Em suas páginas, a autora, Mary Shelley fazia um alerta a respeito dos perigos contidos na ciência quando praticada por cientistas obcecados a respeito da vida e da morte. Até hoje, certas atividades científicas, consideradas limítrofes de um ponto de vista moral e ético, constituem uma preocupação que vêm à superfície, sobretudo quando avanços e descobertas são realizadas.
Algumas perguntas se tornaram frequentes: Até onde a Ciência deve chegar? Até que ponto os avanços científicos devem conduzir o ser humano? E principalmente, quais os limites de "Brincar de Deus"?
Nas últimas décadas, avanços significativos no campo da ciência biomédicas, demonstraram que a obra de Shelley era profética. Pesquisadores conseguiram realizar a fertilização in vitro e a manipulação genética para obter melhores resultados em espécimes produzidos em laboratório. Em breve, úteros artificiais poderão realizar a gestação de bebês. A descoberta dos diferentes tipos sanguíneos permitiu em um primeiro momento realizar transplantes de sangue, em seguida vieram os transplantes de órgãos e hoje se fala em transplantes de cabeça ou do cérebro. O mapeamento do código genético, através do Projeto Genoma, nos permitiu conhecer aquilo que somos de uma maneira incrível. O uso de células tronco podem ser a resposta para a regeneração de órgãos inclusive de neurônios. Cientistas já mencionam que a medicina possibilitará que homens e mulheres vivam dentro em breve até os 150 anos. Isso sem falar em clonagem... todos lembram das implicações quanto a reprodução de animais, como a Ovelha Dolly, e dos questionamentos a respeito de experimentos semelhantes com seres humanos.
Quando Shelly escreveu sua obra provavelmente ela jamais imaginasse como o avanço da ciência transformaria o mundo. Entretanto, no momento em que pousou a pena sobre o papel, para escrever o primeiro esboço de Frankenstein, ela compreendia estar diante de uma questão existencial que assombraria as gerações futuras. Não foi por acaso que seu romance se tornou uma das obras pioneiras em um novo e aterrorizante estilo de Horror Gótiu , um que recorria a Ciência para nos assustar.
Mesmo antes da publicação da novela de Shelley, cientistas e pesquisadores já mergulhavam em experiências bizarras envolvendo conceitos de vida e morte. E depois de Frankenstein, eles continuaram experimentando. Aqui estão quatro histórias de cientistas que ousaram se equiparar ao fictício Dr. Victor Frankenstein, mas no mundo real.
ANDREW CROSSE
Andrew Crosse estava envolvido com o estudo da eletricidade em meados de 1837 e para alguns sua carreira serviu de inspiração para o Dr. Frankenstein. O laboratório de Crosse nos arredores de Sommerset, na Inglaterra era cercado de instalações com fios de cobre que concentravam eletricidade usada em seus experimentos. As pessoas se maravilhavam ao visitar o lugar e sentir a forte eletricidade estática que ele conseguia gerar.
O cientista ficou conhecido pela criação do que ele chamou "o Perfeito Inseto". A teoria de Crosse era que a vida poderia ser criada através do uso de uma sopa primordial cuidadosamente preparada com uma série de extratos naturais e substâncias químicas. Para iniciar a vida, esse material, que ele chamou de "Sopa Primordial", tinha de receber descargas elétricas que ativavam a criação de formas de vida a partir da mistura. Depois de conduzir eletricidade em um vidro contendo sua fórmula, ele passou a observar pequenas criaturas semelhantes a insetos se formarem. Em experiências sucessivas ele se surpreendeu ao perceber que doses de eletricidade faziam com que os pequenos animais se desenvolvessem até se transformarem nos tais "perfeitos insetos".
Embora a explicação mais razoável para o ocorrido seja algum tipo de contaminação, Crosse publicou suas descobertas em revistas científicas e ganhou fama internacional. Ironicamente, seu trabalho acabou vazando e o público encarou suas experiências como uma tentativa de "criar vida" e "brincar de Deus". Crosse foi perseguido e ameaçado de morte por teístas que o consideravam um herege. Ele chegou a ser ameaçado por sacerdotes que afirmavam categoricamente que as experiências de Crosse acabariam com o mundo. Seu laboratório foi depredado e incendiado por uma turba de fanáticos. O cientista conseguiu escapar por pouco e se radicou em Londres, para onde levou seus espécimes de Insetos únicos.
Crosse acreditava não apenas ter criado uma nova forma de vida através de seu experimento com eletricidade, mas que seus insetos poderiam se tornar com o tempo maiores e mais inteligentes. Ele realizou pesquisas nesse sentido por muitos anos, mas os animais - provavelmente um tipo de pulgão, jamais cresceram ou ficaram inteligentes como ele esperava.
JOHAN CONRAD DIPPEL
Já que estamos falando de cientistas que inspiraram Mary Shelley, este aqui provavelmente ajudou a construir a imagem de maluco do Doutor. Johann Conrad Dippel era suíço, parte da nobreza local e vivia em uma propriedade isolada chamada... Castelo Frankenstein. E as coincidências não param por aí.
Ele foi um estudante brilhante, treinado por um renomado instrutor chamado Emmanuel Swedenborg que se impressionou com o dom do pupilo ainda na Universidade Giessen. Anos mais tarde, Swedenborg passou a se referir a Dippel da seguinte maneira: "O mais vilanesco, anti-ético e imoral dos praticantes da medicina! Um verdadeiro demônio em seu ofício blasfemo! Eu gostaria de jamais tê-lo conhecido ou ensinado o que ele sabe a respeito de ciência"
A razão para tanto desgosto decorre das muitas experiências controversas conduzidas por Dippel nos porões do Castelo Frankenstein. Segundo rumores, ele mantinha um enorme laboratório onde praticava alquimia e onde perseguia a mítica fórmula mágica do "Elixir Vitae" (que permitia a vida eterna). Dippel teve acesso a livros antigos e tratados versando sobre Alquimia, inclusive alguns volumes raros censurados pela Inquisição. Seu conhecimento de outros idiomas, inclusive árabe, permitia que ele lesse tomos escritos por sábios do Oriente Médio.
O cientista realizava incontáveis testes em animais, sobretudo porcos, cães e cabras que eram devidamente dissecadas por ele após cada experimento. Dippel aproveitava todos os órgãos de seus espécimes e mantinha uma coleção de carcaças e restos de animais preservados em frascos de vidro e barris de cedro. Os criados reclamavam do fedor nauseante que o castelo exalava e do horror que era visitar o laboratório de seu patrão, com uma camada de sangue e vísceras acumulado no piso de pedra. Uma das teorias de Dippel era que os ossos e o sangue de certos animais, quando tratados e misturados com outros ingredientes, poderiam resultar em um elixir prolongador da vida.
Posteriormente ele começou a estudar os efeitos de suas fórmulas em cadáveres, acreditando que sua fórmula poderia trazer animais mortos de volta à vida. Para seus testes, ele drenava o sangue dos espécimes, e injetava nelas sua fórmula diretamente nas veias, tencionando assim fazê-los voltar a viver. Dippel nunca teve sucesso em seus intentos, mas o caráter profano de suas experiências fez com que ele fosse denunciado por heresia e condenado a sete anos de prisão.
Ao deixar a prisão, imediatamente retornou aos seus experimentos, alegando que não tinha tempo a perder. Dippel trabalhou na criação de reagentes e supostamente fez experimentos com nitroglicerina. Em uma de suas experiências explodiu uma das torres do Castelo Frankenstein chamando a atenção de nobres locais que viram na substância o potencial para uma arma poderosa. Contando com patronos influentes, Dippel dividia seu tempo entre os estudos de explosivos e a preservação de cadáveres. Assim como Frankenstein, ele recorreu ao cemitério local para encontrar espécimes humanos frescos para seus experimentos e chegou a pagar bandidos locais para exumar corpos que iam parar em sua mesa de dissecação.
No fim de sua vida, Dippel começou a se valer da fama de feiticeiro que havia conquistado, incentivando os rumores de que ele havia feito um acordo com o Diabo. Ele também passou a se comportar de maneira sinistra, assumindo o papel que muitos o atribuíam, vestindo capa e chapéu preto pontudo. Isso, segundo ele mesmo, servia para manter os curiosos e supersticiosos afastados de seus assuntos. Johann Dippel morreu em seu laboratório, provavelmente vítima de colapso, mas alguns suspeitam que ele possa ter sido envenenado. Curiosamente, as últimas anotações de seu diário davam conta de que ele estava muito próximo de ter sucesso na criação de um elixir que prolongaria sua vida até os 140 anos.
GIOVANI ALDINI
Outro candidato a Frankenstein que aprendeu a utilizar o poder da eletricidade em experimentos incomuns. Aldini era filho de um importante político de Bolonha e sobrinho de Luigi Galvani, um renomado médico que escreveu um tratado sobre eletricidade muscular.
A formação de Aldini incluía conhecimentos em física, química, biologia, galvanismo e anatomia. Combinando vários dessas disciplinas ele começou a aperfeiçoar métodos que, segundo suas controversas teorias, permitiriam devolver o movimento, e com o devido tempo, talvez até a própria vida à pessoas mortas. Ao contrário de muitos cientistas do período que tentavam ocultar seus experimentos dos olhos do público e das autoridades, Aldini fazia questão de realizar seus experimentos diante de plateias formadas por médicos, estudantes e curiosos. Em certa ocasião ele ligou uma corrente elétrica diretamente no cérebro de um boi que havia acabado de ser abatido com o objetivo de fazer a face do animal se contorcer. A experiência causou enorme controvérsia, alguns o acusaram até de bruxaria, mas o apelo do espetáculo fez com que ele fosse isentado de qualquer punição.
A seguir, Aldini recebeu permissão para realizar o mesmo experimento em prisioneiros executados, aplicando eletrodos através dos canais auriculares. Certa vez ele teria eletrocutado um cadáver fazendo com que os olhos deste abrissem e fechassem sem parar, em uma descrição que guarda semelhança com um trecho presente em Frankenstein. Os experimentos eram realizados em praça pública, diante de multidões que vinham de longe para ver o "espetáculo". Segundo o prefeito de Bolonha, o show servia para desencorajar bandidos e criminosos que atuavam na cidade e que poderiam ter o mesmo destino daqueles homens. O médico também transmitia cargas elétricas na coluna vertebral de cadáveres, fazendo com que os corpos sofressem espasmos.
Aldini se tornou diretor da cadeia e do manicômio de Bolonha onde segundo rumores recebeu permissão oficial para conduzir experimentos com prisioneiros e internos. Ele acreditava ser capaz de reanimar indivíduos afogados ou vítimas de sufocamento através de aplicação de cargas de eletricidade no cérebro. Boatos davam conta de que Aldini mantinha no porão das instituições em que era diretor, aparelhos usados na Era Medieval para simular afogamento e asfixia. As vítimas sujeitas a esse procedimento eram a seguir reanimadas através de eletrodos que direcionavam pulsos elétricos nas suas têmporas. Os supostos experimentos na maioria das vezes falhavam e as cobaias morriam no processo.
É um fato real que Aldini promovia seus "espetáculos" como um artista circense. Ele se gabava de comandar os "poderes vitais" e de exercer domínio sobre a "eletricidade que concede a vida". Além disso, seus estudos enveredaram por caminhos bizarros que incluíam experimentos para tornar pessoas imune ao fogo. Nas ocasiões em que pretendia fazer um experimento, as pessoas viajavam e pagavam algumas moedas para sentar na frente e assistir de perto os milagres e portentos realizados pelo cientista showman. O público, no entanto, não deve ter achado muita graça quando certa vez o cientista calculou mal a voltagem de uma carga elétrica e literalmente explodiu a cabeça de um espécime. Em outra ocasião, ele teria fulminado um cadáver com um choque que fez ele se incendiar.
Cansado de sua auto-promoção, Aldini decidiu que precisava seguir adiante em seus experimentos ao invés de realizar espetáculos. Ele eventualmente viajou para a Austria, onde apesar de não produzir maiores descobertas em sua área, foi sagrado cavaleiro e alçado a posição de nobre. Diferente da maioria dos cientistas nessa lista, e certamento bem diferente de Frankenstein, Aldini morreu rico e bem sucedido.
VLADIMIR DEMIKHOV
Na primeira metade do século XX, animais sofriam horrores nas mãos de cientistas. Na União Soviética, cientistas realizavam experimentos controversos usando cães como cobaia dos experimentos mais bizarros do período.
Alguns destes experimentos, ainda que desagradáveis, ao menos tinham serventia para pesquisas médicas e acabaram ajudando a salvar vidas. Vladimir Demikhov, entretanto, se contentava em conduzir as experiências mais estranhas em suas instalações nos arredores de Moscou. Apelidado de Dr. Frankenstein da União Soviética, Demikhov especializou-se em uma prática médica chamada "transplantologia". Em suas experiências, ele acreditava que para compensar órgãos que estavam apresentando falhas, o ideal seria transplantar órgãos duplos que gradualmente assumiriam as funções dos originais até estes apresentarem falência.
O médico começou sua carreira fazendo testes em ratos, mas logo passou a utilizar cães trazidos de todos os cantos da URSS para suas experiências. Ele tentou implantar pulmões, rins, fígado e até corações com enxertos duplos para os animais, sendo que a maioria morria durante o procedimento cirúrgico. Simultaneamente ele fabricou máquinas que duplicavam a função de coração e pulmão e permitia que animais ficassem vivos por algumas horas.
Uma de suas experiências mais bizarras incluiu a construção de um corpo artificial, composto de órgãos transplantados que eram conectados a cabeça de um pastor alemão. O experimento chamou a atenção de autoridades soviéticas que acreditavam que o Camarada Demikhov estava no caminho certo para reconstruir soldados gravemente feridos. Alguns planos do cientista em ainda mais ambiciosos e visavam a criação de soldados com ossos de metal, pele de borracha vulcanizada e força de 10 homens. Ele chegou a receber uma comenda especial das mãos de Stalin e foi chamado de um dos mais brilhantes cientistas da Mãe Rússia.
O sucesso permitiu ao Cientista realizar várias outras experiências que parecem ter saído de um filme de horror barato. A mais incomum, sem dúvida, envolvia o transplante de cabeça para criar cães bicéfalos. Nenhum desses experimentos moralmente reprováveis teve sucesso e as cobaias que passaram pelo procedimento viveram no máximo um mês.
Rumores davam conta de que o Departamento de Transplantologia do Dr. Demikhov chegou a conduzir experiências em seres humanos no pós guerra. Centenas de prisioneiros alemães, búlgaros e
iugoslavos, além de dissidentes russos teriam sido trancafiados nas instalações para servirem de cobaias para testes moralmente reprováveis. Em 1962, o médico norte-americano Christian Barnard, responsável pelo primeiro transplante cardíaco bem sucedido em um ser humano, visitou o Centro Médico mantido por seu colega soviético em um intercâmbio até então sem precedente. O Dr. Barnard ficou impressionado com as instalações e com os avanços realizados pelos soviéticos e incorporou algumas de suas técnicas para aprimorar seu próprio procedimento. Entretanto, ele reconheceu que muitas das técnicas desenvolvidas só poderiam ter sido criadas com a utilização de espécimes humanos. Vladimir Dhemikov morreu em 1998 e sempre negou os boatos a respeito de seus testes em seres humanos.
Diários médicos (cuja autenticidade ainda é questionada) foram encontrados em 2010 em instalações médicas desativadas próximas de Moscou. Estes documentos confirmavam as suspeitas do uso de cobaias humanas pelo Departamento de Transplantologia entre os anos de 1946 e 1957. Entre os diversos procedimentos realizados estavam inclusive o infame transplante de duas cabeças no mesmo corpo.
Impressiona saber que houve ( e provavelmente ainda Há) coisas promovidas pelo homem, que vão muito além da mais horrenda ficção. Mais uma matéria instigante.
ResponderExcluirLembrei de A Ilha do Dr. Moreau
ResponderExcluirParabéns. Ótima matéria.
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