"A Guerra é o Inferno".
Ou assim diz o ditado.
Pode parecer absurdo e bizarro para nossos padrões de civilização, mas soldados sempre removeram partes dos corpos de seus inimigos caídos e os usaram como troféus de guerra. A prática é bastante antiga e reconhecida por historiadores e arqueólogos que estudam o uso recorrente de restos humanos como souvenires de guerra. Segundo estudiosos do tema, os troféus se dividem em duas categorias distintas: Troféus de Dominância e Troféus de Veneração.
Um Troféu de Dominância é coletado do corpo de um adversário como uma forma de desumanizar o inimigo e demonstrar a habilidade superior do coletor em batalha. Aquele que venceu o embate passa a "ter direito" sobre os restos do inimigo morto, podendo usá-lo como bem entender. Ele se torna um objeto que pode ser descartado e prospectado sem cerimônia. É o tipo mais comum de Troféu de Guerra e difundido praticamente em todas as partes do planeta.
No Mundo Antigo os romanos tornaram essa uma prática muito tolerada e difundida em suas fileiras. Basicamente, eles coletavam todo tipo de troféu dos mais variados povos que entravam em seu caminho e que eram subjugados pela eficiente máquina de guerra romana. De mãos, dedos, orelhas até globos oculares, ossos, narizes e pênis, os troféus de guerra eram uma forma de rememorar grandes vitórias e conquistas nos campos de batalha.
Prisioneiros sendo executados nas Cruzadas |
Vários soldados à serviço do Império coletavam pedaços dos inimigos caídos e os usavam com distinção, quase como um distintivo de seus feitos. Havia até mesmo soldados especializados em trabalhar os pedaços trazidos até eles e conceder a cada troféu uma aparência especial. Cronistas romanos como Tito Lívio mencionam legionários que carregavam colares com orelhas ou polegares em volta do pescoço. Era uma forma de identificar o indivíduo como alguém perigoso, habilidoso ou quem sabe, cruel. A prática não era exclusiva dos soldados, mesmo os oficiais tinham seus troféus particulares. Estes eram obtidos diretamente de chefes guerreiros e indivíduos importantes que chamavam a atenção pelas suas características físicas. Na Campanha pelo Norte da África, Plínio menciona que um Tribuno possuía uma vasta coleção de globos oculares guardados em pequenas caixas.
A prática, estava presente também entre outros povos da antiguidade. Os Persas aparentemente haviam se especializado em coletar pedaços de pele humana que eram guardados em rolos como papiros. Os cartagineses davam especial atenção aos ossos que achavam em campos de batalha, os poliam e por vezes os adicionavam aos cinturões ou armaduras. Algo similar era feito pelos Pictos escoceses que usavam ossos das costelas de inimigos como coletes.
Na Idade Média, a prática continuou muitíssimo popular. Durante as Cruzadas, soldados à caminho de Jerusalém colecionavam dedos de seus inimigos caídos como uma forma de contar quantos inimigos haviam derrotado em nome da Liberação da Terra Santa. Por sua vez, os turcos tinham a prática de arrancar a língua de seus oponentes que eram então pregadas em escudos de madeira e deixadas ali até secarem formando padrões ao gosto do dono. A prática de arrancar pedaços do corpo e pregas nos portões de fortes e fortalezas era bastante popular, uma forma de dizer que invasores não eram bem vindos.
Práticas similares estão presentes em outras partes do mundo. Os Impérios Maia e Asteca se notabilizaram pelas guerras que travavam contra praticamente todos seus vizinhos. A maioria de suas incursões tinham como fim obter escravos, mas não era raro que as vítimas que resistiam fossem de alguma forma "aliviadas" de partes de sua anatomia. Os Astecas davam enorme importância aos crânios e costumavam decepar os inimigos mais valorosos. Alguns usavam as cabeças atadas ao cinturão quando retornavam para casa. Ao chegar, mandavam as cabeças para indivíduos especializados em limpar carne, músculos e cartilagens deixando o crânio limpinho. Estes eram oferecidos aos deuses como tributo, mas podiam ser usados para adornar as casas. Os cabelos de vítimas eram um presente comum para mulheres e crianças.
Na Grande Guerra enfermeira recebe um "presentinho" dos soldados |
Na conquista do Oeste selvagem, colonos fizeram enorme fortuna com a prática de escalpelar os nativos americanos. Os cabelos negros e volumosos dos índios eram removidos e usados como perucas. Embora muitas tribos nativas, em especial os Apaches, sejam associados com a prática de escalpelar, os primeiros a fazê-lo foram os colonos. A prática posteriormente foi adotada por algumas tribos que admiravam sobretudo cabelos loiros e ruivos. O célebre General George Custer teve a longa cabeleira que lhe valia o apelido de "Cabeça Dourada" removida após sua derrota em Little Big Horn. Mesmo na sangrenta Guerra do Paraguai, tropas brasileiras, se notabilizaram por arrancar orelhas das cabeças dos soldados inimigos degolados.
Um caso bastante peculiar envolve um soldado inglês que foi recompensado pela sua bravura na Batalha de Waterloo. Permitiram a ele que pedisse qualquer coisa do campo de batalha e ele não teve dúvida: quis o esqueleto de um general Francês. O pedido incomum foi acatado, o soldado colocou os ossos em um baú e os levou para a Inglaterra. Lá foram entregues a um artesão que os utilizou como matéria prima na criação de um jogo de chá. As peças eram usadas pelo soldado e pela sua família até que os utensílios fossem doados ao Museu de Hanley onde se encontram até hoje.
Troféus de Veneração são algo bem diferente. Nesse caso, a parte removida do corpo de um indivíduo é usada como uma espécie de relíquia a ser respeitada, tratada com distinção ou até mesmo venerada pela pessoa que a obtém passando de pai para filho como uma herança.
A pratica é um pouco mais rara, mas está presente na maioria das civilizações e culturas. Os Troféus de Veneração podem assumir várias formas, sendo as mais recorrentes ossos e dentes ainda que existam exemplos de unhas, cabelos e até órgãos devidamente embalsamados. Figuras históricas, indivíduos famosos ou que obtiveram de alguma forma notoriedade são as principais vítimas dessa predação.
O costume de escalpelar os inimigos e arrancar seus cabelos |
Nas culturas primitivas, Troféus de Veneração supostamente eram usados como uma maneira de preservar ou transmitir alguma característica desejada - do dono original para aquele que o obtinha. Um guerreiro famoso por sua resistência física podia ter o coração arrancado e usado como amuleto, depois deste ser devidamente ressecado e embalsamado. Um arqueiro de grande habilidade podia ter a mão, usada em vida para fazer os disparos, amputada e usada em volta do pescoço para que favorecesse seu novo dono. Entre as tribos selvagens que viviam no Rio Congo, o pênis avantajado de um inimigo derrotado podia ser arrancado e guardado numa caixa. Este era colocado sob a cama nupcial como uma forma de conjurar o vigor sexual do indivíduo derrotado.
Troféus de Veneração eram muitas vezes oferecidos a Indivíduos Importantes, de Chefes Tribais a Líderes Políticos, passando por Generais e Imperadores. Vários Imperadores Romanos receberam como presente após suas conquistas militares Troféus arrancados de algum Inimigo Valoroso. A Cabeça do famoso General Cartaginês Hannibal, teria sido resgatada de sua sepultura em Lybissa e ofertada aos Tribunos Romanos. Dizem que seu crânio servia como "conselheiro" alertando seus donos contra manobras militares arriscadas. Da mesma forma, existe a lenda de que quando o líder Mongol Genghis Khan morreu, seu crânio teria motivado um grande desentendimento entre indivíduos próximos que desejavam guardá-lo. Acreditava-se que parte de sua habilidade militar poderia ser invocada por seja lá quem o tivesse em seu poder.
Um exemplo famoso de Troféu de Veneração inclui os restos dos 800 Mártires de Otranto. Antonio Primaldo e 800 de seus leais companheiros de armas foram executados por invasores turcos em um monte nos arredores da cidade italiana de Otranto em 1480. Eles se recusaram a se converter ao Islã e foram degolados um a um. Terminada a execução - o que segundo rumores demorou 3 dias para transcorrer, a população da cidade carregou os restos para a Catedral. No entanto, dedos, dentes, tufos de cabelo e até mesmo alguns pedaços foram removidos no caminho para serem mantidos como Troféus de Veneração extraídos diretamente de mártires. Os homens foram posteriormente beatificados pelo Papa em 1771, o que deu início a uma nova corrida por souvenirs removidos da cripta onde os restos eram mantidos. Uma enorme quantidade de ossos foram retirados por visitantes e curiosos ao longo dos séculos. As pessoas acreditavam serem aqueles restos sagrados. O Papa Francisco beatificou os Mártires de Otranto em 2013, mas a essa altura incontáveis pedaços deles já haviam sido surrupiados.
Os Mártires de Otranto |
Um exemplo mais recente envolve o Sargento britânico Thomas Kitching que lutou com o 12o Batalhão de Durham na Grande Guerra. Sua perna foi esmagada na Batalha do Some e precisou ser amputada em 1916. Rather deixou ordens expressas assim que soube que o membro teria de ser removido. Ordenou que um pedaço do fêmur fosse salvo e que ele fosse transformado em um broche para sua noiva, Lizzie. Kitching sobreviveu ao grave ferimento, casou com Lizzie que usou o presente até sua morte.
Mas se enganam aqueles que pensam que os Troféus de Guerra são algo relegados ao passado e tempos menos esclarecidos. Apesar de leis aprovadas pela maioria das nações, sendo a mais conhecida a célebre Convenção de Genebra assinada em 1929, Troféus de Guerra continuam sendo coletados em campos de batalha.
Em 1944, um congressista norte-americano presenteou o então Presidente Franklin D. Roosevelt com um abridor de cartas feito com o osso do braço de um soldado japonês morto em Saipan. Roosevelt devolveu o macabro presente alguns dias depois e ordenou que ele fosse enterrado de maneira respeitosa. Vários outros itens similares foram trazidos para a América por marines que lutaram no teatro do Pacífico. As forças armadas recolheram a maioria deles, que incluíam todo tipo de souvenir macabro. Do outro lado, japoneses também ficaram conhecidos por coletar prêmios de soldados mortos. Em um bunker em Iwo Jima os militares encontraram uma vasta coleção de mãos, pés, crânios, ossos e genitálias pertencentes a soldados americanos. Os itens ao que tudo indica faziam parte da coleção particular de um oficial nipônico.
Há muitos relatos a respeito da prática ocorrendo nas Guerras da Coréia e do Vietnã, em que não apenas militares foram usados como fonte de troféus. Durante o sangrento conflito no Vietnã o Exército americano teve de emitir ordens expressas para que os soldados envolvidos no front parassem de coletar troféus dos mortos. Mesmo assim, fotografias de soldados posando ao lado de cadáveres mutilados e vestindo colares feitos de orelhas humanas apareceram em jornais com grande destaque.
Marines em Iwo Jima posam ao lado de caveiras de inimigos mortos |
Mesmo mais recentemente, na Guerra da Bósnia que se seguiu após a desintegração da Iugoslávia, partes de cadáveres de soldados mortos foram usadas de modo absurdo e desrespeitoso, com mãos se transformando em cinzeiros, ossos em flautas e crânios em copos.
Parece haver uma relação direta entre a escalada de violência nas guerras e o surgimento de Troféus. Quanto mais brutal se torna um conflito, mais desses horríveis itens tendem a aparecer, como se a brutalidade se tornasse uma espécie de licença tácita para que atrocidades ainda maiores pudessem ser cometidas livremente. Em algum momento, no calor do conflito a moral é afogada pelo sangue.
Comecei esse artigo com um ditado, então aqui vai outro para encerrar: "Na Guerra, a primeira vítima é sempre a inocência dos combatentes".
A frase pode parecer lugar comum, mas não deixa de ser verdade.