domingo, 4 de abril de 2021

A Ordem dos Cavaleiros Leprosos - Os Cruzados que não tinham nada a perder


Documentos medievais os mencionam na mesma proporção que os conhecidos Cavaleiros Templários, os poderosos Cavaleiros Hospitalarios (ou Cavaleiros de St. John) e os brutais Cavaleiros Teutônicos. Como os demais, eles foram uma importante Ordem Religiosa que se converteu em Ordem Militar de Cavalaria, com influência e seus próprios privilégios, respondendo apenas à autoridade do Sumo Pontífice em pessoa.

Mas enquanto as demais Ordens foram objeto de estudos, lendas e de um escrutínio cuidadoso da cultura pop, as bandeiras auriverdes da Ordem de São Lazarus se converteram em uma nota de rodapé menor na história das Cruzadas. No longo período das Guerras Santas que varreram a Europa e o Oriente Médio entre os séculos XI e XIII, os Cavaleiros que um dia foram de extrema importância, hoje são pouco conhecidos. 

Existem seis Santos reconhecidos pela Igreja Romana Católica chamados de Lazarus (ou aportuguesando Lázaro), e não se sabe exatamente qual deles é o patrono da Ordem. Os dois mais prováveis são Lázaro de Betânia - que foi trazido de volta dos mortos por Jesus Cristo, conforme a parábola de João 11:1-46, e o mendigo Lázaro que foi menosprezado por um homem rico, mas que encontrou seu lugar no Paraíso - em Lucas 16:19–3.

Lázaro o mendigo, segundo os estudiosos bíblicos sofria de lepra, uma das doenças mais temidas da antiguidade e que não tinha cura. O Lázaro que havia morrido e recebido o dom da ressurreição também estava além de qualquer ajuda. É provável que, na visão Medieval, o que os tornava especiais fosse o fato deles terem sido salvos das mais terríveis aflições humanas - da doença e da morte, pela intercessão do Poder Divino. Ou seja, forças sobrenaturais, ou miraculosas, atuaram sobre eles para reverter uma situação da qual não havia solução.


A Idade Média foi uma época marcada pela doença e pelo temor diante dos males que devastavam o corpo. A Lepra é uma infecção bacteriana crônica que afeta os nervos nas extremidades - a pele, o nariz, os olhos e o trato respiratório superior. É uma doença de ação progressiva, e embora hoje existam tratamentos eficazes para combatê-la, no mundo das Cruzadas, ela era incurável. Aqueles que a contraiam estavam fadados a uma horrível jornada sem um final feliz.

Os afligidos com lepra estavam fadados a uma pavorosa meia-vida, à medida que seu corpo apodrecia lentamente, consumindo a carne em um turbilhão furioso de degradação. Quando a gangrena invariavelmente se instalava, dedos caiam, membros apodreciam e cartilagens liquefaziam. A vítima se sentia fraca, lutava para respirar e ficava cega. O corpo parecia se revoltar por inteiro, desfazendo-se em pruridos mal cheirosos, transformando o indivíduo num arremedo de ser humano, desfigurado além do reconhecimento.

Na Europa Cristã, marcada pela culpa e pela ignorância religiosa, a Lepra era vista como um Castigo de Deus. Ela era uma punição pelos pecados cometidos, no qual o corpo traduzia em feridas a corrupção da alma. Por conta disso, o estigma era pesado, nenhum grupo na sociedade medieval era mais desprezado que o dos leprosos.

Mas para alguns, a doença era vista como uma provação na qual a fé era testada até seus limites. O Martírio definitivo impingido sobre alguns escolhidos, e se estes conseguissem suportar de forma resoluta o sofrimento, deles seria o Reino dos Céus.

A origem exata da Ordem de St. Lázaro é desconhecida, mas por volta de 1130, um grupo de monges já administravam um hospital nos arredores de Jerusalém. Sua missão solene era cuidar dos leprosos da cidade, aqueles que ninguém queria sequer se aproximar. A Capital do Reino Cristão de Jerusalém, a cidade natal da cristandade havia sido conquistada pelos Cruzados em 1099 e desde então, mantida sob seu controle. Ela era importante para cristãos, judeus e muçulmanos, o berço da fé para as três principais religiões do mundo antigo e por elas disputada.


As Ordens de Jerusalém dependiam de monastérios e de terras na Europa para se sustentar. Nobres enviavam doações e os lordes tomavam para si a responsabilidade de protege-las. Com as Cruzadas, as doações migraram para ordens militares que defendiam a Terra Santa e mantinham seu controle. A recém fundada Ordem dos Cavaleiros Templários era a Guardiã de Jerusalém e grande parte dos recursos eram destinados a eles. Com efeito, se tornaram extremamente ricos e poderosos.

A Ordem de St. Lázaro, entretanto, tinha seus próprios patronos. Com a lepra sendo muito comum no Oriente Médio, muitos nobres consideravam o trabalho dos monges essencial para a cidade sobreviver. Se não fosse por eles, quem faria esse difícil trabalho? A doença não se importava com status social e ninguém estava imune a ela, nem mesmo um dos mais emblemáticos governantes de Jerusalém, o Rei Balduíno IV (1173-85).

A despeito de sua condição, Balduino IV era um Rei amado pelo povo, um bravo guerreiro e astuto governante, que liderava seus homens pessoalmente nos campos de batalha. Para esconder a doença, sua face devastada ficava oculta por um elmo dourado criado exclusivamente para ele. Balduíno fez substanciais doações em favor da Ordem de São Lázaro, incluindo a propriedade de terras. 

Lepra tem um longo período de gestação mas seus sintomas iniciais eram facilmente detectados, mesmo pelos Médicos Medievais. Podia demorar até sete anos para que os efeitos debilitantes se manifestassem fisicamente. Isso permitia a leprosos continuar participando de muitas atividades, inclusive combates.

Inevitavelmente cavaleiros e nobres foram afligidos, assim como aconteceu com Balduíno IV. Mas apesar da doença, eles ainda se mantinham fiéis ao seu juramento de lutar pela cristandade. Em uma época na qual relíquias sagradas e direito de sangue eram algo importante, cavaleiros com lepra passaram a ser vistos como mártires. Aos olhos da população, eles estavam mais próximos do sagrado Cristo em decorrência de seu sofrimento visceral. Marchando para a batalha contra os "inimigos infiéis", os Cavaleiros acometidos pela doença, insuflavam os corações cristãos. Eram vistos como verdadeiros heróis inteiramente dedicados à causa.


Um código legal, redigido na aurora do século XIII impôs que qualquer cavaleiro afligido pela lepra e que quisesse continuar ativo fosse obrigatoriamente integrado a Ordem de São Lázaro "que poderia suprir as necessidades de pessoas com tal doença". O Código dos Cavaleiros Templários tornava opcional que um doente se transferisse para os Lazarentos ao invés de continuar com seus irmãos. Isso se dava porque os Templários perceberam que suas fileiras estavam diminuindo sensivelmente assim como suas doações e recursos. Em contrapartida, a Ordem de Lázaro ganhava força.

Após a Queda de Jerusalém, que se seguiu após um cerco promovido pelos muçulmanos, o Reino foi transferido para a costa e instalado na cidade de Acre onde Templários e Lazarentos formavam as Ordens principais. A necessidade fez com que eles se tornassem mais próximos, tendo de dividir quartéis e templos. Com efeito, mais templários acabaram se unindo aos Lazarentos, por escolha ou por necessidade.

Mais do que luxuosos hospitais, ao menos para os padrões medievais, e enfermarias para atender doentes, a Ordem de São Lázaro estava se estabelecendo como uma Ordem de Combate. Seus membros tinham treinamento, dinheiro, equipamento e fartos recursos. Os registros mencionam a determinação dos seus cavaleiros que lutavam bravamente. Diziam que eles combatiam como homens que não tinham nada a perder, pois morrer em campo de batalha era mais honroso do que definhar lentamente com a doença. Muitos acreditavam que essa morte podia redimir suas almas e garantir um lugar no Paraíso.


Para os oponentes muçulmanos, a noção de combater inimigos leprosos era aviltante. Em combate havia sangue, suor e contato direto, e eles sabiam que tal proximidade podia resultar em contaminação. Nada assustava mais do que o temor de contrair lepra. Sabendo disso, alguns cavaleiros usavam táticas bizarras para aterrorizar o inimigo, incluindo sujar a espada com o próprio sangue, lançar garrafas contendo sua urina e até cuspir ao se aproximar. Um comportamento nada condizente com um cavaleiro, mas ainda assim popular como forma de desestabilizar o inimigo.

Os cavaleiros leprosos expunham a face arruinada pela doença com intuito de causar terror. Mesmo em vantagem numérica, as vezes os Cavaleiros árabes preferiam se retirar diante daquela visão profana. 

Entretanto, algumas fontes afirmam que os Cavaleiros foram usados como bucha de canhão pelos seus comandantes. Alguns os viam como opções mais viáveis do que homens saudáveis para investidas arriscadas. Sabe-se que eles eram a linha de frente para combate e que muitos se voluntariavam para as missões mais perigosas. Com tão pouca documentação é impossível saber ao certo.

John, Bispo de Jerusalém escreveu em 1323:

"Irmãos Cavaleiros e monges ligados à Ordem de São Lázaro por vezes morriam de forma horrenda. Os infiéis os tratavam com especial violência. Eram alvejados com flechas ou abatidos com lanças duas vezes mais longas para que não fossem tocados. E quando seus corpos caiam no solo, imediatamente os queimavam com óleo até que restassem apenas seus ossos enegrecidos".


Em meados do século XIII, cavaleiros  saudáveis e leprosos lutavam lado a lado sob o estandarte de São Lázaro. A Ordem aceitava a todos e não os repelia através de iniciações e testes. Evidentemente ela gozava de tanto prestígio quanto os Templários ou Hospitalários, atraindo jovens que desejavam se dedicar a causas religiosas e viver aventuras militares.

As histórias sobre a coragem e honra dos seus membros havia se espalhado pela Europa, tornando-os objeto de admiração. Os rumores mencionam tesouros coletados no Oriente e guardados em câmaras secretas sob o controle da Ordem. Mencionavam ainda artefatos místicos ligados aos Santos e mártires da cristandade: a mortalha de São Lázaro, capaz de sanar todas as doenças do corpo e as sandálias do Santo, que permitiam a quem as calçava não se cansar em suas peregrinações. Tinham ainda pedaços da Cruz verdadeira, um dos pregos da crucificação e um Cântaro usado para amenizar a sede de Cristo quando ele estava a caminho do Gólgota. Tudo isso tornava a Ordem muito influente já que nobres viam nesses artefatos um símbolo de inquestionável status. 

Mas tudo isso estava para mudar e A Ordem de Cavalaria caminhava para sua ruína.

Em dado momento, a lepra diminuiu no Oriente Médio, em parte pelos tratamentos concedidos pela própria Ordem. Os principais hospitais, aqueles que recebiam as maiores doações fecharam suas portas e isso se refletiu nas finanças da Irmandade. Para piorar, a Cidade de Acre caiu em 1291, enquanto os Cavaleiros de São Lázaro a defendiam. Os monges saudáveis foram feitos prisioneiros, os doentes executados ou banidos pelos conquistadores islâmicos. Forçados a se retirar para suas propriedades e monastérios na Europa, particularmente no Sul da França, os Lazarentos tentaram negociar a liberação de seus irmãos, mas não conseguiram chegar a um acordo. Muitos prisioneiros terminaram seus dias presos no Oriente, sentindo-se traídos pelos companheiros. Isso trouxe má fama para a Ordem.

Embora a lepra ainda existisse na Europa, permitindo à Ordem administrar vários hospitais, o espectro de uma doença ainda mais terrível começou a flutuar ameaçadoramente sobre o continente. 

À medida que a Peste Negra ia se espalhando, matando indiscriminadamente, os leprosos foram apontados como causadores da terrível pestilência. A simpatia que muitos sentiam pela ordem declinou à medida que aumentava a desconfiança e o preconceito. Hospitais e enfermarias foram destruídas com doentes sendo guiados até piras para que pudessem ser purificados pelas chamas. 


Os leprosos dispersos se viram abandonados uma vez mais à própria sorte. Forçados a vagar pelo interior dos reinos, expulsos das cidades e perseguidos como o vetor principal da doença. Em determinado momento, os leprosos ficaram tão associados à Peste que eram exterminados. Alguns cavaleiros ainda tentaram ajudá-los, mas estes temiam reprimenda. Mais de um templo da Ordem de São Lázaro acabou destruído depois que se descobriu serem eles santuários para doentes.

Na Alemanha a Ordem foi forçada a se fundir com os Cavaleiros Hospitalares e ceder seus estabelecimentos a eles. Na Inglaterra, as terras acabaram confiscadas, visto que a maioria de seus donos eram franceses e as nações estavam envolvidas na Guerra dos 100 anos. Na França e Itália ainda haviam alguns templos restantes, mas eles foram perdendo sua importância em face das perseguições. Mesmo entre os Cavaleiros havia o temor de que a Lepra podia realmente propagar a Peste. Na Hungria e leste da Europa, as terras da Ordem foram confiscadas pelos Turcos Otomanos que invadiram a região. 

Com o tempo, a Ordem de São Lázaro foi caindo na obscuridade, ainda que cercada em mistérios e segredos. Havia lendas a respeito de tesouros escondidos em câmaras secretas e artefatos mágicos trazidos das Cruzadas, que despertavam a cobiça de muitos caçadores de riqueza. Peças que pertenceram a eles apareceram ao longo dos séculos por toda Europa, em coleções particulares e nos cofres de monarcas.

Após um longo período na obscuridade, Ordem experimentou um ressurgimento a partir do século XIX, graças a ricos patronos que desejavam se igualar aos Cavaleiros do passado que se dedicavam a ajudar os pobres e necessitados. No século XX, a Ordem esteve envolvida em serviços de apoio a doentes afetados no Período de Guerras. Seus membros buscavam promover ajuda, apoio e conforto. Atualmente, a Ordem de São Lázaro existe em vários pontos do Mundo, com Hospitais especializados no combate à doenças, contando entre seus associados com médicos e cientistas dedicados a causas filantrópicas. 

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