Um dia Sarnath foi a mais bela das cidades da lendária Terra de Mnar, isso até a Maldição.
Quando a Maldição caiu sobre capital, ela deixou de existir, restando em seu lugar apenas uma ruína devastada. De um dia para o outro milhões de seus orgulhosos habitantes desapareceram, bem como suas imponentes construções, palácios, monumentos e residências. Mais terrível, sua glória, até então considerada eterna, se desfez.
Tudo por conta da Maldição.
Mas para compreender o triste destino de Sarnath é importante entender tudo que levou até ele.
Sarnath despontava nas Terras de Mnar, um recanto pacato, afastado das províncias fronteiriças, tanto das reais como as do reino de sonho. Para alguns, apenas em sonhos a Terra de Mnar podia ser visitada e explorada. Outros contudo situavam Mnar no passado remoto do que hoje conhecemos como Arábia. Seja como for, Mnar era uma terra muito antiga, um dos reinos primigênios da humanidade que o próprio tempo deixou intocado por eras.
Cortada pelo sinuoso Rio Ai, as terras pastoris de Mnar foram o berço de vários povos, de incontáveis etnias. Em seu coração nasceram cidades como Thraa, Ilarnek e Kadatheron, nomes hoje, ouvidos apenas por sonhadores, que deles esquecem ao despertar.
Nas páginas de papiro amarelado existentes na Biblioteca de Ilarnek encontramos menções aos povos de pele morena que ergueram as primeiras cidades de Mnar. Eles guiavam seus rebanhos de ovelhas felpudas seguindo o curso do Ai e se espalhavam ao longo dele, pontilhando humildes assentamentos aqui e ali. Um destes povos, mais ousado que os demais decidiu avançar através das planícies, marchando na direção de um mítico lago que existiria além das terras que ofereciam pasto. Os colonos haviam ouvido lendas sobre um rincão rico em metais preciosos.
Esses ousados exploradores chegaram à margem do tal lago, um corpo de água de cor verde esmeralda com um perene nevoeiro igualmente esverdeado flutuando sobre o espelho d'água. Haviam ouvido falar desse lago através de pioneiros que o viram com seus próprios olhos. Eles trouxeram narrativas curiosas, nem todas compreensíveis. Uma delas mencionava uma estranha cidadela de pedra-cinzenta, que se esparramava por uma das margens, Tinha ela uma estranha arquitetura que nenhum homem ousaria erguer. Nenhum homem por certo, pois aqueles que erigiram a cidadela chamada Ib não eram homens e sim seres de aparência bizarra.
É importante salientar que naqueles tempos imemoriais, não apenas humanos viviam sobre a superfície da Terra de Mnar, mas seres estranhos que claramente guardavam poucas semelhanças com homens. De pele verde, traços batráquios e aparência repugnante, os Seres de Ib, habitavam há incontáveis séculos a Cidadela de Pedras Cinzentas. Haviam descido nos raios da lua ou num nevoeiro que transportou não apenas a eles, mas a cidade e o próprio lago. Como? Quando? Por que? Quem sabe.
Viviam naquela localidade desde que os primeiros homens podiam lembrar e eram os senhores daquelas margens lamacentas. Sua cidade de pedra cinzenta havia testemunhado inúmeros festivais devotados aos deuses estranhos e bestiais que veneravam. Dentre todos, Bokrug, o Réptil do Lago, era a divindade mais importante e em sua honra fogueiras eram acesas e rituais conduzidos.
Os homens recém chegados tentaram se aproximar dos Seres de Ib, mas a aparência repulsiva deles, somada com seus rituais blasfemos os afastava. Não queriam nada com aquelas criaturas de olhos esbugalhados, membros flácidos e modos incompreensíveis. Nos primeiros anos, homens e os Seres de Ib mantiveram distância uns dos outros, reticentes a respeito do que uma aproximação poderia render. Os humanos viam os seres como insondáveis. O que os seres pensavam dos humanos, ninguém podia saber ao certo.
Com o tempo, mais e mais homens se fixavam na até então incipiente Sarnath. Erguiam cabanas de madeira e junco, drenavam as terras lamacentas, bebiam a água turva e ali passavam a viver. Sarnath cresceu na margem oposta de Ib, que assistia a vizinha se espalhando pela orla do lago, mais e mais perto. Os habitantes de Sarnath observavam seus estranhos vizinhos na cidade cinzenta. Observavam e não gostavam do que viam. Pode-se dizer que eles os detestavam com toda força: seus rituais, as fogueiras que acendiam, os sons noturnos que produziam e seus deuses inumanos.
O ódio lançado na terra, encontrou solo fértil para crescer em Sarnath. Rumores de que os Seres de Ib praticavam um tipo de feitiçaria alimentada com sacrifício de crianças sequestradas na calada da noite se espalharam entre o povo local. A desconfiança diante do incompreensível se tornou raiva e esta explodiu numa noite de barbárie.
Armados com lanças, machados, paus e pedras, os de Sarnath contornaram o lago e chegaram à cidadela de pedra cinzenta. Seu propósito era claro, mas os Seres de Ib não compreendiam a natureza humana e apenas quando os primeiros foram trespassados por ferro é que se deram conta que seus dias estavam contados.
Em sua ânsia por purificar o lago da presença de qualquer presença não humana, Sarnath devastou a incrivelmente antiga Ib. O único resquício sobrevivente foi um enorme ídolo de pedra verde-marinha que os guerreiros vitoriosos reivindicaram como espólio de guerra. A escultura retratava nada menos que Bokrug, o réptil considerado Deus máximo de Ib.
Durante as celebrações pela vitória, os guerreiros inebriados pela conquista e matança deixaram o ídolo no grande templo de Sarnath. O sumo-sacerdote Taran-Ish, o colocou aos pés do púlpito onde pretendia realizar um ritual para dessacralizá-lo na manhã seguinte. Enquanto as festividades orgiásticas se espalhavam por Sarnath, algo ocorreu no templo que guardava o ídolo. Ninguém jamais soube ao certo o que se passou, mas na manhã seguinte, quando as portas foram abertas, lá encontraram o corpo sem vida de Taran-Ish, sua face transfigurada em um hirto de horror indescritível. Em traços incongruentes sobre o altar sagrado do templo, ele havia desenhado com seu próprio sangue o sinal de Maldição. Mais estranho ainda, o ídolo de Bokrug, havia desaparecido como que por encanto.
Os sacerdotes se perguntaram a respeito do que poderia ter acontecido e o significado do símbolo deixado no altar. Ninguém acreditava que os seres de Ib pudessem ter se vingado, não quando eles se mostraram oponentes tão passivos. Mesmo com os estranhos relatos de luzes pulsantes e ondulações sob a superfície do lago, ninguém realmente temia por uma retaliação.
Se havia alguma suspeita essa foi sumindo com o passar do tempo. Enquanto isso, Sarnath continuava progredindo à olhos vistos com ouro fluindo para dentro da cidade através do estabelecimento de rotas de caravanas vindas de todos os cantos de Mnar. Ouro e prata enriqueceu uma nova dinastia real e toda uma casta de casas nobres.
Ironicamente Sarnath floresceu após a destruição de Ib, como se aquela brutalidade tivesse sido a mola propulsora para a cidade conquistar seu lugar preponderante. Talvez o sacrifício dos Seres de Ib, tenha agradado aos Deuses, ou ao menos foi o que os sacerdotes disseram. Seja como for, a passagem dos anos, décadas e séculos abriu Sarnath para o mundo e em questão de gerações ela se converteu na Grande Capital de Mnar.
Reis se sucederam, sentando em magníficos tronos de bronze com leões esculpidos, ladeados por feras magníficas. As ruas se alargaram, dando vazão a alamedas arborizadas e calçamento de ônix. Pelos portões da cidade adentravam caravanas vindas de terras distantes com camelos e elefantes carregados de mercadorias. As moradias suntuosas de Sarnath eram cercadas de muros altos tendo seus próprios jardins, monumentos e tesouros de dar inveja aos visitantes. Um porto movimentado lançava embarcações brancas de uma margem para outra do lago que foi engolido pela metrópole em franco crescimento. No grande anfiteatro, sangrentos espetáculos de gladiadores eram disputados com homens e bestas se enfrentando para delírio do público.
Era contudo, nos palácios e jardins suspensos que residiam as maiores belezas de Sarnath. Eles apequenavam os palácios reais de Kadatheron ou Ilarnek, com o esplendor de sua arte, engenharia, arquitetura e decoração. Os nobres se devotavam a embelezar a cidade, mandando trazer mármore branco imaculado e de várias cores para cobrir os prédios. Havia fontes de água perfumada nos parques onde cresciam arbustos moldados e campinas esmeralda. Todas as belezas pareciam convergir para Sarnath e os poetas do mundo rendiam a ela sonetos apaixonados.
Enormes torres de vidro se espalhavam pela cidade e podiam ser vistas há quilômetros de distância. Resplandeciam com o brilho das joias adornando suas cúpulas. Os 17 Templos da Capital disputavam entre si qual era o mais luxuosos. A maioria possuía estátuas moldadas em ouro, cravejadas com joias exóticas e diamantes cintilantes. Alguns diziam que os velhos deuses barbados se sentiam à vontade em Sarnath enquanto os sacerdotes vestiam seda e fios de platina em seus trajes cerimoniais. Eles passavam seus dias observando as estrelas, a lua misteriosa e o sol magnânimo interpretando a vontade de seus mestres divinos.
Aos olhos de todos, Sarnath seria eterna e ninguém duvidava disso.
Contudo, o imprevisível por vezes se apresenta para contradizer o que temos por certeza. O fim de Sarnath começou com a aproximação do aniversário do Milênio da Conquista de Ib, data comemorada anualmente com grande pompa e circunstância. Naquela ocasião, dada a importância da data, os festivais seriam muito maiores e extravagantes.
Uma verdadeira multidão convergiu para Sarnath interessada em participar ou ao menos assistir às festividades que muitos asseguravam seriam as maiores de todos os tempos. Haveria dança, música, ceias e orgias fantásticas. Do mais humilde cidadão até o mais nababesco senhor, todos tomariam parte nos festejos. Suntuosa além do imaginável, as festividades durariam dias e despesas não seriam contadas.
Das cidades vizinhas vieram comitivas de dignitários: nobres e príncipes da mais fina estirpe, com seus herdeiros, esposas e concubinas. Seus imensos pavilhões foram montados diante dos portões de Sarnath e suas cores voavam altivas em mastros. O Rei se esmeravam em oferecer banquetes para os ilustres convidados em seu Palácio e estes se admiravam com pratos exóticos e luxuosos. Mesmo nos templos, os sacerdotes dos vários deuses de Sarnath comemoravam a ocasião, decretando feriados e perdoando os excessos que por acaso fossem cometidos nas celebrações.
O clima de alegria desvairada, no entanto, estava prestes a se tornar o mais detestável Horror.
Quando a noite chegou, luzes misteriosas foram vistas nas profundezas do Grande Lago. Sombras bizarras passavam diante da lua cheia e um denso nevoeiro miasmático começou a subir das águas plácidas. Isso não seria suficiente para causar disparate nas testemunhas, mas outra coisa parecia estar ocorrendo e um sentimento de grave ameaça começou a dominar as pessoas que viam aquilo e não compreendiam. Os mais receosos se aprumaram para partir o quanto antes, temiam os sinais como se eles fossem o prelúdio de uma tempestade vindoura. Estes conseguiram deixar Sarnath antes que o horror tivesse início. Enquanto fugiam da cidade, ouviam ao longe os gritos e lamentos, os ruídos de violência e que enchiam a noite. Ouviam, mas não ousavam olhar para trás, pois todas suas energias estavam concentradas no ato de escapar.
Por volta da meia noite, o lago transbordou e as pedras que marcavam os limites das margens foram submersas. As águas lavaram as ruas e alamedas carregando o que estivesse em seu caminho numa torrente interminável. Prédios inteiros ruíram com a força da água, como se fossem feitos de barro. Pessoas foram arrastadas junto com seus animais, seus escravos e seus entes queridos. Afogados nas águas e puxados para baixo por um vórtice inclemente. Tudo o que a névoa verde tocava ficava repentinamente obscurecido e de dentro dela vinham os gritos mais desesperados.
No Palácio de Sarnath, onde ocorria o banquete real, a cacofonia de berros selvagens foi ainda mais grotesca. Silhuetas de seres estranhos semelhantes aos lendários habitantes de Ib podiam ser parcialmente vistas em meio à névoa. Onde ela pousava seguia-se aquele espetáculo de mortandade. E quando o nevoeiro seguia para outro canto da cidade, o que se via na área recém desvelada eram corpos dilacerados. Cadáveres feridos por garras afiadas, usadas como instrumento de uma vingança por muito tempo ansiada.
Enfim a Maldição desceu sobre Sarnath.
As caravanas que partiram antes da tragédia retornaram para suas cidades natais levando consigo o confuso relato do que havia transcorrido. Contaram como a Maldição havia atingido Sarnath e como seus milhões de habitantes haviam sofrido.
De Sarnath que um dia foi a mais brilhante joia da Terra de Mnar, verdadeira maravilha da civilização, nada restou. Onde antes havia uma metrópole vibrante e cosmopolita, agora se estendia um vasto lago de água estagnada e margens pantanosas que reclamou tudo. As muralhas e torres desabaram, bem como os palácios e templos, nem mesmo as minas permaneceram incólumes. Tudo foi sepultado e desapareceu sob ás águas turvas de onde ainda se erguia aquela doentia névoa esmeralda.
Anos mais tarde, exploradores enfim tomaram coragem de visitar o local. Não acharam sinal de Sarnath. Era como se ela jamais tivesse um dia existido, exceto em sonhos. Porém, os visitantes encontraram entre os juncos um ídolo peculiar esculpido em pedra verde-mar com a imagem de um horrível réptil aquático. Era Bokrug, aquele a quem os Seres de Ib veneravam e que havia enfim ouvido seus apelos.
* * *
Por volta de 1919, H.P. Lovecraft esteve presente em uma palestra do celebrado autor Lord Dunsany. Entusiasmado pelo seu trabalho, ele leu toda a obra. O resultado desse interesse súbito foi uma série de histórias a respeito de reinos fantasiosos em um estilo muito similar ao do próprio Dunsany. Estes esforços ajudaram a criar a mitologia onírica de Lovecraft conhecida como Dreamlands (Terra dos Sonhos).
"A Maldição de Sarnath" (The Doom that came to Sarnath) foi escrito em dezembro de 1919 e publicada pela primeira vez na revista The Scot no 44 em junho de 1920. Mais tarde ele foi publicado novamente na Weird Tales (junho de 1938).
As histórias de fantasia de Lovecraft tiveram continuação em outros contos como The Quest of Iranon, Polaris e é claro, A Busca Onírica por Kadath seu épico mais fantasioso. Lovecraft construiu uma rica tapeçaria de deuses, terras e povos que ajudaram a consolidar seu ciclo de sonhos.
esses seres de Ib seriam alguma versão antiga do que viria a ser os Deep Ones? A descrição de seres batráquios meio reptilianos, não tem como não associar aos Deep Ones.
ResponderExcluirE acho curioso tbm como neste caso, as criaturas estranhas não foram vilanizadas pelo Lovecraft, eram indiferentes e passivas até os humanos os prejudicarem.
muito bom. queria saber por quê levou tanto tempo para a maldição fazer efeito.
ResponderExcluirtalvez tenha algo a ver com algum bendito alinhamento estelar kk
Excluirpossivelmente.
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