sábado, 8 de janeiro de 2022

Perdidos na Taiga - A Família que sobreviveu na imensidão da Sibéria


Existem poucos lugares em nosso planeta tão desolados e ameaçadores quanto a Taiga Siberiana. Aqui encontramos uma vasta extensão de terra permanentemente congelada, pântanos gelados, lagos e rios frígidos, montanhas escarpadas e florestas escuras onde rondam ursos e lobos. Esta é uma terra que tem desafiado a civilização e a humanidade desde tempos remotos, um domínio mortal e inóspito de desolação e frio perpétuo. Para todos os efeitos a Taiga Siberiana parece ser um lugar que não foi feito para nós. 

É por esta razão que, em 1978, um helicóptero cheio de geólogos em busca de campos de petróleo em potencial ficou surpreso ao avistar, empoleirado em uma clareira varrida pelo vento a milhares de metros de altura na encosta de uma montanha, o que parecia ser um jardim artificial. Era considerado quase uma impossibilidade que alguém pudesse se fixar ali, afinal essa área em particular estava a centenas de quilômetros do assentamento mais próximo. Era basicamente um reino solitário não mapeado, jamais explorado por geólogos. Na época, o terreno era muito traiçoeiro para pousar, mas aquela era uma anomalia tão desconcertante que eles fizeram questão de encontrar um lugar no vale adjacente e caminhar até o local para investigar. O que eles descobriram iria surpreendê-los e dar início a uma incrível história de sobrevivência, aventura e a capacidade do espírito humano.

A equipe escalou a encosta da montanha, enfrentando trilhas perigosas e ventos gelados fustigantes que conspiraram para pará-los a cada curva, suas mentes correndo para tentar descobrir como e por que  alguém estaria vivendo naquele deserto infernal. Certamente ninguém poder sobreviver por muito tempo naquelas condições. Ou poderia? Sua curiosidade foi despertada ainda mais quando chegaram à clareira que tinham visto do ar e avistaram o que parecia ser uma velha cabana de madeira decrépita alojada entre pinheiros desalinhados. Era uma coisa tão inesperada de encontrar nesse lugar remoto longe da civilização que era quase como encontrar vida em outro planeta. Algo tão anômalo e inesperado quanto. Mas enquanto a equipe observava incrédula para a casa e para o jardim, tudo se tornou ainda mais bizarro quando a porta da cabana se abriu e através dela surgiu um homem envelhecido e enrugado. Uma das geólogas da equipe, Galina Pismenskaya, descreveria a cabana e a aparência do homem misterioso nas seguintes palavras:

"Enegrecida pelo tempo e pela chuva, a cabana estava amontoada de todos os lados com lixo da taiga - cascas, madeira, folhas. Se não fosse por uma janela do tamanho do bolso da minha mochila, seria difícil acreditar que as pessoas viviam lá. Mas eles conseguiram se estabelecer lá, sem dúvida. Nossa chegada havia sido notada. A porta baixa rangeu e a figura de um homem muito velho emergiu à luz do dia, como se saído de um conto de fadas. Pés descalços. Vestindo uma camisa rústica remendada feita de saco de aniagem. Usava calças do mesmo material, também com remendos, e tinha barba desgrenhada. Seu cabelo crescia selvagem e estava amarrado. Ele parecia assustado e muito ansioso. Tínhamos que dizer algo, então comecei: "Saudações, avô! Viemos fazer uma visita!" O velho não respondeu imediatamente. Finalmente, ouvimos sua voz e esta era suave: "Bem, já que você viajou até aqui, é melhor entrar." Disse ele.


O interior da cabana era rústico, quase como um casebre, de teto baixo, apertado, frio e escuro, mais parecido com a toca de um animal do que com uma habitação humana. As paredes eram guarnecidas de madeira e folhas para produzir um isolamento térmico. Havia apenas um cômodo imundo, cheio de destroços e impregnado pelo cheiro de corpos sujos e outros odores não identificados. O chão estava coberto de cascas de pinhão e de batata, e logo a equipe descobriu atônita que o homem não morava sozinho. Atrás dele, na escuridão, estavam duas mulheres, com os olhos arregalados e obviamente com medo dos recém-chegados. Eles conversavam entre si no que parecia ser um linguajar lento e confuso, um arremedo de russo com dialetos, muitos deles esquecidos ou não usados há tempos. 

Finalmente uma das mulheres exclamou enquanto apontava o dedo para os invasores "Isso é pelos nossos pecados, nossos pecados!" Ela estava histérica e nervosa, cuspia e xingava em dialetos. A outra mulher também ficou nervosa e começou a atirar coisas nas pessoas enquanto o velho observava taciturno. Isso foi o suficiente para convencer a equipe de que era hora de deixar a cabana afim de evitar uma situação que descambasse para a violência. Eles deixaram o casebre imundo e se afastaram para discutir o que fazer. Um dos membros da equipe chegou a pegar um rifle que trouxera, segurando-o com força até que os nós dos dedos ficassem brancos. O grupo conseguia ouvir o som de discussão eclodindo dentro da casa, uma discussão acalorada. De vez em quando uma das mulheres espiava para o lado de fora e fazia sinais ou cuspia na direção do grupo.

Depois de algum tempo, a porta da cabana se abriu e o velho apareceu novamente. Ele então começou a caminhar na direção da equipe, aparentemente indiferente à terra gelada sobre seus pés descalços. As duas mulheres vieram atrás a alguns passos de distância. As duas pareciam menos assustadas a essa altura, embora sua atitude lembrasse a de animais selvagens se aproximando cautelosamente de estranhos. Os geólogos lhes ofereceram um pouco de sua comida em uma demonstração de paz. Eles cheiraram e recusaram a comida, com o velho explicando que eles “não tinham permissão” para comer essas coisas e que as duas mulheres nunca tinham visto aquilo antes - a comida oferecida era um pedaço de pão. 

O velho então se apresentou pelo nome de Karp Lykov, e as duas mulheres como suas filhas Natalia e Agafia, esta última nascida na taiga 30 anos atrás. Aquela família vivia no lugar há pelo menos 40 anos, segundo o velho, mas ele não tinha absoluta certeza. Ele apresentou outras duas pessoas que também compunham a unidade familiar e que viviam no lugar. Eram seus filhos Savin e Dmitry, dois homens jovens com uma aparência selvagem e uma constituição física magra, ainda que rígida. Os dois estavam caçando e quando retornaram reagiram com igual desconfiança diante dos forasteiros. 


Feitas as devidas apresentações e acalmados os ânimos, o clã se tranquilizou o bastante para se sentir à vontade na presença dos geólogos, as primeiras pessoas que eles haviam visto em décadas. Eles então começariam a contar uma história fantástica, que beirava o inacreditável.

De acordo com o Patriarca da família, eles viviam naquele recanto inóspito desde 1936, tendo chegado lá fugindo da perseguição do Regime Comunista que havia ampliado a repressão sobre a Igreja Ortodoxa Russa. Os chamados "Velhos Crentes", aqueles que se recusaram a adotar o novo sistema litúrgico aprovado pelo estado ou aceitar a autoridade dos líderes, passaram a ser vistos como inimigos. Os Lykovs estavam entre estas família profundamente religiosas. Sua recusa em se curvar aos novos costumes os deixava em uma situação de grave risco. Os bolcheviques começaram então a enviar muitos dos Velhos Crentes para o exílio em terras distantes e inóspitas. 

Mas mesmo vivendo afastados, eles ainda estavam em perigo. O irmão de Karp foi baleado e morto por uma patrulha soviética e, temendo pela vida de sua família, ele decidiu levá-los ainda mais fundo na taiga siberiana em busca de um esconderijo seguro. Junto com ele, nesta jornada ao desconhecido, estavam originalmente sua esposa, Akulina, e seus dois filhos, Savin e Natalia. A família finalmente encontrou o local onde estavam estabelecidos e lá iniciaram sua existência em meio às agruras de um território extremo.

Após a chegada, a família conseguiu sobreviver construindo sua cabana, criando uma plantação de batata, beterraba e centeio, coletando nozes, frutas vermelhas, raízes, grama, cogumelos, bem como cavando armadilhas para animais e reunindo tudo o que podiam extrair do deserto. Apesar de todas as dificuldades, eles conseguiram se manter um passo à frente da fome. As geadas matavam as plantações em seu jardim, animais selvagens atacavam seus depósitos de alimentos e, em uma ocasião, eles passaram grande carestia quando o centeio não floresceu. Contudo, de alguma forma, eles conseguiram sobreviver por meio de engenhosidade e da pura força de vontade. Quando as roupas que trouxeram se desintegraram além do conserto, eles criaram roupas e sapatos com folhas, casca de árvore e cânhamo. As panelas de metal que trouxeram com eles eventualmente enferrujaram e se desfizeram, o que significava que era mais difícil para eles cozinhar, forçando sua dieta a depender cada vez menos de carne ou peixe. Agafia diria mais tarde a respeito da dificuldade de conseguir comida: "Estávamos com fome o tempo todo. Todos os anos realizamos um conselho para decidir se devíamos comer tudo ou deixar um pouco para as sementes".


Com o tempo, a família teria mais dois filhos em seu reino gelado: Agafia e um filho chamado Dmitry. Pelos próximos 40 anos eles viveriam neste lugar abandonado, podendo contar apenas uns com os outros. A Segunda Guerra Mundial veio e passou sem que eles soubessem, o mundo ao seu redor mudou e o homem chegou a Lua, mas eles de nada souberam. Quando um dos membros da equipe disse como a civilização havia prosperado e crescido o patriarca simplesmente não conseguia acreditar. A família estivera congelada no tempo, como insetos presos em âmbar. Os dois filhos mais novos jamais tinham visto um carro, avião ou mesmo um cavalo. Jamais tinham comido pão ou provado do sal e não tinham qualquer conhecimento do mundo exterior. Karp contava a eles histórias do que havia lá fora e do mundo que eles haviam deixado para trás, mas para eles essas histórias não eram mais do fábulas. A realidade deles era a extensão sombria da taiga e o frio perpétuo, o duro e frio dia a dia nos limites.

Durante o tempo em que passaram nesse lugar, os Lykov enfrentaram inúmeras dificuldades e tragédias. A esposa de Karp, Akulina, morreu em 1961 depois de abrir mão de seu próprio suprimento de comida para oferecer aos filhos durante um inverno particularmente severo. De acordo com Karp, eles ocasionalmente encontravam alguma pessoa no deserto de gelo, mas sempre se esquivavam deles, preferindo viver em completo isolamento. Temiam que os forasteiros pudessem estar vindo para matá-los. A equipe de geólogos foi o primeiro contato real com alguém de fora em décadas, o que explica a cautela e o pânico demonstrados pelas filhas. Apesar disso, embora tivessem muito medo, sentiam também um fascínio e curiosidade naturais. De fato, Dmitry e Agafia eram os mais perplexos diante das roupas e tecnologia que os geólogos traziam consigo. 

Eles aceitaram o convite de visitar o acampamento dos geólogo e ficaram estarrecidos com coisas simples como mochilas, comida enlatada e lanternas. Se maravilharam também com uma serra circular que cortava madeira em minutos e com o funcionamento de um rádio de comunicação. Para eles, tudo aquilo parecia magia. Durante o tempo em que os geólogos estiveram lá, presentearam os Lykovs com talheres de metal, potes de vidro, facas, uma lanterna e sua mercadoria mais querida, o sal, que os mais jovens nunca haviam provado e do qual Karp há muito lamentava a ausência.

Na época, a descoberta dessa família perdida se espalhou pelo mundo e tudo foi noticiado com grande destaque. Antropólogos e historiadores estavam diante de um núcleo familiar que havia sido mergulhado num ambiente inclemente e que havia sobrevivido às maiores provações. Era algo notável! 


Infelizmente, sua reintrodução ao mundo moderno foi rapidamente seguida pela tragédia. Os Lycov quiseram continuar vivendo no seu autoexílio, mas aceitaram fazer viagens para conhecer o mundo moderno que lhes foi negado. Nessas visitas, a exposição ao mundo que lhes era tão diferente acabou se provando fatal. Em 1981, Savin e Natalia morreram de insuficiência renal causada pela alimentação diferente a que foram apresentados. Em rápida sucessão, Dmitry contraiu uma gripe e morreu em decorrência de pneumonia. Foi oferecido transportar Dmitry por avião para um hospital para tratamento, mas ele se recusou tanto por causa de seu medo quanto pelas suas crenças religiosas, supostamente disse em seus últimos suspiros: "Isso não nos é permitido. Um homem vive para tudo o que Deus concede." 

O próprio Karp faleceu em 1988, deixando Agafia para herdar sua casa como a única sobrevivente do clã. As autoridades se ofereceram para tirá-la de lá, para apresentá-la a parentes distantes e permitir que ela voltasse ao mundo moderno, mas ela recusou todas ofertas, preferindo ficar onde estava. Era assim que ela acreditava, Deus pretendia. Ela aceitou porém que se reconstruísse a cabana e recebeu todo o equipamento e roupas de que precisava. Ela também receberia cabras e galinhas, e ganharia alguma companhia na forma de um antropólogo chamado Yerofei Sedov, que passou a morar nas proximidades dali em diante. 

Mas Agafia aceitou aventurou-se na civilização, ainda que brevemente. Uma dessas excursões incluiu um tour pela Rússia organizado pelo governo para que ela conhecesse o país. Essa foi a primeira vez que ela viu carros, ruas, casas, aviões, cavalos, dinheiro e muitas outras coisas que a maioria das pessoas conhecem. Algumas dessas coisas a fascinavam, enquanto outras a assustaram, como as ruas movimentadas e, estranhamente, códigos de barras, que ela acreditava serem a marca do Diabo. Ela também acreditava que o ar e a água fora da taiga estava envenenado. Por essa razão ela temia deixar sua casa. 

Em 2013, o jornalista Vasily Peskov recebeu permissão para visitar a cabana de Agafia e realizar uma entrevista para a Vice Magazine. Sua primeira impressão sobre a mulher foi a seguinte:

"Para uma mulher de 70 anos que teve de comer seus sapatos para sobreviver, fiquei surpreso ao ver como ela parecia ágil e saudável. Sua propriedade incluía uma cabana e edifícios menores para cabras, galinhas, suprimentos e comida em conserva, bem como um jardim na colina íngreme atrás da residência principal. Ao longo dos anos, com a ajuda de estudiosos, ela ampliou sua propriedade de um barraco de um cômodo onde vivia toda família para um ambiente mais limpo e funcional. Dezenas de gatos vagavam livremente pela propriedade, animais pelos quais ela desenvolveu afeição."


Em meados de 2014, Agafia ainda vivia na taiga longe da civilização e deu sua última entrevista a um jornalista que veio visitá-la. Quando questionada sobre se sentir sozinha, ela respondeu: "Toda pessoa tem um anjo da guarda que zela por ela. Eu tenho um ícone que foi abençoado. Nunca estou sozinha pois me sinto privilegiada.

Agafia morreu em 2015 de causas naturais, tendo vivido seus anos finais em relativo conforto, se comparado ao que tinha antes. A história dos Lykovs se encerrou dessa maneira, com o último membro remanescente da família morrendo de causas naturais e sendo enterrado no local onde viveu.

Esse é um relato impressionante, que, em última análise, nos mostra que para viver é preciso pouca coisa além do desejo de perseverar. A história dos Lykovs oferece um olhar fascinante sobre o espírito de sobrevivência e a capacidade de adaptação do ser humano diante das maiores dificuldades. 

Um comentário:

  1. *Detalhe: uma dos geólogos que os descobriram resolveu morar com Agafia, mas ele morava em uma cabana separada e era perneta. Agafia tinha que cuidar desse mala, ainda.

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