domingo, 18 de outubro de 2020

A Fera de Inba Tega - Os Samurais enfrentam uma Besta Devoradora de Homens


Uma as primeiras coisas que surgem na mente dos ocidentais quando se menciona a tradição de guerreiros japoneses é a imagem dos Samurais. A mais reverenciada ordem militar do Japão, composta por guerreiros estoicos e honrados, deu origem a incontáveis lendas. Armados com espadas eles dominavam a arte do combate. 

A maioria das histórias envolvendo os samurais parecem não passar de narrativas fantásticas, já que muitas vezes envolvem monstros bizarros e seres inacreditáveis do folclore nipônico. Não faltam relatos de samurais envolvidos em batalhas épicas contra bestas legendárias, contudo, algumas delas parecem tão detalhadas que talvez tenham um fundo de verdade.

A lenda da Besta Devoradora de Homens é uma dessas.

Estendendo-se pelo norte da região administrativa de Chiba, encontra-se uma vasta área pantanosa formada por charcos e alagadiços conhecida como Inba Tega. Hoje em dia, ela é uma das maiores Reservas de Preservação Ambiental do país, com numerosas espécies de pássaros e vida selvagem que atrai visitantes e turistas, mas no século XIX a área não passava de um pântano extremamente perigoso. Uma região coberta de atoleiros, lama e junco evitada pelos camponeses e temida por ser o covil de criaturas sobrenaturais de todo tipo. Diziam que cruzar os limites de Inba Tega atraía a atenção de espíritos, monstros e seres malignos que lá habitavam. Os que ousavam atravessar o local, raramente conseguiam sair do pântano vivos ou com a sanidade intacta.

 Foi nesse lugar misterioso que se deu o violento incidente registrado em 1834. 


Em uma exibição no Museu da Cidade de Kawasaki chamada "Criaturas Míticas do Japão - Relatos de Seres Estranhos", há um curioso relato envolvendo um estranho e aterrorizante animal que habitava o pântano nos arredores da cidade de Edo. O relato fala sobre um grupo de samurais incumbido de proteger a construção de um canal em Inba Tega. Os guerreiros deveriam supervisionar a escavação de valas para o canal. Cabia a eles proteger os operários que estavam trabalhando lá e que diziam ter visto uma coisa estranha espreitando pelos arredores. 

Segundo a descrição geral, o monstro era uma imensa criatura musculosa de pele escura e grossa, três vezes maior que um homem adulto. Tinha duas grandes nadadeiras terminando em garras no lugar de braços, uma cauda comprida de peixe e barbatanas dorsais. A cabeça medonha tinha formato afunilado com pequenos olhos avermelhados e um focinho estreito que terminava numa boca repleta de presas afiadas como adagas. Ela emitia um ruído roufenho semelhante a um ronco curto e gutural que apavorava os camponeses e os deixava num estado de pânico. O tal monstro nadava velozmente por baixo da água estagnada e mergulhava nos charcos desaparecendo quando era avistada. Mas ela não temia nenhum homem, se aproximava deles furtivamente, oculta pela linha d'água. Quando estava perto o bastante realizava uma emboscada mortal. Nessas ocasiões, se atirava sobre sua presa se valendo do enorme peso para afundar a vítima na água até causar o afogamento. Então a carregava consigo para seu covil onde a devorava até que restasse apenas os ossos.

Quando os samurais chegaram ao local da construção, foram informados pelos camponeses que pelo menos 12 homens haviam desaparecido, levados pela fera. Os ataques aconteciam sobretudo quando as vítimas estavam sozinhas, em trechos alagados, mas não necessariamente fundos - em certa ocasião, o monstro atacou um operário que estava com a água na altura da canela. A coisa saltou da água o agarrou e mergulhou em uma única ação, deixando apenas um turbilhão escarlate.


O plano dos samurais era simples. Atrair a coisa se fazendo passar por iscas. Eles iriam se misturar aos operários e circular pelos charcos como se estivessem sozinhos para atrair a fera, quando ela viesse dariam sinal e os outros, que estavam escondidos, responderiam prontamente para cercá-la. O plano era simples, mas mesmo os samurais não constavam com a selvageria do monstro.

A besta foi atraída conforme o esperado, mas quando emergiu da água, o samurai que se fingia de operário não teve sequer tempo de reagir. Ele conseguiu gritar por socorro, mas quando os homens chegaram já havia sido carregado para o fundo com uma rapidez que deixou a todos atordoados. Os samurais vasculharam o pântano, acharam os restos de seu companheiro horrivelmente mutilado e semidevorado, mas nada da fera responsável por aquela atrocidade. Os rastros se perdiam nas piscinas de água parada e sumiam sem deixar vestígio. A localização do covil do monstro permanecia um mistério. 

No dia seguinte, mais um trabalhador foi pego pela besta, enquanto os samurais estavam explorando o pântano. O homem foi morto e seu cadáver encontrado a 100 metros do lugar onde foi apanhado. Um braço havia sido arrancado e parte de seu flanco foi devorado por vigorosas mordidas. Enquanto os samurais resgatavam o corpo que jazia num banco de areia, a coisa surgiu da água barrenta e se atirou sobre o grupo. A selvageria do monstro era tamanha que os samurais tiveram de recuar, buscando se proteger em um terreno mais alto e seco onde o monstro não podia surpreendê-los. As terríveis garras ósseas que guarneciam as nadadeiras cortavam e laceravam, deixando ferimentos profundos. As armaduras de nada adiantavam e chegar perto da fera para atacá-la com espada era impossível. Felizmente, um dos homens trazia uma lança comprida e ele conseguiu afugentar a coisa estocando sua lateral com a ponta aguda. O monstro conseguiu escapar, mergulhando na água e sumindo em poucos segundos.
    

Os samurais se reagruparam num vilarejo próximo, já quase deserto uma vez que os habitantes temiam a presença do monstro. Lá trataram de seus ferimentos e começaram a planejar um contra-ataque contra a terrível fera. A estratégia deveria se concentrar num enfrentamento à distância, no qual eles não tivessem de se aproximam demasiadamente da criatura. Para isso, fizeram lanças de bambu com mais de dois metros de comprimento. As pontas aguçadas permitiriam romper a couraça que protegia a fera e que se mostrou resistente às suas espadas katana. Também fizeram lanças menores que poderiam ser arremessadas como azagaias. Seria melhor evitar os charcos, tentando atrair a criatura para um lugar em que ela não tivesse a vantagem de se esconder na água e nela escapar.

Um dos camponeses aconselhou os samurais a montar sua armadilha numa ilhota natural, pouco mais que um banco de areia, que parecia o terreno ideal para o plano. Os samurais prepararam o local, cavando armadilhas e deixando armas reservas escondidas para usar se necessário. Nos dias que se seguiram, mataram porcos e galinhas, deixando uma trilha de carcaças ensanguentadas que atrairia a criatura até o local escolhido. Eles estavam confiantes de que o plano funcionaria.

Os guerreiros aguardaram um dia inteiro, escondidos atrás de paliçadas de junco. As lanças e azagaias ao alcance das mãos para que pudessem atacar tão logo o monstro surgisse na ilhota vindo atrás de comida. Uma pilha de carcaças de animais abatidos aguardava por ele. O cheiro enjoativo de sangue coagulando ao sol e o insistente zumbido das moscas era enervante. Os samurais já estavam nos limites da paciência e prestes a desistir da vigília, quando ouviram o som de algo saindo da água. A coisa cuidadosamente se aproximou, observando os arredores esticando o pescoço musculoso e farejando o ar. O cheiro da carne, no entanto era muito forte e ela não foi capaz de farejar os samurais escondidos atrás das urzes. 

Quando o monstro se aproximou da pilha de carcaças para comer, os samurais derrubaram a cerca e correram para cortar qualquer chance dele escapar. A criatura ergueu na parte posterior do corpo e ficou duas vezes mais alta do que um homem, lançando suas nadadeiras de um lado para o outro e emitindo seu ronco medonho. As lanças funcionaram para mantê-lo acossado e com repetidas estocadas, mesmo o couro grosso foi trespassado, se tingindo de vermelho vivo. Enquanto os samurais com as lanças tentavam manter o monstro à distância, os outros se revezavam arremessando os dardos visando sobretudo a cabeça.

A luta foi feroz, mas mesmo coberto de dardos e gravemente ferido, o monstro conseguiu romper a barreira erguida para contê-lo. No caminho até a beira do lago um dos guerreiros desferiu uma estocada mortal que fez o corpo inteiro da fera se agitar e estrebuchar, mas mesmo assim, ela rastejou até a água e mergulhou desaparecendo. Os samurais estavam exaustos, mas mesmo assim deram sequência na perseguição. Seguiram o rastro da fera por mais de 500 metros, pântano adentro encontrando juncos amassados, vegetação esmagada e rastros de sangue de quando em quando.


Eles buscaram a área toda, mesmo depois do cair da noite com o auxílio de tochas, mas não encontraram sinal da coisa. Para todos os efeitos ela havia sumido em algum canto mais profundo de Inba Tega. Supostamente os samurais teriam achado o covil da criatura na manhã seguinte, um regato escuro coalhado de ossadas humanas e restos parcialmente digeridos. Atearam fogo em tudo para que não fosse necessário tocar os despojos. 

Da fera nem sinal!


Nenhum outro ataque aconteceu no Pântano depois desse incidente e com a volta dos operário o canal foi concluído e o Lorde agradecido celebrou a coragem dos samurais. Ainda assim, a fama do pântano causava temor na população o que fez um dos nobres governantes ordenar que a história não fosse mais contada e que os detalhes fossem apagados dos registros. 

É claro, a ordem não foi totalmente obedecida e o incidente se tornou parte do folclore local chegando até os nossos dias como uma incrível narrativa.
    
Mas até que ponto essa história pode ser levada à sério?

Estudiosos do folclore japonês afirmam que a história embora fantástica pode ter algum fundo de verdade. A forma como a narrativa foi copiada se difere das lendas colecionadas pela mitologia japonesa. A história parece muito mais um relato conciso do que uma fábula. De fato, a narrativa se concentra mais na criatura do que nos próprios samurais, o que a difere das lendas que destacam as proezas dos heróis na maioria das vezes. 

Mas se existe algo de real no relato, que tipo de besta poderia ter matado tantas pessoas e de onde ela teria vindo? Através da descrição da criatura, alguns especialistas acreditam ser possível se tratar de uma Morsa. Ainda que estes animais sejam extremamente raros na costa do Japão, não é totalmente impossível que um espécime nativo da costa de Vladivostok pudesse chegar até o país. Biólogos marinhos encontraram ossadas de morsas em ilhotas no ponto extremo do país, ainda que o clima esteja longe do ideal para constituir um habitat para esses enormes animais.


Por outro lado, seria possível que um indivíduo isolado pudesse adotar um ambiente alternativo, mesmo um pântano, onde passaria a sobreviver caçando. Morsas são conhecidas pela sua fúria quando acossadas e a forma como a criatura enfrentava os guerreiros parece ser condizente com a maneira como esses animais se defendem.

A outra possibilidade já no reino da Criptologia seria relacionar a criatura encontrada pelos samurais com um animal pré-histórico, um antepassado do Leão Marinho conhecido como Pontolis que viveu no Mioceno. O Pontolis era uma fera magnífica, mais forte que as morsas de hoje em dia, consideravelmente maior do que os leões-marinhos e capaz de adaptação à climas mais quentes. Não é totalmente estranho que um deles pudesse viver num pântano, ainda que tais seres estejam extintos há milênios. Seria possível se tratar de um animal pré-histórico que de alguma forma sobreviveu?

A verdade, é provável que jamais venhamos a conhecer. Nenhum outro monstro devorador de homens foi encontrado no pântano de Inba Tega e até onde se sabe os ataques da Fera em 1834 foram os únicos relatos de tal ocorrência. Seja lá o que for, se tratou de um incidente isolado. 

De qualquer maneira, a história permanece sendo um dos melhores relatos do enfrentamento entre samurais e uma fera desconhecida. O que realmente aconteceu se encontra para sempre na fronteira entre o real e o fantástico.

2 comentários:

  1. Morsas não amputam membros,não devoram homens e nem tem pele grossa o bastante para resistir a golpes de katana.
    Apenas os deuses sabem a real natureza da besta-fera que assolou os pântanos de Inga Teba em 1834.

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