Desde os tempos mais remotos, nenhum animal aterrorizou e ao mesmo tempo fascinou mais o homem do que a Serpente. O homem primitivo rendeu a esse traiçoeiro réptil inúmeras homenagens e ergueu ao redor dele algumas das mais antigas religiões de que se tem notícia. Representação clássica da maldade, segundo a religião cristã, a Serpente simboliza o mal encarnado desde os tempos do idílico Jardim do Éden. A Serpente era a grande tentadora e o símbolo da queda e da perda do prestígio do homem diante de Deus.
Antes porém, a figura da Serpente tinha uma conotação diferente para muitos povos primitivo. Ela era a representação da astúcia, da sabedoria e do conhecimento. Vários deuses do passado assumiam a forma de serpente para receber adoração de seus seguidores e a serpente era glorificada.
No inclemente Universo dos Mythos, o Grande Deus Ancestral Yig é a divindade que congrega em si todos os aspectos da clássica Divindade Serpente. Yig não apenas tem forma reptiliana com características humanas, mas é conhecido como o Pai das Cobras. Ele rege todos os répteis rastejantes. Seu poder sobre eles é inquestionável, as serpentes o obedecem e atendem seu comando. Yig é tido como um dos Deuses mais influentes do passado remoto com cultos estabelecidos em vários continentes e com seguidores em praticamente todos os cantos do planeta. Ele é considerado um patrono do conhecimento e sabedoria, que compartilha de seu saber místico com seus seguidores, chegando até mesmo a ensiná-los os feitiços e rituais mais poderosos preservados à sete chaves.
Os primeiros seguidores de Yig em nosso planeta, entretanto, não foram humanos como pensam, muitos estudiosos do Mythos. Nem mesmo os povos das terras atávicas de Mu, da Lemúria ou mesmo da mítica Atlântida... não, antes deles haviam outros que se curvavam diante dos altares profanos de basalto negro e obtinham o favor do temido Pai das Cobras o chamando de Deus Supremo. Talvez por uma questão de identidade e familiaridade, o Povo Serpente constituiu o mais antigo secto de que se tem notícia devotado a Yig.
O Povo Serpente é uma raça de seres bípedes que guardam características tanto humanas quanto reptilianas. Chamados de Serpentes que Caminham eles apareceram durante o Período Permiano e rapidamente ascenderam na escala evolutiva fundando uma civilização avançada. Há teorias de que a raça como um todo teria vindo de Vênus, quando este planeta possuía uma atmosfera similar a da Terra. Eles teriam desembarcado aqui usando portais dimensionais, realizando um êxodo quando as condições ambientais se tornaram insustentáveis em seu mundo natal. Apesar de defendida em alguns tomos, essa hipótese parece pouco factível e a maioria dos acadêmicos do Mythos postulam que eles são nativos da Terra, tendo sido resultado de um processo evolutivo natural.
Se é verdade que eles são oriundos da Terra, é provável que essa espécie tenha firmado a primeira Grande Civilização inteiramente nativa de nosso planeta, com um avanço místico e posteriormente tecnológico invejável. Nos anais da história do próprio povo serpente, sua gênese decorre da vontade de Yig que os teria criado à sua imagem e semelhança, com o intento de conquistar a superfície do planeta e espalhar sua marca por todos os cantos. Com seu grande conhecimento de magia, e com a ajuda da fabulosa Coroa da Cobra, o Povo Serpente fundou o majestoso Império de Valusia no passado remoto pré-humano, no hiato das disputas territoriais entre as Coisas Ancestrais, os Fungos de Yuggoth e as hostes Xothianas lideradas pelo Grande Cthulhu.
O Império de Valúsia, se espalhou sem conhecer grandes adversários, ocupando uma área que hoje corresponde a África, Europa e o Mediterrâneo. No auge de sua regência, o Povo Serpente ergueu cidades de pedra com enormes torres de basalto, alamedas ladeadas por grandes palmeiras, zigurates, pirâmides escalonadas e magníficas esplanadas. Eles foram um povo construtor que dedicava igual devoção a erigir templos para honrar seu deus e laboratórios para desbravar as fronteiras da ciências. As maiores cidades desse povo empreendedor se ergueram orgulhosas, despontando como algumas das primeiras cidades de que se tem notícia. Hoje, a infame Cidade sem Nome localizada no Deserto da Arábia é a última das que se tem notícia, ainda que na forma de ruínas decrépitas. Outras cidades no entanto, podem ainda existir nas profundezas vulcânicas da Islândia ou no Norte da África nos recessos da Líbia. Há boatos de que cidadelas construídas no coração da selva amazônica também permanecem abandonadas, esperando serem encontradas.
Há divergência sobre o que causou o inevitável ocaso da Civilização dos Homens Serpente.
Uma das hipóteses mais aceitas é que disputas religiosas acabaram por trazer instabilidade à sua sociedade até então perfeitamente equilibrada. Por milênios, o Culto de Yig deteve a preponderância sobre todas os demais seitas, sufocando as demais em alguns momentos, tolerando-as com reservas em outros. Contudo, com o passar do tempo, diferentes facções foram se formando, oferecendo lealdade a Byatis, Han, Shub-Niggurath e Tsathoggua. As disputas se tornaram cada vez mais frequentes, sobretudo aquelas entre os devotos que mantinham a fidelidade a Yig e os que descobriram em Tsathoggua uma fonte de poder e aprendizado arcano. Em determinado momento, é possível que essa cisão tenha fomentado movimentos separatistas e guerras civis que enfraqueceram decisivamente a coesão do Império.
Por volta do Triássico, severas alterações climáticas e o surgimento de novas formas de vida, em especial dos grandes sáurios, fizeram com que o Povo Serpente experimentasse um acentuado declínio. Muitas de suas cidades foram abandonadas ou destruídas, fazendo com que o antes vasto Império se fragmentasse em pequenas Cidades Estado, cada qual com seus deuses, leis e crenças. Nenhuma delas, entretanto, conseguiu se tornar preponderante e uma a uma, elas também foram desaparecendo.
A raça chegou perto de sua extinção, mas em algum momento do Período Pleistoceno, ela conseguiu se reestruturar e ressurgir. O Povo Serpente assistiu o surgimento dos primeiros mamíferos que herdaram o Reino dos Répteis que governaram a superfície por milhares de anos. Curiosos eles dedicaram sua atenção científica ao surgimento de uma espécie em particular com a capacidade de se adaptar e superar as adversidades que encontravam. É possível que o Povo Serpente tenha em algum momento estudado e até incentivado tribos proto-humanas, pouco mais do que simples primatas em seu processo evolutivo. Alguns conjecturam se a gênese dos mitos ancestrais disseminados em todo o mundo sobre Serpentes Sábias não remontam a essa interação. Há suspeitas de que os primeiros povos humanos que abandonaram o nomadismo, apenas o fizeram graças à mão do Povo serpente os guiando nesse sentido, ensinando a eles técnicas rudimentares de agricultura.
Ironicamente foi justamente o sucesso dos humanos que motivou o declínio decisivo do Povo Serpente e sua Decadência. Durante a mítica Era Thuriana, a Valusia se tornou o mais poderoso dos reinos humanos, ainda que fosse governada das sombras pelo Povo Serpente que também exercia influência sobre Commorium, Verulia, Thule e demais reinos. O Povo Serpente estava satisfeito em se manter nas sombras, mas esse papel não duraria muito. Os humanos descobriram a presença do Povo Serpente e temendo seu vínculo com a feitiçaria, deram início a uma sangrenta guerra que se converteu em extermínio. Os esconderijos subterrâneos da Raça Reptiliana foram varridos pelos humanos em maior número e seus habitantes passados pelo fio da espada. Já em um estado de decadência progressiva, nem mesmo a feitiçaria e alta tecnologia os salvou da aniquilação. Nos tempos do lendário Rei Kull, chamado de Usurpador da Valusia, a presença do Povo Serpente era quase intangível. Uma última tentativa de tomar o trono da Valusia foi debelada pelo Monarca bárbaro que deu cabo de uma conspiração visando sua deposição.
O Período Thuriano foi sucedido pela era dos Filhos de Arrius, que chamaram seu tempo de Era Hiboriana. Nessa segunda época lendária, o legado do Povo Serpente foi explorado nos reinos sob a sombra sibilante do Deus Set (possivelmente um dos aspectos de Yig) que passou a ser venerado por humanos, sobretudo no Reino da Estígia. Os tesouros do Povo Serpente foram vasculhados e ajudaram a criar tradições arcanas representadas pelo Livro de Skellos. Na Era Hiboriana, feiticeiros poderosos como o terrível mago estígio Thoth Amon, aprenderam muito com a herança do Povo Serpente. Em determinado momento, Thoth Amon chegou supostamente a recuperar a mítica Coroa da Cobra que teria lhe conferido enormes poderes. Contudo, o artefato se perdeu em algum momento, frustrando os planos de conquista do mago.
Quando um novo cataclismo pôs fim a Era Hiboriana, enterrando seus reinos e história, o Povo Serpente parecia ter igualmente encontrado seu ocaso. Contudo, uma diáspora permitiu o surgimento de alguns bastiões da outrora orgulhosa raça. Estes resistiram retirando-se cada vez mais para as profundezas da Terra buscando proteção em cavernas escuras. Fixando-se em Yoth, nos arredores de K'n'yan e possivelmente na Terras dos Sonhos. Alguns deles conseguiram sobreviver a passagem das eras, assistindo o progresso dos seus desafetos humanos que moldaram o mundo ao seu bel-prazer.
Em tempos mais recentes, muitos dos membros remanescentes do Povo Serpente se colocaram em um estado de hibernação voluntária, ocupando receptáculos capazes de sustentar sua existência indefinidamente. Seus esconderijos ocultos no coração das suas cidadelas ancestrais permanecem intocados à despeito de guardarem tesouros valiosos muito ambicionados por feiticeiros. No Novo Mundo, as lendárias Cidades do Ouro procuradas pelos Conquistadores podem muito bem corresponder aos últimos baluartes do Povo Serpente. Os terrores que habitam esses lugares, junto com indescritíveis maravilhas, são matéria de debate há milênios.
Existem ainda aqueles que experimentaram um processo de degradação que os conduziu à barbárie. Em sua maioria, estes pertencem ao Povo Serpente que se isolou nas profundezas de cavernas como as que existem em Gales, na Região da Apúlia e no Oriente Médio. Sua existência foi marcada por uma involução na qual eles se tornaram pouco mais do que bestas selvagens dedicadas a lutas tribais e disputas territoriais, um triste retrocesso para um povo tão ambicioso. As lendas de povos não humanos habitando os subterrâneos podem ter origem nesses seres que degeneraram em inúmeras formas. O Povo-Pequeno de Gales, os Anões das terras nórdicas, Kobolds da Alemanha e curupiras no Brasil são mitos que possivelmente decorrem de tribos degeneradas do Povo Serpente.
Mas nem todos os membros desse povo atávico encontram-se inativos em câmaras de êxtase ou degeneraram em espécies espúrias. Alguns continuam vivendo entre os humanos, disfarçados e escondidos justamente entre eles. Eles descobriam formas de ocultar sua aparência e passaram a interagir com os humanos, imitando seu estilo de vida e desfrutando de sua era. Eles ocupam posições importantes nos campos que sempre dominaram. São magos extremamente poderosos, líderes de seitas religiosas ou homens santos que ao seu modo ainda desfrutam de influência numa época que não é a sua. Outros se juntaram a humanos que exploram as ciências e se tornaram cientistas, consultores e visionários, coordenando das sombras conglomerados de pesquisa e megacorporações. Eles agem discretamente, fomentando esquemas que levam décadas, por vezes até séculos, para render frutos.
Em comum, todas as facções remanescentes do Povo Serpente dispersas pelo mundo se ressentem de seu Império decaído, remoendo o que eles enxergam como uma substituição indigna, na forma da humanidade que os sucedeu. Dentre eles há os que sonham com o retorno de sua prévia condição de Senhores do Planeta, ambicionando um dia retomar o que consideram seu por direito.
Conspirações formadas por membros do Povo Serpente surgiram ao longo da história humana, urdindo planos e criando estratégias que lhes permitiram reaver o vasto poder que um dia detiveram. Certas facções consideram que é questão de tempo até que a Raça conquiste novamente o planeta, coisa que estaria prevista por seus Profetas.
Ainda que poderosos estes grupos não parecem possuir uma liderança capaz de coordenar seus esforços em um mesmo sentido. Dada a natureza traiçoeira e individualista do Povo Serpente é pouco provável que eles sejam capazes um dia de coordenar um esforço que prive os humanos de sua hegemonia. Supostos esquemas visando o extermínio da raça humana sem dúvida foram concebidos, mas estes carecem de coesão para serem colocados em movimento.
Uma vez que seus números foram dramaticamente reduzidos e cada um deles é dedicado às suas próprias agendas é improvável que algo assim venha a acontecer. De fato, tal coisa oferece certo conforto, já que o domínio de técnicas científicas e magia fazem do Povo Serpente inimigos formidáveis que poderiam acarretar em nossa destruição.