encontrada entre os povos que habitaram o Baixo Mississippi. Uma versão do mito estabelecia que ele havia nascido do ovo da grande serpente primordial, sendo portando filho desta. Há efígies de Maniboza nas cavernas de Pony Hills e Cook's Peak, sempre tendo em suas mãos serpentes que se contorcem. Algumas das artes rupestres mais intrigantes, no entanto, estão na área ao redor de Barrier Canyon, no sudoeste da América, onde a figura do deus é vista cavalgando uma serpente gigante.
Há também o famoso Monte Artificial (mound) de 390 metros no estado de Ohio, que foi erigido na forma aproximada de um gigantesco ovo de serpente. O monte está alinhado ao pôr do sol no solstício de verão e ao nascer do sol no solstício de inverno. Montes artificiais similares pontuam todo o meio oeste americano, chegando até o Canadá.
A tribo dos Natchez reverenciava o sol e acreditava que ele era o lar de um deus cobra que vivia em seu interior. Os sacerdotes e nobres dessa tribo eram tatuados com o símbolo de sóis e serpentes em sua testa. Além disso, no altar do templo maior dos Natchez havia uma cascavel esculpida em madeira que aterrorizou os conquistadores quando estes exploraram a região em busca de riquezas. Os espanhóis ficaram chocados com a forma reptiliana e com as danças executadas em sua homenagem. Acharam que aquilo tinha uma natureza diabólica e atearam fogo no templo.
O que os conquistadores não sabiam (ou mais provavelmente não lembravam) é que a Serpente também havia desempenhado um papel importante nas religiões do Velho Mundo. Milhares de anos antes do cristianismo algumas tradições associadas a Serpente ganharam espaço em muitas partes da Europa.
Em Glen Feachan, Escócia, há um monte medindo 90 metros de altura onde povos primitivos realizavam seus rituais religiosos. Os marcos no alto do monte estavam alinhados com o solstício de verão, e nesse dia, as cerimônias eram realizadas em uma câmara central, com os sacerdotes vestindo peles de serpente. As cobras aliás desempenhavam papel fundamental como emissárias dos deuses reverenciadas como animais sagrados.
Os celtas chegaram às Ilhas Britânicas há cerca de 2.500 anos e trouxeram consigo a crença de que as cobras eram animais sagrados. Entre seus muitos deuses e deusas dois tinham especial importância: o deus-sol Hu, cujo símbolo era uma serpente, e sua esposa Ceridwen, a mãe do mundo. Conforme o mito, quando visitou a Terra e interagiu com os humanos, Hu ensinou aos homens como arar o solo. Ele também, supostamente, ergueu Stonehenge e mostrou como seguir o calendário.
Os celtas possuíam uma casta de sacerdotes devotados à natureza conhecidos como Druidas. Dentre eles, o arqui-druida era a autoridade máxima que trajava um manto branco e carregava um cajado dourado com uma serpente retorcida. Além disso, certos rituais sagrados executados por druidas galeses se iniciavam com as palavras: "Eu sou uma serpente".
Em suas tradições e costumes os druidas veneravam a serpente e esta sempre foi popular ao longo de milhares de anos. Em sua campanha para eliminar as crenças antigas, a Igreja nos séculos XII e XIII proclamou que um santo local, São Patrício da Irlanda, havia atraído e lançado todas as serpentes ao mar, purificando assim a Ilha de sua presença. De fato, não há cobras na Irlanda e esse fato foi tratado como um verdadeiro milagre realizado pelo padroeiro da ilha esmeralda.
A Igreja tentou demonizar a Serpente, sabendo que ela havia sido longamente adorada pelos povos primitivos. Na Bíblia, a Serpente aparecia no mito da criação, como a Grande Tentadora de Eva na época do idílico Jardim do Éden. Ela, que até então, possuía pernas e braços é punida por Deus e obrigada a rastejar sobre a própria barriga pela sua transgressão. Mais tarde, a igreja medieval foi além e comparou a Serpente ao próprio Demônio, reputando a criatura uma faceta demoníaca que vigora até hoje. Não por acaso, algumas tradições cristãs consideram o ato de domar serpentes e apanhá-las com as mãos nuas uma demonstração do poder de Deus sobre o Grande adversário - Satanás em Pessoa.
No entanto, apesar de todos os esforços da Igreja em demonizar as serpentes, muitos povos europeus se apegaram às suas tradições quanto a estes seres. Em Praga, no século XV, ainda se oferecia sacrifício a serpentes e alguns fiéis as mantinham vivas em suas casas. Na Lituânia acreditava-se que víboras eram deuses e como tais elas eram adoravam com grande devoção. Na Suécia até o século XVI, haviam aqueles que reverenciavam as serpentes como mensageiras divinas. A Serpente estava em lendas nórdicas como a Serpente de Midgard que habitava o interior da Terra e que foi enfrentada por Thor, o Deus do Trovão. A Lenda de Jormugandr, um dois filhos do deus Loki com a giganta Angrboa também envolve uma serpente gigantesca. O rebento do Deus teria nascido com a forma de uma cobra gigantesca que não parava de crescer e que foi enviada para as terras de Helhein onde se tornou íntima dos mortos.
Os gregos também tinham grande devoção aos ofídios. Escavações realizadas na Ilha de Creta, em 1903, descobriram estatuetas de uma Deusa Serpente segurando uma cobra em cada mão. Além disso, havia danças rituais que imitavam o movimento das serpentes em toda Grécia. Uma dança similar, conhecida como Furry Dance, era popular em Cornwall na Inglaterra.
A serpente estava associada em inúmeras lendas de cura. Ainda na Grécia, as Serpentes eram vistas como animais mágicos capazes de matar ou curar com as toxinas que produziam em seus corpos. Um bastão formado por duas cobras entrelaçadas se tornou o símbolo de Asclépio, o deus grego da Medicina. O emblema foi adotado como símbolo da Ciência Médica e é usado até hoje.
Os etruscos, que precederam os romanos na Itália, eram um povo avançado que ganhou fama pelas suas impressionantes construções. Muito do que se sabe a respeito deles veio através de seus elaborados túmulos. Observando suas necrópoles e criptas é possível perceber que eles também eram obcecados por serpentes. Existem inúmeras efígies e peças de arte religiosa devotadas a répteis adornando suas sepulturas. É possível que eles creditassem a esses animais um papel importante no além vida.
Havia também cultos devotados a serpentes atuando no antigo Império Romano. O imperador Augusto, supostamente havia sido concebido por um Deus que assumiu a forma de cobra para fertilizar sua mãe. As serpentes eram tidas como seres astutos e resistentes, capazes de superar as maiores provações com sua sabedoria. Para proteger as casas, o povo de Pompéia costumava colocar a imagem de uma serpente sobre a lareira e vestir pele de cobra para quebrar de mau olhado a feitiços.
Na Holanda havia a figura do "Pai das Serpentes" que tomava conta das terras baixas que enchiam nos meses de chuva. Se ele recebesse presentes que lhe agradassem, até mesmo sacrifícios humanos, a cheia seria rápida e quando o terreno secasse se tornaria bom para o plantio. Entre os povos germânicos, havia uma receita ancestral na qual cobras capturadas eram fervidas e o líquido extraído usado para criar um potente filtro curativo. Os saxões consideravam a serpente um animal traiçoeiro, mas admiravam sua esperteza. A adaga curta que usavam escondida no cinturão era chamada de "presa da serpente" e constituía um trunfo num combate corpo à corpo. Muitos guerreiros abençoavam a lâmina a escondendo no ninho de cobras.
As tradições envolvendo serpentes na África remontam às brumas esquecidas do tempo. Nos primeiros dias, a cobra era reverenciada como a encarnação dos Deuses e essas tradições parecem ter surgido espontaneamente em todo continente. A píton, o grande avô de todas as cobras, aparece em muitas histórias africanas e algumas tribos a celebravam ao som da batida dos tambores e frenéticas danças tribais. No Daomé, quinhentos ano atrás, cobras eram consideradas mensageiras divinas e aqueles picados por elas, supostamente tinham sido escolhidos para servir aos deuses no além.
Um povo serpente, cultuado pela nação Dogon da África subsaariana vivia tradicionalmente nos subterrâneos, em cavernas ou covas. Eles protegiam seu reino e seus segredos, mas de tempos em tempos auxiliavam os homens oferecendo seu vasto conhecimento, sobretudo no que dizia respeito a cura. Os xamãs da tribo vestiam peles de cobra que lhes conferiam poderes sobrenaturais. Da mesma maneira, os povos nômades do Saara reverenciavam a serpente que havia lhes ensinado a sobreviver aos rigores do deserto. A serpente mística Dambalah Yedo, foi levada da África Ocidental pelos negros escravizados e encontrou seu caminho até o Caribe onde se converteu em uma entidade poderosa na tradição do Vodu.
Há cinco mil anos, na Suméria, Enlil, o líder Annunaki, era chamado de o senhor das Serpentes e Enki o Civilizador Sumério, segurava um cetro associado a uma cobra. A serpente tem um papel central em várias lendas e tradições do Oriente Médio, "traços do culto à serpente" permaneceram identificados nas tradições da Síria, Líbano e Pérsia, mesmo depois da introdução do islamismo.
A cobra era muito especial nas Terras do Nilo. No Egito Dinástico ela era um símbolo da divindade e um protetor, embora a serpente também fosse uma criatura aterrorizante que os egípcios falecidos encontravam em sua jornada pelo sombrio submundo. As cobras poderiam tanto ajudar quanto prejudicar o espírito que vagava pelo além e para garantir seu auxílio elas raramente eram mortas. Uma serpente sagrada era mantida nos templos egípcios e nos papiros era tradição estampar o desenho de uma serpente como forma de proteção - "Aquele que abrir essa carta sem autorização, irá arcar com a ira da serpente".
O Deus Civilizador, Osíris do Egito, era a Divindade que zelava pelos espíritos dos mortos. No final do Novo Reino, ele foi mostrado sentado em um trono de costas para uma enorme cobra cujo corpo estava envolto em uma pirâmide de degraus. A pirâmide representava a Montanha do Mundo, ou Primeira Terra, que se erguia das águas circundantes na época da Criação. Essa forma de simbolismo estava presente em muitas outras pirâmides, incluindo a dos babilônios, assírios, em Tiahuanaco, na Bolívia, e em Teotihuacan, no México. A Montanha do Mundo também é representada pelo fosso profundo que cerca o complexo de Angkor Wat, no Camboja. Ele foi construído nos primeiros anos do século XII e sua entrada era guardada por serpentes lendárias conectadas com os deuses.
A adoração da serpente era comum no sul da Ásia por milhares de anos e a cobra era amplamente usada como símbolo religioso na Tailândia e Indonésia. No Japão, as cobras, em especial as albinas eram tidas como servas dos espíritos superiores e vinham para a terra comunicar sua vontade. Na China, a presença da cobra branca também é considerada como um sinal de boa sorte. O Ano da Serpente era uma data auspiciosa, de grandes mudanças e transformações.
Efígies simbolizando serpentes foram esculpidas na fachada de templos em todo subcontinente indiano. Em algumas crenças, a imagem delas servia como proteção e impedia que os prédios sagrados fossem alvo de espíritos malignos. O Panteão hindu favorece a serpente como um animal de grande sabedoria responsável por proteger o acesso ao mundo espiritual. Elas também são importantes protetores de tesouros e antigas ruínas nas lendas hindus eram frequentemente guardados por serpentes gigantes e inteligentes. Dentre as lendas brahmanes, a que envolve as Naga, talvez seja uma das mais difundidas sobre uma raça de criaturas meio homem e meio cobra que representa morte, renascimento e renovação.
Mesmo na distante Oceania, as serpentes desempenham um importante papel religioso. Segundo uma lenda de Papua Nova Guiné, o Rei das Serpentes resgatou alguns dos sobreviventes do Dilúvio e os criou para que a humanidade não fosse extinta. Na Austrália, os aborígenes de Warrumunga afirmam que seu ancestral mais antigo era uma enorme serpente. Quando havia muito mal no mundo ele causou um dilúvio que extinguiu quase toda vida. A cobra aparece nas tradições aborígenes na forma da Serpente do Arco-Íris e há muitos desenhos dela em rochas e cavernas. A Serpente Arco-Íris está associada a um homem barbudo idoso, que carregava um cajado sagrado, e que visitou os aborígenes vindo do mundo celeste. Mais uma vez, foi esta figura lendária a responsável por ensinar a plantar, semear e arar o solo. Os aborígenes australianos orientais o chamam de Baimi e ele é tido como um deus que observa a terra do alto.
O que descobrimos com todos esses relatos é que a Serpente foi e em alguns casos, ainda é, reverenciada em todo o mundo primitivo em culturas que estão a milhares de quilômetros de distância umas das outras. Teriam estas culturas estabelecido contato entre si ou tudo não passa de uma grande coincidência?
Há elementos comuns em inúmeras civilizações e tradições.
A Cobra está intimamente associada a um Deus Civilizador responsável por oferecer conhecimento e progresso a um povo escolhido. Muitas vezes, este povo foi afligido por uma catástrofe, mais frequentemente um dilúvio ou enchente que quase extinguiu a humanidade como um todo. A Serpente se apresenta como símbolo da Cura, da Proteção e Misticismo. Seus segredos só podem ser revelados a uma determinada classe de sacerdote, bruxo, xamã ou homens santos. A serpente é celebrada através de rituais elaborados: danças e músicas. Os povos primitivos também faziam uma associação desse animal mágico com seus deuses e deusas, ou com eles atuando como mensageiros para as divindades mais importantes.
O que podemos concluir de tudo isso é que nenhum outro animal desempenhou papel tão importante para a religiosidade primitiva quanto a serpente.
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