domingo, 24 de abril de 2022

Terra das Bruxas - O Vilarejo de Triora que foi palco de feitiçaria e de um julgamento sangrento


Localizada no tranquilo Vale de Argentina, nos Alpes da Ligúria, norte da Itália, fica a serena e minúscula cidade de Triora. É provável que se não fosse pelo seu passado tumultuado, ninguém jamais se interessasse ou ouvisse falar dela. Cercada por paisagens naturais arrebatadoras, falésias altas e vales profundos, ela é pouco mais do que um ponto no mapa, com apenas 400 residentes permanentes vivendo uma vida de idílica solidão. 

Apesar de seu tamanho, a grandeza natural ao redor ajudou Triora a ser incluída numa associação de cidades de interesse histórico chamada I Borghi più belli d'Italia (As mais belas cidadezinhas da Itália). Ela também conquistou um lugar na lista das 100 cidades mais atraentes para os amantes da história medieval. Para todas as aparências, ela é uma pequena e pitoresca aldeia; limpa e acolhedora para todos que a visitam, um lugar para passar um tempo e explorar durante as férias. Entretanto, nem tudo é o que parece ser!

Triora tem um passado muito sombrio e sinistro que ainda lança sombras sobre o lugar. É como uma mácula ancestral, uma cicatriz que nunca se fecha que lhe valeu o apelido de "il paese delle streghe", ou "A Terra das Bruxas".

A história de Triora remonta aos tempos romanos antigos, quando estes ergueram o pequeno assentamento para suprir as necessidades das legiões e operários à caminho da Gália. Triora, por ficar no meio do caminho servia como um local onde os viajantes podiam descansar antes de adentrar o território disputado com os gauleses. Esse passado permitiu que a cidade se desenvolvesse e no século XI, ela já era um próspero centro de comércio na região, atraindo comerciantes e mercadores que ofereciam seus produtos no mercado local. Triora estava em uma área contestada e continuamente seus governantes tinham que se defender da invasão forçada de seus vizinhos, a poderosa República de Gênova. Eventualmente, a República acabou absorvendo a cidade após negociações que garantiram sua compra. Triora continuou a ser um lugar importante, não apenas financeiramente mas uma encruzilhada de comércio entre Itália e França, valorizada ainda por sua posição estratégica. Na Idade Média permaneceu sendo um centro de comércio, bem como um polo agrícola, com fazendas e vinícolas. 


Tudo isso até a sorte da cidade mudar repentinamente no final do século XVI.

As dificuldades começaram em 1587, quando Triora experimentou um súbito influxo de problemas inesperados. As colheitas abundantes das quais a região sempre desfrutou entraram em declínio, a fome se seguiu e a desgraça se espalhou pela região. Considerando que até aquele momento a cidade sempre prosperou, não demorou a surgirem rumores de que algo sobrenatural estava acontecendo, e que a cidade havia sido amaldiçoada. Em pouco tempo, a situação foi piorando com um clima atípico, pragas, pestilência, chuva ácida e gado misteriosamente morto no pasto, às vezes, com marcas de mutilação. 

Os rumores davam conta de que todos os infortúnios eram causados por bruxas, pois estas eram o bode expiatório mais comum. Uma cabala de feiticeiras, em conluio com o Príncipe das Trevas eram as responsáveis ​​pelos conflitos da cidade e as tragédias que seus habitantes enfrentavam. Havia fartura de histórias envolvendo avistamentos de bruxas realizando rituais pagãos nas matas, atos de devassidão e outros malefícios. Falava-se ainda de espíritos demoníacos conjurados, perambulando e até sacrifícios humanos e canibalismo vitimando criancinhas inocentes. Esses rumores na época se espalharam por toda parte e, logo, chamaram a atenção dos inquisidores de Gênova e Albenga, a diocese local.


Quando um Inquisidor Mor muito temido chamado Giulio de Scribani e o padre Girolamo del Pozzo chegaram à cidade para investigar os boatos, concluíram que Triora era um lugar sitiado por feitiçaria. A corrupção estava em toda parte e era tão densa que Scribani chegou a afirmar poder sentir o "fedor da feitiçaria no próprio ar". Uma investigação os conduziu até a região de Cabotina da Aldeia, que era uma miscelânea de cabanas deterioradas e imundas fora dos muros da cidade, habitadas pelos mais pobres e pelos indigentes. 

O tal cheiro ali era mais pronunciado e como um perdigueiro o Inquisidor começou a farejar a presença perniciosa da bruxaria. Scribani organizou buscas sistemáticas de casa em casa em Cabotina, bem como nas comunidades vizinhas, eventualmente prendendo dezenas de mulheres jovens e meninas suspeitas de serem bruxas. As acusações eram variadas e bizarras. Incluíam, a prisão de uma mulher por manter em casa uma cabra preta, a detenção de uma menina por menstruar muito cedo e de um rapaz por ter as feições delicadas de uma rapariga sedutora. Scribani era um ex-magistrado local, provavelmente o último que qualquer uma dessas mulheres queria ver, já que ele havia construído uma reputação bastante sinistra como um fanático incondicional com a intenção de eliminar a influência do Diabo na Terra e, por extensão, alegadas bruxas. Ele era conhecido por seu uso gratuito de tortura e violência, então sua presença provavelmente não foi bem-vinda por aqueles que moravam lá. O homem era um misógino que defendia a teoria, muito popular na época, de que as mulheres guardavam em si um potencial maior para o pecado.

A lista de suspeitos logo se expandiria para incluir parentes de nobres locais, a ponto de a Inquisição suspeitar que pudesse haver mais bruxas do que pessoas normais naquele lugar. O Inquisidor e seus assistentes submeteram os prisioneiros a um intenso interrogatório que incluía várias modalidades de tortura e constrangimento físico e psicológico. Suspeitas eram despidas, queimadas, cutucadas com agulhas e ameaçadas se não confessassem seus atos. O padre tinha uma fixação com bruxas que se deitavam com Satã e se dedicava a ouvir (com certo deleite) como se dava a conjunção carnal entre as feiticeiras e seu amante demoníaco.


Aquelas que não confessavam eram submetidas a maiores abusos e muitas acabaram morrendo vítimas dessa tortura. Uma jovem de 13 anos supostamente cometeu suicídio pulando de uma janela, marcando o dia em que os julgamentos tiveram início. Doze dos acusados ​​recusaram-se a confessar e uma menina de 12 anos foi libertada por razões não claramente explicadas. Alguns acusados foram executados, pelo menos quatro deles, mas no final, as bruxas restantes foram poupadas da execução. O Inquisidor de Gênova, chamado para avaliar os trabalhos, julgou que estavam ocorrendo abusos da parte de Scribani e seus associados. Ademais, naquele momento as execuções de bruxas estava se tornando um espetáculo antiquado e indesejado mesmo por Inquisidores. Scribani por sua vez estava sendo cada vez mais visto como um fanático. Certamente era tarde demais para salvar aqueles que morreram sob tortura ou por suas próprias mãos, mas a intervenção serviu para por um fim naquilo tudo. Alguns relatos dizem que outros envolvidos foram mortos secretamente, mas seus destinos permanecem indefinidos. No fim de sua vida, Scribani acabaria ele mesmo, sendo excomungado por seus modos, embora o estrago já estivesse feito.

Há várias suposições sobre a contagem final de vítimas em Triora. Diz-se que até 200 pessoas (mulheres em sua maioria) foram acusadas de feitiçaria no vilarejo e nas aldeias vizinhas, embora a extensão exata permaneça obscura devido aos registros incompletos da época. A economia de Triora continuou a se deteriorar e um êxodo da população, temerosa e enojada com os acontecimentos decretou sua decadência final. Ela jamais se recuperou e sobreviveu aos séculos como um povoado humilde. Nos anos seguintes, todo o incidente ganhou fama e ajudou a decretar o fim de procedimentos semelhantes naquela parte da Itália. Ainda assim, a notícia se espalhou e desencadeou um temor considerável nos países vizinhos. Na Suíça, França e Países Baixos, o pânico pelo sobrenatural foi às alturas.

Até hoje os julgamentos das bruxas de Triora repercutem pela região, e a cidade aproveitou isso realizando passeios nos quais turistas tem a oportunidade de conhecer a "cidade das bruxas". No passeio podem visitar o que restou da Cabotina e supostos lugares amaldiçoados pelas feiticeiras da época, além de um museu dedicado ao período. Até hoje a área possui relatos sobre assombrações e avistamentos de sombras e demônios que remontam a esse período. Convenções e encontros de bruxas modernas praticantes do neo-paganismo e wicca, se tornaram muito frequentes na região. A Triora de hoje é um local pacífico que não nega seu passado sombrio e parece ter feito as pazes com sua história.

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E sim, aparentemente o Jogo de Tabuleiro "Triora: Cidade das Bruxas", criado por Michael C. Alves, tem como inspiração justamente essa história sobre as bruxas do povoado italiano. Aliás, vale a pena conhecer esse excelente Boardgame, um euro com ótima estratégia, lançado pela Meeple BR e Arcano Games.

Conhecendo a história real, ele fica até mais legal!



Um comentário:

  1. Excelente matéria, me deu até umas ideias pra narrar Idade das Trevas, :)

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