Em todos as partes do mundo, não faltam histórias à respeito de fantasmas, demônios e entidades espirituais, abrangendo todos os tipos de ocorrências estranhas: corpóreas ou incorpóreas, visíveis ou invisíveis, benignas ou malignas. O Folclore do Japão é um dos mais ricos no que diz respeito a histórias assustadoras envolvendo entidades fantasmagóricas. Algumas delas, tão estranhas e aterrorizantes que mesmo em nossos tempos racionais, continuam causando medo nas pessoas, pois muitos ainda estão dispostos a acreditar nelas. Uma dessas lendas descreve um fantasma atípico que não vêm da Terra dos Mortos, mas que ainda é parte do Reino dos Vivos.
As entidades conhecidas como Ikiryo, algo que pode ser traduzido como "Fantasma Vivo" são em termos gerais espíritos de pessoas vivas que são temporariamente desalojados de seus corpos para vagar, muitas vezes por grandes distâncias, a fim de assombrar, amaldiçoar ou assustar as pessoas. As razões para isso acontecer são variadas e podem assumir muitas formas. Uma das maneiras mais comuns de um Ikiryo se formar é por meio de emoções intensas, incluindo profunda tristeza, amor doentio, paixão obsessiva, ódio cego ou raiva incontida. Tais sentimentos libertariam temporariamente a alma do corpo, fazendo-a vagar, geralmente atraída pela fonte dessas emoções. Enquanto o espírito se desprende, a pessoa se mantém viva numa espécie de transe, sem ter consciência de que está acontecendo.
Outra maneira de um Ikiryo se formar é por um ferimento grave que deixa alguém às portas da morte. Com o corpo alquebrado, o espírito se separa, afastando-se com o intuito de assombrar o lugar onde ocorreu o fato ou para perseguir o causador deste. Uma crença popular da Segunda Guerra Mundial envolvia soldados feridos em campo de batalha que apareciam na forma de Ikiryos para amigos e familiares. Era uma maneira para eles darem seu último adeus aos entes queridos, algo muito difundido naqueles tempos. No Japão, há numerosos casos de pessoas visitadas por aparições de pessoas que se encontram no leito de morte.
Segundo o mito um Ikiryo pode se manifestar por intermédio de uma condição chamada rikonbyo, literalmente "doença da separação da alma", também conhecida como kage no yamai, ou "doença das sombras". Este é considerada como um tipo de moléstia física cujo principal sintoma é fazer com que a alma da vítima escape de seu corpo, podendo retornar mais tarde. Tal aflição costuma ser transmitida de geração em geração, como uma doença hereditária. Para combater essa doença, rezas, ervas e rituais são utilizados em noites específicas com o intuito de impedir que a alma se desprenda do corpo. Um dos métodos curiosos é que a pessoa faça uma espécie de voto de silêncio ou use uma mordaça de papel de arroz, uma vez que existe a crença de que o espírito deixa o corpo pela boca.
Em casos muito raros, um indivíduo pode se tornar um Ikiryo por vontade própria e viajar nessa forma espiritual, usando uma habilidade conhecida como tobi-damashi. As pessoas com essa faculdade simplesmente entram em um transe profundo induzido por mantras, certas bebidas fortes ou meditação, fazendo com que seus espíritos abandonem o corpo. O objetivo daqueles que usam esse poder geralmente envolve usar a forma espiritual para obter vingança, assustar ou enviar mensagens. Na tradição mística japonesa, as pessoas que assumem a forma de um Ikiryo muitas vezes o fazem por meio de magia negra, embora essa feitiçaria nefasta possa facilmente dar errado e fazer com que eles não consigam retornar para seus corpos novamente.
Uma vez separado do corpo, o Ikiryo assume uma variedade de formas diferentes, dependendo da razão pela qual se formou ou da região em que vive. A descrição mais comum dessas entidades é que eles parecem com uma espécie de doppelganger da pessoa viva, às vezes translúcida ou nebulosa, enquanto outras vezes indistinguível de uma pessoa viva.
Outros Ikiryo assumiriam aparências mais elaboradas e assustadoras, como uma cabeça flutuante sem corpo ou uma "chama da alma", conhecida em japonês como hitodama, uma espécie de orbe flamejante de fogo. Há ainda uma variedade incrível de formas dignas de pesadelo, com espíritos monstruosos, deformados ou simplesmente medonhos. Os poderes do Ikiryo também variam, dependendo muito da razão pela qual foram formados e da intensidade da emoção que os criou. Aqueles formados e alimentados pela raiva são considerados os mais poderosos, mais destrutivos e capazes de influenciar o mundo físico, podendo quebrar objetos, mover coisas e atacar os vivos fisicamente. Podem ainda causar doenças, bem como infligir maldições, incitar terror incontrolável, e até mesmo possuir o corpo de outra pessoa.
Os formados a partir de amor não correspondido ou obsessivo assombravam o objeto de sua afeição, podendo sussurrar em seu ouvido, deixar presentes, acariciá-los ou mesmo, estuprá-los. Um Ikiryo formado pela tristeza costuma emanar um frio congelante ao seu redor, bem como uma sensação de grande desânimo que afeta residentes de uma vasta área. Outros fenômenos inumeráveis atribuídos a ação dos Ikiryo incluem ruídos anômalos, passos desencarnados, odores que aparecem do nada, pontos frios e outros fenômenos típicos de uma assombração usual. Se as visitas se tornam persistentes, diz-se que a vítima de um Ikiryo acaba se tornando deprimida ou mesmo louca. Aliás, um dos objetivos principais desses curiosos fantasmas é enlouquecer suas vítimas antes de retornar aos seus corpos satisfeitos com a situação que criaram.
A pessoa que está projetando o Ikiryo pode estar ciente do que está fazendo durante esses episódios, mas muitas histórias envolvem pessoas que acordam sem memória de suas divagações e manifestações como espírito, apenas ouvindo sobre isso mais tarde de aterrorizadas testemunhas. Nesses casos, a manifestação usa o subconsciente para extrair sua vingança.
Os Ikiryo figuram com frequência na literatura japonesa presentes em histórias de samurais, baladas, tragédias e poesias, como no "Conto de Genji". Estão também em incontáveis narrativas de terror e ficção, como a coleção de histórias assustadoras kaidan, "Sorori Monogatari". O mito é muitíssimo difundido no país, sobretudo em regiões rurais onde a crença em tais manifestações é parte das tradições familiares, contudo nas últimas décadas grandes cidades também experimentam um retorno dessas lendas.
Eles estão presentes até mesmo nas escrituras budistas, com textos religiosos ancestrais explicando como afastar, repelir ou até mesmo destruir esses fantasmas usando para isso rituais elaborados, objetos encantados ou mesmo invocações mágicas. Existem monges ou sacerdotes que oferecem seus préstimos, visitando pessoas afligidas por tais manifestações e que desejam se ver livres de seus ataques. De fato, se você pegar um jornal no Japão, encontrará na seção de classificados anúncios de profissionais que removem fantasmas - verdadeiros caça-fantasmas.
Embora a maioria das pessoas considerem que essas aparições não passam de mero folclore e lendas, ainda há uma parcela considerável que crê neste fenômeno e o entende como real e factual. Não faltam histórias sobre o avistamentos e relatos sobre Ikiryo de todos os tipos. O que quer que se possa pensar à respeito dos Ikiryo, a lenda constitui um tipo curioso de fenômenos sobrenatural vindo de uma terra que preza e conserva suas tradições.
Mesmo as mais estranhas...
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