quinta-feira, 29 de outubro de 2020

KULT Divindade Perdida: Resenha do RPG de Horror Contemporâneo que está chegando ao Brasil


Reeditando a resenha do fantástico KULT RPG que está em Financiamento Coletivo no Brasil através da Editora Buró. O link do Financiamento via Catarse está no final desse artigo, vale conferir.

KULT é um RPG que obteve grande popularidade nos anos 1990 e que se tornou matéria para discussão e polêmica desde o seu surgimento.

Sabe aqueles livros que publicam um disclaimer na primeira página?

Pois bem, KULT ia além e reproduzia um texto no qual afirmava que o conteúdo do jogo servia apenas ao propósito de criar uma atmosfera de terror e entretenimento. De forma muito séria ele advertia que nada daquilo deveria ser tratado como real. Ele deixava bem claro que os leitores não deveriam levar os conceitos à sério e menos ainda tentar reproduzir qualquer noção descrita no livro.

Isso porque KULT ia além das noções básicas de um jogo de Horror. Ele buscava se aprofundar em questões filosóficas, espirituais e existenciais de uma maneira até então jamais vista em outros RPG. Fora o incômodo de certos textos e o caráter visceral de algumas descrições e desenhos, KULT não poupava o leitor de elementos desconfortáveis para criar uma experiência única de horror na mesa de jogo.

O resultado?

Muita polêmica! Com acusações de que os autores suecos teriam ido longe demais em seu intuito de chocar ele passou a ser criticado. O livro era repleto de "gatilhos". Houve inclusive um caso, nunca provado de suicídio envolvendo um jogador de KULT na Suécia. Mas é claro essa polêmica atraiu a curiosidade de muita gente e contribuiu para tornar o jogo ainda mais conhecido. 

KULT teve três edições, a primeira e mais conhecida é considerada o Santo Graal dos RPG de Horror, um livro publicado no início dos anos 1990 pela Metropolis Press e que dizem alguns, chegou a ser recolhido nas lojas e censurado em algumas parte dos Estados Unidos. Não sei se essas histórias são inteiramente confiáveis, há muito exagero e boatos, mas é certo que KULT causou sensação. Tanto que a segunda edição, lançada alguns anos depois, teve o texto atenuado e diluído para se tornar menos chocante. A edição fez menos sucesso e se tornou o que alguns chamam de capa branca - a edição mais suave do livro. Foi necessário esperar mais uma década para que viesse uma nova releitura capaz de retomar o espírito original do jogo. A terceira edição é bastante fiel à primeira, reproduzindo trechos que haviam sido limados e juntando informações adicionais em um trabalho bem completo.

Mas que tipo de material podia causar tanta controvérsia?

Ao que estamos nos referindo quando falamos que esse livro era tão inflamável? Como curiosidade, eis aqui reproduzido dois trechos que sempre me chamaram a atenção no livro, sobretudo porque se refere a exemplos de personagem que podem ser escolhidos pelos jogadores:

"Quando comecei a estudar na escola, percebi que alguma coisa estava errada. Nenhuma das outras crianças na minha classe costumava acompanhar seus avós ao cemitério nas noites d elua cheia. Eles jamais viram cadáveres recentemente exumados ou membros serrados e levados para a cozinha. Nenhuma outra avó guardava um machado de cobre junto da despensa ou usava para cortar a carne. Elas nunca foram ensinadas a murmurar as palavras sagradas e mastigar a carne tenra agarrada aos ossos com seus próprios dentes. Quando comentei essas coisas, elas olharam para mim como se eu fosse um anormal. Então eu resolvi não falar mais sobre isso e assumi que famílias tem seus próprios segredos e que talvez seja melhor não falar deles em voz alta".


E esse é apenas um exemplo.

Outro? Lá vai:

"Keith e Kevin sempre foram cruéis comigo. Eles eram gêmeos e meus irmãos mais velhos, mas muito diferentes. Altos enquanto eu era baixa, morenos enquanto eu era loira. Algumas lembranças são mais dolorosas que outras, por exemplo, quando eles mataram meu cachorro Sparky e colocaram a sua cabeça na minha cama. Ou a vez em que eles me amarraram no estábulo e me bateram com o chicote. Ou ainda, quando cortaram a barriga de nossa gata que estava grávida e me forçaram a comer o que saiu dela. Eles me prenderam no porão com os restos do gato e deixaram os ratos virem. Quando eu fiquei mais velha, Kevin me forçou a fazer coisas com ele, que segundo suas palavras todas irmãs mais novas faziam. Eu fiquei muito confusa e envergonhada e pensei em me matar. Foi um alívio quando levaram Kevin e o trancafiaram em um lugar. Eu me mudei e meus tios cuidaram de mim. Eu voltei a sorrir. Semana passada fiquei sabendo que Keith ajudou Kevin a fugir daquele lugar. Eu não sei onde eles estão agora, mas tenho a sensação que é questão de tempo até descobrir".

Esse é um exemplo do mundo de KULT, onde o terror visceral está prestes a acertar um soco na boca do seu estômago a qualquer momento.

Para maiores detalhes sobre as edições anteriores, em especial a primeira, convido os leitores a ler o artigo com a resenha dela, que pode ser encontrado AQUI

Mas aqui vamos tratar da resenha da versão mais recente de KULT, a Quarta edição que tem o subtítulo Divinity Lost (Divindade Perdida). Ela foi publicada pela Helmgast AB, após um bem sucedido Financiamento Coletivo ocorrido em 2016. O livro foi produzido e distribuído pela Modiphius e depois de vários percalços finalmente chegou às mãos dos financiadores e está à disposição do público em geral.

A pergunta que não quer calar é: "KULT manteve a sua proposta original ou ele foi de alguma forma suavizado em sua mais recente encarnação"?

Vou colocar da seguinte maneira: Até onde sei, esse livro é o único RPG que discute palavras de segurança e gestos que podem ser usados pelos jogadores para sinalizar ao Narrador que estão se sentindo desconfortáveis com alguma cena.

Esse é o nível da coisa!


O livro é voltado para o público adulto e demanda obviamente um certo grau de maturidade e entendimento entre jogadores e narrador. É facilmente um jogo que pode ser desvirtuado por um narrador que não compreende a proposta dele ou por jogadores incapazes de manter certo grau de seriedade.

Mas é preciso estabelecer algo: KULT não é um jogo para o público em geral.

Suas histórias não são aventuras no sentido que estamos habituados a reconhecer na maioria dos RPG. As narrativas envolvem medo e terror gráfico, muitas vezes sanguinolento e geralmente perturbador. Ele explora aspectos bastante sombrios da humanidade. Os heróis são indivíduos com problemas sérios que tem que lidar com dilemas morais e éticos, isso sem mencionar os vilões e os seres que permeiam essa ambientação que estão entre as coisas mais desprezíveis e aterradoras já vistas.

Além disso, o próprio livro de KULT constitui um desafio aos leitores mais sensíveis. Os textos são cuidadosamente trabalhados para atingir em certos momentos um ponto de equilíbrio entre bizarrice e choque. A arte, por sua vez, reflete esse caráter visceral sendo extremamente provocativa. Há um desfile de imagens de horrores deformados, criaturas com cicatrizes cirúrgicas, enxertadas com amálgamas de carne e metal e amputadas. Além disso o livro apresenta muita nudez e sexo. Há imagens hardcore de sexo, penis eretos, sexo oral, hermafroditismo, sadismo, masoquismo e outras coisas que não se costuma ver em livros de RPG.


Conforme dito, KULT não é um jogo para todos e recomenda-se certa cautela ao apresentá-lo à novas audiências. Alguns podem se sentir ofendidos ou incomodados, e nesse caso, melhor conversar a respeito.

Vou contar uma história a respeito d e KULT. Anos atrás, resolvi fazer uma pequena campanha com três jogadores, sendo um deles a minha esposa. Ela está habituada a jogar Chamado de Cthulhu e Mundo das Trevas e adora um bom horror, tolerando bem todo tipo de coisa estranha, monstros tentaculares e a descrição dos mais medonhos rituais. Mas aquela aventura de KULT em especial, foi demais pra ela. No meio do jogo ela me chamou no canto e disse: "Pra mim não dá!".

"Como assim?", eu quis saber. E ela explicou que havia algo naquela aventura em especial - que envolvia um grupo de investigadores tentando traçar o paradeiro de uma criança desaparecida que podia ou não ser vítima de um serial killer, que a incomodava e que a deixou positivamente amedrontada. Tudo bem, aceitei de boa. Em certos momentos, isso pode acontecer em algumas mesas, mas é bem provável que aconteça nesse jogo em especial.

A despeito de todas essas recomendações, KULT - Divinity Lost é um RPG com uma ambientação e proposta extremamente interessantes. E para os que se sentem fascinados pelos matizes mais escuras do horror ou estão dispostos a explorar essas áreas, ele se mostra imperdível.

Escrever a respeito da ambientação de KULT - Diviniy Lost é complexo, visto que muito dela deveria ser mantida em segredo. As revelações nesse jogo deveriam acontecer preferencialmente de forma gradual, com os segredos sendo revelados ao longo dos cenários, sessões e campanhas. Revelar antecipadamente detalhes pode diminuir o impacto dessas revelações e funcionar como um enorme SPOILER que vai comprometer o choque pretendido.

O que posso revelar é que trata-se de um jogo sobre virtudes perdidas, mentiras e um esquema construído para enganar a humanidade e mantê-la eternamente escravizada. Participam desse esquema seres de incrível poder e influência que fazem de tudo para manter a raça humana presa em correntes que a impedem de atingir todo o seu potencial. Mesmo nossa carne e sangue não passam de uma ilusão, um invólucro para conter nosso espírito em um simulacro frágil e falho. O que está dentro é único e tem potencial para ascender rumo a um poder inimaginável.


O conceito de que vivemos em uma ilusão, cegos e incapazes de perceber o mundo real à nossa volta pode parecer familiar, e de fato é, já que os criadores da trilogia Matrix, dizem, se inspiraram em KULT para construir sua mitologia. Assim como acontece no filma, a humanidade habita uma espécie de ilusão construída para mantê-la contida e privada de suas habilidades. Um pequeno grupo de pessoas, no entanto, é capaz de ver além das aparências e começa a despertar esse potencial, desafiando os que construíram a Ilusão. Diferente de Matrix, não estamos falando de máquinas, mas de entidades pinçadas da tradição judaico-cristã: anjos, demônios, espíritos, criaturas e seres sobrenaturais de toda ordem, cuja função é trabalhar como feitores e guardas.

Quando um ser humano, começa a despertar, ele reclama parte de seus poderes de direito e essa compreensão acaba atraindo os carcereiros da Ilusão. Como uma espécie de polícia sobrenatural, eles verificam o perigo e tentam extirpar os despertos e evitar que eles usem o conhecimento para acordar outras pessoas. 

As aventuras de KULT envolvem esse tipo de revelação, às vezes de forma dramática. O despertar envolve enxergar o mundo além do preto e branco, contradizer crenças, explorar limites e ir além dos portões da consciência e percepção. Utilizando uma filosofia mística, os personagens de KULT se tornam peregrinos de terras estranhas, lançando-se em uma estrada de horror, pavimentada de dor e sofrimento. Se quiserem transcender eles precisam aprender magia, mergulhar em tradições e costumes bizarros, realizar rituais detestáveis, se desprender das limitações da carne e se envolver com coisas realmente incômodas.


Pense no filme Hellraiser (apenas o primeiro), que constitui uma das maiores inspirações para KULT. Nele, um dos protagonistas está disposto a ir até o Inferno (literalmente) para obter os segredos de um artefato que permite transcender a carne e comungar com o êxtase divino. Sua busca acaba atraindo a atenção de torturadores dispostos a destruí-lo, remontar sua carne inúmeras vezes e torturá-lo pela eternidade.

KULT segue essa mesma premissa, colocando os jogadores no papel de personagens com potencial para o despertar, mas que terão de comer o pão que o diabo amassou, para ter um vislumbre disso. E não se engane, as coisas vão ficar bem feias no decorrer das histórias.

Uma campanha de KULT se inicia com um primeiro vislumbre além da Ilusão e a partir daí, os personagens começam a explorar o esquema em busca da verdade. Em um jogo com tal proposta, os personagens não deveriam ser "pessoas normais", por isso o jogo propõe a criação de personages "com algo mais".

Os personagens são indivíduos que de alguma forma sentem a existência de algo além. Eles descobrem que a vida é mais do que trabalhar, ganhar dinheiro, comprar coisas, procriar e morrer. É justamente esse inconformismo que servirá para abrir seus olhos e expôr a mentira que permeia condição humana. Os jogadores podem escolher diferentes arquétipos que fornecem as linhas gerais para a construção dos personagens. Cada arquétipo segue uma proposta dentro da ambientação, e fornece ideias que se encaixam no panorama do jogo.

Uma verdade inconveniente a respeito das edições antigas desse RPG é que as regras eram muito fracas. Elas pareciam incomodamente raquíticas para comportar um jogo dessas dimensões o que acabava amarrando e atrapalhando a fluidez das sessões. KULT - Divinity Lost reparou esses problemas ao converter o jogo para o Sistema Apocalipse World.


Eu não sou um conhecedor desse sistema de regras, então vou fazer um breve sumário de como elas funcionam, sem me aprofundar nos pormenores. 

A essência do jogo está em algo chamado Moves (Movimentos) que são testes feitos para serem comparados em uma tabela de resultados. Cada movimento tem um gatilho (por exemplo "Investigar uma cena", "enganar um NPC" ou "reagir a um acontecimento apavorante") e uma tabela que define os resultados. Em geral uma rolagem de 15 ou mais é um sucesso. De 10 a 14 um sucesso parcial. E 9 ou menos constitui uma falha. O jogo usa dois dados de 10 lados que são somados para obtenção do total.

Durante a criação dos personagens, os jogadores distribuem pontos de modificador +2, +1 e +0 para suas estatísticas básicas de Fortitude, Reflexos e Força de Vontade. Cada personagem possui ainda modificadores de +3, +2, +1, +1, +0, -1 e -2 para distribuir em atributos secundários que definem seu Carisma, Frieza, Intuição, Percepção, Razão, Alma e Violência. Como você deve ter intuído, esses modificadores refletem os pontos fortes e fracos dos personagens. Eles serão acrescidos ou diminuídos do rolamento de dado nos testes. Cada movimento é baseado em uma combinação de Atributos que fornecem um bônus ou uma penalidade. 

Além disso, o sistema disponibiliza uma extensa lista de vantagens e desvantagens que deverão ser escolhidas pelos jogadores dependendo de seu arquétipo e que irão conceder benefícios ou complicadores adicionais no momento de tentar os Movimentos. Não existe uma lista de habilidades, todas elas decorrem diretamente dos atributos básicos e das vantagens escolhidas.


Famoso nas outras versões do jogo, Divinity Lost reedita os Dark Secrets (Segredos Negros) dos personagens, dessa vez "obrigando" que todos os personagens adotem ao menos um deles. Esses segredos são na nova ambientação uma espécie de catalizador emocional que serviu para "abrir os olhos" dos personagens para a realidade do mundo. Esses Segredos são realmente apavorantes e medonhos, coisas que vão desde ter sido vítima de experimentos, de ter tido contato com espíritos, ter realizado algum pacto demoníaco ou ainda ter cometido algum crime ou atrocidade. Os Dark Secrets ganharam uma importância crucial no jogo e são uma ferramenta para mergulhar na alma dos personagens, por vezes encontrando algo especialmente atroz ou reprovável. 

Uma das coisas mais bizarras em KULT é justamente a possibilidade de interpretar indivíduos que não apenas sofreram coisas horríveis, mas que muitas vezes cometeram atos moralmente questionáveis. Mais um motivo para que o grupo tenha maturidade em explorar essas facetas. 

Sendo absolutamente franco, eu ainda não testei o sistema para dizer se gostei ou não, o que posso dizer é que no papel ele parece bem sólido e promissor. O Apocalipse Engine tem fãs ardorosos que elogiam bastante sua fluidez e simplicidade, o tipo da regra que privilegia o jogo descritivo e rápido. Em resumo: meu tipo de regra e o estilo de jogo que me agrada.

Uma coisa interessante que mesmo um iniciante no sistema pode perceber é que os Monstros e criaturas possuem um bloco de estatísticas com números bem superiores. Isso se dá porque os horrores de KULT são coisas que os personagens não devem enfrentar. Para quem está habituado com Chamado de Cthulhu, não causa surpresa que os inimigos sejam extremamente poderosos. Aqui a coisa é realmente desigual, e a morte pode chegar rapidamente se um jogador quiser enfrentar de peito aberto uma dessas abominações.


O livro é excepcional em explicar as regras e o sistema. Tudo vem acompanhado de exemplos e descrições que ajudam não só a entender a mecânica, como absorver o estilo do jogo e suas muitas nuances. KULT a meu ver demanda um Narrador com certo traquejo e experiência na condução de aventuras. Não estou dizendo que um iniciante não possa narrar uma sessão desse jogo, mas me parece importante saber como transitar entre situações limítrofes e descrever cenas viscerais com detalhes que nem todos teriam estômago para fazer.

Uma vez que a ambientação é tão diferente, o livro propõe dicas e soluções para estruturar a sessão e escrever seu próprio cenário. É claro, muitos podem imaginar que cenários de KULT são estranhos e estes não estão errados em assumir a dificuldade em escrever essas histórias. Eu definiria o jogo como um Horror Hardcore, com doses generosas de investigação e mistério e um pouco mais do que uma pitada de sanguinolência e medo. As informações de como conduzir a narrativa, como centrar o foco nos personagens, manter o ritmo e criar excitação e expectativa são extremamente valiosas, não apenas para esse jogo, mas para qualquer outra ambientação no gênero horror.

O terço final do livro é de longe o meu preferido e que mais me impressionou. Ele trata dos Segredos e Verdades sobre a Ilusão e ergue o manto sobre os seres aterrorizantes e as bombásticas revelações da ambientação. Ali estão não apenas as estatísticas dos horrores mais medonhos que vi em muito tempo (e isso dito de um fã de Cthulhu!), mas ideias para usá-los em sua história e descrições cruas que parecem saídas da cabeça de um demente. Sério mesmo, algumas dessas descrições são combustível de pesadelos que vão fazer o motor de sua imaginação rodar em altíssima octanagem. O livro desfralda ainda as terras além da Ilusão, lugares que os personagens poderão visitar em seu caminho para a iluminação, ou para onde serão arrastados aos berros por algum carcereiro vingativo.

Finalmente temos uma vasta coleção de magias e rituais que os personagens poderão obter e desenvolver ao longo do seu desenvolvimento. Em KULT, não há algo como nível de experiência, mas isso não significa que os personagens ficarão estagnados, pelo contrário, poucos jogos evocam com tanta força a noção de que conhecimento é poder (ainda que extremamente perigoso).


Há diferentes Caminhos que permitem ascender na direção da Divindade - a saber Sonho, Paixão, Morte, Loucura e Tempo-Espaço, cada qual com seus riscos, recompensas e pormenores. Os jogadores podem usar um ou mais destes caminhos em suas buscas, mas nenhum é tranquilo ou "normal". Tudo é profundamente estranho e degenerado, então esteja preparado para assistir e permitir que seu personagem tome parte em situações realmente bizarras.

A despeito de seu teor indigesto, o texto é fluido, bem escrito e incrivelmente cativante. Você sente vontade de continuar lendo e não parar até ter concluído o trecho e então seguir para o próximo. Nada é gratuito, e as informações, embora pesadas, são nada menos do que fascinantes. Eu reconheço que leio devagar e que gosto de voltar e ler trechos novamente, mas aqui, li em uma sentada só. 

Finalmente, precisamos comentar sobre o aspecto físico de KULT - Divinity Lost e aqui cabem vários parágrafos. pois o visual do jogo é impressionante.

Falamos muito a respeito do capricho e cuidado que as editoras dispensam ao material de RPG atualmente. Existe um novo e louvável padrão de apresentação e qualidade que os Livros tem seguido - capa dura, papel de qualidade, marcador de páginas, etc. Mas por vezes é necessário elogiar um novo patamar de excelência atingido. E esse livro merece ser elogiado. 

KULT é um dos livros mais bonitos que já vi.

A qualidade gráfica é nada menos do que excepcional, com um acabamento e diagramação impressionantes. Tudo ali parece ter sido trabalhado com esmero e dedicação, contribuindo para um resultado notável. O livro oferece uma profusão de páginas escuras de um preto atordoante. Por sinal, jamais vi um livro com tantas páginas escuras. As primeiras 40 páginas do livro (que tem cerca de 350) são PRETAS, com um pequeno texto e uma arte arrebatadora em painel.

A capa é sensacional, uma das minhas favoritas, no mesmo patamar da icônica ilustração do anjo dividido por uma tesoura que ilustrava a primeira edição. Quando participei do Financiamento Coletivo havia a chance de escolher entre duas opções de capa, a primeira com a personagem em destaque vestida e a segunda (exclusiva para o FC) com os seios à mostra. Eu preferi a segunda. É um trabalho fantástico de Bastien Lecouffe Deharme, um dos principais artistas envolvidos no projeto do livro. A personagem em perspectiva parece saída de uma tela renascentista.

A arte é aliás um elemento usado como instrumento para desarmar o leitor. 

Não me entenda mal, ela é incrivelmente boa, mas dolorosamente minuciosa. Nunca se viu tantos detalhes anatômicos em estilo full-frontal in your face (total frontal na sua cara). Não me refiro apenas a nudez e sexo, aos corpos mutilados e sanguinolentos, mas a detalhes menores que chocam pelo aspecto visceral. As expressões dos personagens retratados parecem remeter a painéis medievais, extraídos de vitrais góticos ou telas à oleo. Expressões de dor e sofrimento, ocasionalmente de êxtase e prazer se multiplicam pelas páginas escurecidas. 

As cenas de paisagens e vistas urbanas são contemporâneas, retratando cidades escuras e sujas, com arranha-céus de aço e concreto desafiando céus enevoados. O ambiente de KULT é o das metrópoles populosas e frias, com arquitetura arrojada e desafiadora, mas ainda assim, prisões que o próprio homem construiu, como gaiolas douradas.

Eu sempre fui um fã de KULT, tanto da ambientação, quanto de sua proposta. Sempre achei ele estranho e fascinante na medida certa. Narrei algumas vezes e joguei ainda menos, mas cada sessão foi uma experiência diferenciada. Há uma mística a respeito desse jogo, algo que beira o proibido e que por isso talvez o torne tão atraente.

O que posso dizer, sendo um veterano do sistema (ouso me considerar como tal), é que KULT jamais esteve tão bem representado quanto nossa quarta edição.

Eu pretendo testar esse jogo em breve, não é o tipo de "fera" que ficará para sempre na estante. Bestas como essa, por vezes querem sair e precisam ver mesa de jogo. Eu só espero estar à altura de controlá-la depois. 

Já dizia o velho ditado: "jamais conjure algo que não pode controlar".

Um adendo extremamente importante a essa resenha. "KULT - Divindade Perdida" enfim está chegando ao Brasil através da Editora Buró em um Financiamento Coletivo repleto de extras (que ao tempo dessa publicação já terá atingido sua meta base). 

KULT é um grande RPG e vale a pena conhecer!

Dá uma conferida na página do Financiamento:


Um comentário:

  1. vi o pdf previa liberado para financiadores, e por ela o edição brasileira será de arte "mais leve" como o do anjo vestido.

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