quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Destruidor de Pirâmides - A Vida e os tempos de Giuseppe Ferlini


Se existe uma coisa que simboliza a arqueologia, essa coisa é o cuidado.

Cada toque, cada retirada de terra, cada movimento é cuidadosamente calculado com o objetivo de jamais danificar uma peça. Na maioria das vezes, esse cuidado é justificável pela idade e fragilidade dos objetos. De fato, uma das ferramentas mais utilizadas pelos arqueólogos é a escova macia, usada para remover pequenas concentrações de areia e poeira.

Mas nem sempre foi assim. Em seu início, a Arqueologia buscava obter resultados imediatos exumando as civilizações do passado a qualquer custo, com métodos diretos sem qualquer cerimônia.  A maioria dos especialistas ficariam horrorizados com a forma como as coisas eram feitas, literalmente com pás, picaretas e marretas. Um bom exemplo desse estilo brutal de arqueologia pode ser sintetizado pela figura de Giuseppe Ferlini.  

Vamos nos posicionar cronologicamente para compreender quem era ele e em que época ele viveu. No início do século XIX, a Arqueologia era uma ciência auxiliar da história, sem o respeito de hoje em dia. Obviamente as pessoas sempre tiveram interesse no passado e nas crônicas dos povos antigos, contudo foi apenas depois do Renascimento que aconteceu um revival da Antiguidade Clássica. A arte, ciência, filosofia e arquitetura clássicas passaram a ser admiradas, desejadas e copiadas. Tudo antigo, era almejado. Sabemos que indivíduos como Brunelleschi, Michelangelo e Domenico Fontana participaram de escavações de ruínas romanas em busca de artefatos perdidos.

Nos séculos seguintes, o interesse pelo passado apenas aumentou com o surgimento de sociedades que buscavam tesouros com o intuito de preservá-los. Havia ricos colecionadores que se interessavam em coletar esses objetos para suas coleções. Vários nobres e ricos comerciantes mantinham galerias particulares em que despontavam estatuetas, documentos, obras de arte e outros objetos. Mas foi apenas no século XVIII, quando Johan Joachin Winckelmann começou a escavar a cidade soterrada de Pompeia, que se deu o nascimento da Arqueologia moderna.

As Pirâmides de Meroé, ou o que sobrou delas

Foi o início de uma verdadeira corrida entre as nações mais esclarecidas da Europa. Uma busca incessante por antiguidades que permaneceram esquecidas por muito tempo e que repentinamente despertavam interesse. Durante a Campanha do Egito, Napoleão tratou de levar consigo uma comitiva de cientistas, historiadores e arqueólogos para estudar os monumentos e coletar o maior número possível de artefatos. Os ingleses fizeram o mesmo, bem como as demais nações, Era a época dos Gabinetes de Curiosidades, coleções de itens raros ambicionados pelos ricos e influentes. Coube aos soldados o trabalho pesado de pilhar tumbas, saquear ruínas e varrer o deserto em busca de qualquer coisa que pudesse ter algum valor. Contrabandistas e agenciadores facilitavam o transporte desses artefatos que podiam atingir valores exorbitantes para os colecionadores na Europa. Foi nesse período de grande interesse pelo Egito Antigo que Ferlini atuou.    

Giuseppe Ferlini nasceu na cidade italiana de Bologna em 1797, mas logo deixou sua casa para escapar da coexistência impossível com sua madrasta. Dono de um espírito inquieto, ele desejava conhecer o mundo e viajar muito além das fronteiras de seu país. Juntou-se a uma companhia de mercenários antes mesmo de completar 16 anos. Ele esteve em Veneza e Corfu, onde atuou como assistente do médico de sua tropa, aprendendo a suturar, remover balas e amputar membros. Viajando de um lado para o outro, ele acabou indo parar na Albânia em 1817. O país ainda era parte do Império Otomano, mas estava engajado numa sangrenta rebelião contra o Sultão. O exército albanês dava as boas vindas a qualquer pessoa que quisesse participar da revolta, especialmente se tivesse experiência militar. Se soubesse o básico de medicina de campo, tanto melhor. Ferlini rapidamente se tornou um oficial e viu ação nos sangrentos campos de batalha.

A rebelião foi esmagada e Ferlini acabou escapando para a Grécia onde se juntou a um novo exército que enfrentava os Turcos na Península do Peloponeso. Novamente derrotado pelos inimigos liderados por Ibrahim Pasha, filho do governador do Egito, Mehmet Ali, Ferlini fugiu de volta para a Itália. Na ocasião carregou consigo um butim de artefatos gregos antigos que ele descobriu poderiam ser negociados com colecionadores. Equilibrando suas finanças, ele voltaria a se juntar ao conflito quando os principais poderes da Europa (Rússia, França e Inglaterra) interferiram no conflito contra os Turcos.
  
Ferlini não participava dessas guerras por razões políticas, embora ele odiasse os turcos com todas as suas forças, o que o motivava era a perspectiva de enriquecer. Ele havia descoberto que explorar as grandes nações do passado em busca de objetos valiosos podia ser muito lucrativo. 

A única fotografia existente de Giuseppe Ferlini tirada em 1858

Quando a coalizão derrotou os Turcos em Navarini, o mercenário bolonhês concluiu que havia chegado a hora de imigrar mais uma vez. O destino dessa vez seria o Egito, que lhe interessava por duas razões. A primeira é que muitos de seus companheiros gregos estavam estacionados lá para lutar contra os odiados turcos. A segunda é que lá ele esperava encontrar artefatos ainda mais valiosos que fariam sua riqueza ao retornar para casa. 

Os planos de Ferlini, no entanto mudaram quando ele descobriu que Mehmet Ali estava modernizando sua administração e tencionava contratar vários técnicos europeus. Um médico era mais do que bem vindo. Engolindo seu ódio pelos turcos e seu próprio orgulho, ele acabou se oferecendo para trabalhar no Cairo na construção de um hospital para a cidade. Em 1829, o italiano acabou se alistando no Exército Turco que havia combatido fervorosamente a maior parte de sua vida. Ferlini foi alçado ao posto de oficial médico e se tornou um dos responsáveis por criar um serviço de saúde para o Primeiro Regimento de Sennar que enfrentou insurgentes na Etiópia.       

Sua jornada pelo Norte da África durou cinco meses e nesse período Ferlini visitou lugares históricos como Cartum e Wadi Halfa, no qual explorou numerosas ruínas e sítios arqueológicos repletos de artefatos. Após um sangrento combate, Ferlini decidiu abandonar o exército e se radicou na Etiópia, onde casou com uma ex-escrava e enfrentou um surto de malária. Depois da morte de sua esposa e filho, vítimas da doença, ele partiu para Cartum, transferido com uma equipe médica. Com mais de 30 anos, ele se tornou amigo do Governador britânico que comprou várias de suas peças. O bolonhês participou de várias expedições pelo Deserto Núbio em busca de tesouros perdidos. Cavalgava montado num camelo, vestido como árabe, carregando um rifle nas costas, bandoleiras e um cinturão onde pendiam coldres com revólveres e a cimitarra tomada de um saqueador.


As pirâmides de Meroé antes de sua destruição

A essa altura, Ferlini sabia que não lhe restava muito tempo para conseguir uma fortuna que sempre almejou. Ele apostava que o Egito poderia ser a resposta para seus problemas: os antigos Faraós haviam escondido enormes riquezas em câmaras ocultas nas ruínas. Bastava ter disposição para cavar e encontrar esses tesouros. Havia precedentes em que ele podia se amparar. O francês Bernardino Drovetti, seu compatriota Giovanni Batista Belzoni e o britânico Henry Salt haviam acumulado uma enorme fortuna com artefatos egípcios. 

Ferlini escolheu Meroé como seu alvo, o antigo reino que deu ao Egito as Dinastias de Faraós negros. Ele se lançou em uma expedição financiada pelo mercador albanês Antonio Stefani, que pagou pelo equipamento, armas e suprimentos em troca de parte dos lucros.

Os dois começaram a jornada até Meroé em agosto de 1834, acompanhado por esposas, guias, homens armados, centenas de carregadores, além de um bom número de cavalos e dromedários. À princípio o resultado dessa aventura não foi muito bom. O grupo se estabeleceu próximo de um templo parcialmente enterrado, mas embora tenham conseguido acesso ao interior, não acharam nada valioso. A expedição chegou a encontrar um enorme obelisco decorado com hieróglifos, mas este não pode ser transportado em face de suas dimensões e peso. Infelizmente doença e fome começaram a se espalhar, matando homens e animais.

A expedição não se mostrava nem um pouco promissora quando Ferlini decidiu tentar a sua sorte com as pirâmides. Não as egípcias, mas os mais de 100 monumentos erguidos em Meroé que haviam sido descobertos poucas décadas antes. Ele havia ouvido lendas a respeito de depósitos de ouro no interior das pirâmides e estava disposto a encontrá-los à qualquer custo. E de fato ele não iria parar por nada. Acompanhado por mais de 100 escavadores munidos de pás e picaretas, ele ordenou a abertura das pirâmides, uma por uma.   

Uma representação de como foi Meroé em seu auge

O dano foi irreparável e desnecessário. Não havia nada de valor que ele pudesse levar. Desesperado, o bolonhês escolheu a maior das pirâmides, a que hoje em dia é conhecida como N6, e ao invés de derrubar as paredes laterais optou por derrubá-la de cima até embaixo. Dessa vez, a sorte acabou sorrindo para Ferlini que encontrou um sarcófago, sem múmia, acompanhado de uma série de ornamentos valiosos. Ele imaginou que se tratasse de uma sepultura real e que haveria mais. Outras pirâmides foram igualmente destruídas pelos operários que usaram o que tinham à mão para demolir paredes e colocar abaixo as obras que haviam sobrevivido a passagem de séculos. Ferlini encontrou então braceletes, anéis, colares, estatuetas e diversos adornos de valor inestimável. Temendo que os nativos estivessem planejando roubá-lo, ele deixou a escavação no meio da madrugada com três camelos carregados.

Ao reencontrar Stefani, Ferlini o apressou para que juntos deixassem a escavação antes que os escavadores nas pirâmides viessem em seu encalço. Os dois partiram no meio da noite, perseguidos pelos homens ironicamente contratados para fazer sua segurança. Eles conseguiram chegar até a quinta catarata do Nilo, escapando de emboscadas e dos seus perseguidores. Ao chegar ao Cairo ele foi recebido com honras pelo governador que o tratou como um verdadeiro herói. A história de Ferlini foi publicada em 1836, na forma de uma série de artigos com o título Nell'interno dell'Africa (Primeira Viagem pelo interior da África).

O impressionante tesouro obtido por Ferlini foi compartilhado pela Europa inteira, através de vendas, doações e leilões para recuperar o investimento na expedição. Boa parte das peças foi arrematada por Museus em Berlim e Munique pelo egiptólogo Karl Richard Lepsius, que reconheceu o valor das peças depois que o Museu Britânico as tratou erroneamente como falsificações. Os tesouros da Pirâmide N6 estão entre os maiores e mais importantes artefatos do Reino Núbio de Meroé.

O que restou das pirâmides depois da passagem de Ferlini

Após sua derradeira aventura, Ferlini decidiu se aposentar e viveu dos lucros obtidos na empreitada e das histórias que contava (elas foram republicadas dezenas de vezes). Ele morreu em 1870, aos 73 anos de causas naturais e foi enterrado no Cemitério de Certosa em Bolonha com grandes honrarias, cercado de indivíduos ilustres da história italiana. 

Giuseppe Ferlini jamais foi censurado em vida por ter destruído monumentos de enorme importância para a história da humanidade. Os danos extensivos produzidos nas Pirâmides não puderam ser restaurados. Por muitos anos ele foi considerado como um dos mais importantes Arqueólogos do século XIX. Posteriormente, seu trabalho foi descreditado e a maioria dos arqueólogos passaram a tratá-lo como um simples ladrão de sepulturas e caçador de tesouros interessado exclusivamente em riquezas, não na preservação da história. 

Hoje ele é pouco lembrado, exceto pelo título "Destruidor de Pirâmides".

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